O Coruja/II/XIX
A vida de André ficou muito mais desafrontada depois da morte de Ernestina, graças ao magro legado que a infeliz deixara ao outro.
O bom rapaz principiou logo a pôr de parte algum dinheiro do que ganhava, para ver se podia afinal realizar o seu casamento; pois, a despeito das insistências do amigo, não houve meio de lhe fazer aceitar das mãos deste um só vintém.
— Não, não! dizia. Isso, nas condições em que te achas, mal chega para te equilibrares de novo! nada, meu amigo, é preciso que endireites a tua vida; que a ponhas em ordem e possas manter por algum tempo certa independência. Paga aos teus credores e não te preocupes comigo; deixa-me cá, deixa-me cá com os meus rapazes e trata de aplicar agora o que possuis melhor do que fizeste da outra vez! Isso é que é! Lembra-te das privações e dissabores por que passaste!...
Mas qual! Teobaldo, mal empolgou a herança, tornou à mesma ou pior vidinha que levara antes de empobrecer; não era homem para ficar quieto com dinheiro no bolso. Enquanto tivesse o que gastar, não pensaria noutra coisa; e dir-se-ia até que as suas provações dos últimos tempos, em vez de o corrigirem, serviram apenas de lhe estimular a febre da prodigalidade.
Quem o visse um ano depois não acreditaria que ali estava o desesperado herdeiro de Ernestina; que ali estava aquele mísero rapaz a quem, por castigo, o remorso e o arrependimento arrastaram de novo aos braços de Leonília. E, a julgar pelas aparências, tão proveitoso lhe fora o tal castigo, que Teobaldo acabara de esquecer totalmente a culpa.
Todo ele agora respirava júbilo, elegância e prosperidade; seus esplêndidos vinte e sete anos luziam por toda a parte. Também a época não podia ser melhor para isso: o Rio de Janeiro passava por uma transformação violenta, estava em guerra; e, enquanto as províncias se despiam para cobrir com os seus filhos, os sertões paraguaios, o Alcazar erguia-se na rua da Vala e a opereta francesa invadia-nos de cabeleira postiça e perna nua.
Durante o dia ouvia-se o Hino Nacional acompanhando para bordo dos vasos de guerra os voluntários da pátria; à noite ouvia-se Offenbach.
E o nosso entusiasmo era um só para ambas as músicas.
A guerra tornava-nos conhecidos na Europa e uma nuvem de mulheres de todas as nacionalidades precipitava-se sobre o Brasil, que nem uma praga de gafanhotos sobre um cafezal; as estradas de ferro desenvolviam-se facilitando ao fazendeiro as suas visitas à corte e o dinheiro ganhado [[Wuopisht (discussão) 21h15min de 26 de abril de 2015 (UTC) {Parece faltar algum texto aqui.}]] Pois escravos desfazia-se em camélias e champanha; abriam-se hotéis onde não podiam entrar famílias; multiplicavam-se os botequins e as casas de penhores. Redobrou a loteria e a roleta, correram-se os primeiros cavalos no prado; surgiram impostos e mais impostos, e o ouro do Brasil transformou-se em papel-moeda e em fumaça de pólvora.
Teobaldo estava, pois, com o seu tempo; já demandando todas as noites o Alcazar dentro do seu cabriolé, que ele mesmo governava com muita graça; já percorrendo a cavalo as ruas da cidade em marcha inglesa; já servindo de juiz de raia no Jóquei Clube ou madrugando nas ceias do Raveaux ao lado das Vênus alcazarinas.
Entretanto, posto esquecesse a culpa, não se descuidava totalmente da sua penitência a respeito de Leonília e tinha para ela uma espécie de estima obrigatória, como a de alguns maridos pela competente esposa.
A cortesã, já então um pouco ofuscada pela concorrência estrangeira, resignava aquele meio amor, esperando, cheia de fé, que o seu amado haveria, mais cedo ou mais tarde, de recorrer aos braços dela como supremo recurso quando lhe chegasse a ele a saciedade ou quando se lhe esgotassem recursos para a peraltice.
Aquela vidinha não podia durar muito e, uma vez comido o último vintém, não seria com as francesas que ele se havia de achar!
Com efeito, ainda não estava em meio o segundo ano da nova opulência de Teobaldo e já este começava de retrair-se da pândega, não para tornar fielmente a Leonília, mas torcendo para o lado de Branca, de cujo namoro se descuidara um pouco nos últimos tempos.
E ao sentir murcharem-lhe de todo as algibeiras, veio-lhe uma ardente febre de liquidar quanto antes aquele casamento, que passava a ser de novo para ele o extremo porto de salvação. Aguiar, porém, que não desistia uma polegada de suas pretensões sobre a prima, deu logo por isso, pôs-se de sobreaviso, estudou-os a ambos e afinal, sem mais se poder conter, interrogou abertamente a menina, de uma vez em que a pilhou de jeito.
Branca respondeu que não reconhecia nele direito algum que o autorizasse a fazer semelhante interrogatório e, depois de muito instigada pelo primo, confessou que votava ao Sr. Teobaldo particular afeição e que estaria disposta a casar-se com ele, no caso que ele a desejasse.
— Com que a senhora o aceitaria para marido?
— A ter de escolher.
— Escolhia-o...
— É exato.
— Quer dizer que o ama!...
— Não sei o que é o amor; apenas reconheço no seu amigo todas as qualidades que eu sonhava no meu noivo; assim pensasse ele a meu respeito.
— Ah! descanse que não! Aquilo não é homem para sentimentos dessa ordem! É um libertino!
— Meu primo!
— A senhora já o defende... Bravo!
— Decerto, porque o senhor o está caluniando!
— E minha prima o conhece porventura? Saberá ao menos quais são os precedentes da vida dele?
— Não, mas calculo.
— Pois erra no cálculo! Fique sabendo que Teobaldo não a merece; é, repito, um homem incapaz de qualquer afeição séria e duradoura; é um homem que se gastou, que se estragou em amores de todo o gênero e...
— Se continua falar desse modo, vou para junto de meu pai...
— Ah! não quer ouvir as verdades a respeito dele; está bom, está muito bom!... Não sabia que a coisa chegara a este ponto; mas, enfim, sempre lhe direi que o seu rico Teobaldo até hoje tem vivido, por bem dizer, à custa de mulheres!...
Branca ergueu-se indignada e fugiu.
— Miserável! considerou o Aguiar; é preciso ser muito infame para fazer o que ele fez! Apresento-o a esta casa, confio-lhe as minhas intenções, declaro-lhe quanto adoro minha prima, e o patife responde a tudo isso procurando disputar-ma. Ah! mas a coisa não lhe há de ser assim tão doce! Eu cá estou para te cortar os planos, especulador! Queres apanhar-lhe o dote? Pois tens de te haver comigo! Não te lamberás com o dinheiro de meu tio como te lambeste com o dinheiro da pobre Ernestina!
Daí a dias falava o Aguiar com o comendador:
— É preciso abrir os olhos, meu tio, é preciso abrir os olhos. Aquele tratante é capaz de tudo! Abra os olhos, se não quiser que ele lhe pregue alguma peça...
— Mas, com a breca! não foste tu mesmo que mo apresentaste?
— Não o conhecia nesse tempo: andava iludido; só hoje sei a bisca que ali está.
E contou a respeito de Teobaldo todas as verdades que sabia e mais ainda o que lhe pareceu necessário para as realçar; assim, disse que ele era um grande devasso e um grande hipócrita; que ele para conseguir qualquer desiderato não hesitava defronte de obstáculos, nem considerações de espécie alguma, e que, no caso presente, se o comendador não tratasse de defender a filha, o patife conseguiria apoderar-se dela, pois já lhe havia captado a confiança e talvez o coração.
— Estás sonhando com certeza!
— Não! digo a verdade. Branca deseja casar com ele!
— Não creio! Isso não pode ter fundamento!
— Juro-lhe que tem! Ela própria mo confessou!
— Nesse caso vou interrogá-la.
— Pois interrogue, e verá!
Branca respondeu ao pai com toda a franqueza que — Se tivesse de escolher noivo preferia o Sr. Teobaldo a qualquer outro...
— Bem, filha, isso é lá uma questão de gosto; não se argumenta! mas, sempre te direi que é de minha obrigação evitar que dês um passo mau; preciso esclarecer-te sobre os precedentes e sobre o caráter desse moço, a quem na tua inocência escolheste para marido.
— Oh! mas foi vossemecê justamente quem me deu o exemplo de gostar dele!... Não posso compreender como um rapaz, até aqui tão querido e simpatizado por todos nesta casa, mereça o que meu pai acaba de dizer.
— Sim, minha filha, mas o casamento é coisa muito séria; pode a gente simpatizar com uma pessoa, achar que ela tem talento, que é bonita, que é engraçada; sim, senhor! Daí, porém, a querer metê-la na família vai uma distância enorme!...
— Não sei que possa faltar àquele rapaz para ter direito à minha mão!...
— Não se trata do que falta, meu bem, mas do que lhe sobra!...
— Como assim?
— É que há feios boatos a respeito da vida que ele tem levado aqui na corte...
— Intrigas de meu primo...
— Eu, pelo menos, preciso tomar certas informações antes de consentir que penses nele.
— Ora, papai, isso de pensar ou de não pensar em alguém não depende da vontade; e, quase sempre, quanto mais a gente faz em não pensar em uma pessoa ou em uma coisa, é quando mais ela não lhe sai da idéia.
— Bem, bem, bem! disse o velho afastando-se contrariado; mais tarde havemos de falar neste assunto; por ora não tens a cabeça no seu lugar.
Toda esta conversa foi a noite desse mesmo dia relatada minuciosamente a Teobaldo por Branca, que se encontrou com ele em casa de uma família conhecida de ambos.
— Estás disposta a casar comigo? perguntou-lhe o rapaz.
— Bem sabes que sim.
— Mesmo sem a autorização de teu pai?
— Sim, mas exijo que lhe faças o pedido.
— E se ele negar!
— Insistiremos.
— E se ele insistir também na recusa?
— Esperaremos.
— E se ele nunca mudar de idéia?
— Não sei... Havemos de ver...
— E se ele quiser casar-te à força com teu primo?
— Oh! isso não consinto.
— Pois fica sabendo que é essa a sua intenção!
— Não creio!
— E, se for, estás disposta a reagir?
— Estou.
— E sabes qual é o único meio que há para isso?
— Qual é?
— Fugindo.
Branca teve um sobressalto e repetiu quase que mentalmente:
— Fugindo?...
— Sim, e desde já preciso saber se devo ou não contar contigo; nestes casos não há meias medidas a tomar: se estás disposta a ser minha esposa, arrostaremos tudo; se não estás, desaparecerei para sempre de teus olhos. Decide!
— Sim, mas tu hás de falar primeiro a papai...
— Está claro e só me servirei do rapto no caso que este me recuse a tua mão.
— Talvez não recuse.
— E se recusar?
Ela abaixou os olhos.
— Responde! disse ele.
— Irei para onde me levares...
— Bem. Estamos entendidos.
E Teobaldo afastou-se disfarçadamente.
Quando tornou a casa, foi direito ao Coruja, a quem por último confiava as suas esperanças de casamento, e disse-lhe sem mais preâmbulos:
— Sabes?! O Aguiar está me fazendo uma guerra terrível! intrigou-me com o comendador! Creio que vou ter muito vento contrário pela proa! Ah! mas comigo aquele miserável perde o seu tempo porque estou resolvido a raptar a menina!
— Não sei se farás bem com isso... observou o outro; esses meios violentos provam quase sempre muito mal... Eu, no teu caso, me entenderia com o pai.
— Ah! está bem visto que lhe farei o pedido! faço, que dúvida! mas já sei que vou levar um formidável "não" pelas ventas! O bruto nega-ma com certeza!
— Quem sabe lá, homem! Experimenta...
— Pois se o demônio do Aguiar não faz senão desmoralizar-me aos olhos do velho!
— Pois desmente-o, provando com a tua conduta o contrário do que ele disser. Olha! Queres ver o meio de chegar mais depressa a esse resultado? Procura trabalho. Emprega-te!
— Mas onde?
— Em casa do próprio pai da menina...
— Em casa do comendador? Tem graça.
— Não sei porque...
— Pois eu sirvo lá para o comércio!...
— Procura servir.
— Ele não tomaria a sério o meu pedido.
— Nesse caso a culpa já não seria tua; e o bom cumprimento do teu dever, procurando trabalho, seria já argumento que ficava de pé contra as intrigas do Aguiar.
— Tens razão. Amanhã mesmo vou falar ao velho; talvez consiga alguma coisa...
— Hás de conseguir, pelo menos, provar que desejas ganhar a vida.
Teobaldo ficou pasmado quando, no dia seguinte, às suas primeiras palavras com o pai de Branca, este disse sem o menor constrangimento:
— Ó meu caro senhor, por que não me falou há mais tempo?... Tenho muito prazer em ser-lhe útil; diga quais são as suas habilitações e pode ser que entremos em algum acordo.
Teobaldo viu-se deveras embaraçado para responder a semelhante pergunta. Ele, coitado, não tinha habilitações; tinha dotes, sentia-se com jeito para tudo em geral, mas imperfeito e inepto para qualquer especialidade.
O comendador foi em auxílio dele, perguntando-lhe se sabia o francês e o inglês.
— Perfeitamente, apressou-se a responder o interrogado. — Falo e escrevo com muita facilidade qualquer dessas línguas.
— Pois então trabalhará na correspondência. Tem boa letra?
— Sofrível; quer ver?
E, tomando a pena que o negociante havia deposto em cima da carteira, escreveu primorosamente sobre uma folha de papel as seguintes palavras:
"Convencido de que a ociosidade é a mãe de todos os vícios e de todos os males, desejo evitá-lo, dedicando-me a um trabalho honesto e proveitoso."
— Muito bem! disse o comendador, olhando por cima dos óculos para o que estava escrito. Pode amanhã mesmo apresentar-se aqui; meu guarda-livros se entenderá com o senhor.
— Devo vir a que horas?
— Aí pelas sete da manhã.
Teobaldo correu a contar ao amigo o resultado da sua conferência com o pai de Branca.
— Então? Que te dizia eu?... exclamou Coruja, nadando em júbilo. Vês?! Tudo se pode arranjar por bons meios! Não dou muito tempo para que o comendador morra de amores por ti e esteja disposto a proteger-te mais do que protegeria a um próprio filho! Assim tenhas tu cabeça e saibas te aguentar no emprego!
— Vamos a ver.
— Olha, meu caro, ali tens um futuro, sabes? Talvez não ganhes muito ao princípio, mas pouco a pouco o comendador te aumentará o ordenado e, quando deres por ti, estarás com a tua vida independente e garantida. Então, sim, pede a menina e casa-te, antes disso — é asneira!