O Coruja/III/VI
Uma noite, Afonso de Aguiar assistia à representação dos Huguenotes ao lado de sua prima; Teobaldo muito pouco se mostrava no camarote e parecia extremamente preocupado com a ausência de alguém. Tratava-se de um conselheiro, a quem ele devia ser apresentado durante o espetáculo e de quem esperava a realização de uma ideia que nesse momento o possuía todo.
Essa ideia era nada menos do que a criação de um jornal político, jornal de luta, com que ele pudesse fazer pressão sobre o partido dominante no país e determinar sua individualidade perante o público; ao lado, porém, deste interesse, todo moral e decisivo, tinha vagas esperanças de obter do governo algum vantajoso privilégio ou algum bom lugar em qualquer legação ou, se as coisas tomassem outro caminho, preparar terreno para uma provável candidatura de deputado geral.
Inconstante e leviano como sempre, não firmava em um só ponto as suas pretensões e aspirava em grosso, abrangendo com a sua desnorteada e vacilante ambição tudo aquilo que se podia articular de qualquer modo ao objeto do seu desejo.
Assim, logo que lhe veio a idéia de fazer-se jornalista, pensou em ser concessionário, pensou em ser diplomata e pensou em ser deputado, sem se decidir por nenhuma das três carreiras, aliás tão diversas e tão opostas.
E tanto teve de entusiasmo pelo comércio, ao fazer-se negociante, quanto agora o detestava e maldizia a cada momento.
Se eu conseguir criar a folha, planeava ele, espaceando no corredor do teatro, conservo-me ainda por algum tempo no comércio, apenas na qualidade de sócio comanditário, e dedico-me de corpo e alma ao jornalismo. Com o meu talento e com a minha vivacidade, não dou um ano à minha folha para ser a primeira do Império.
E já se via aclamado e aplaudido pelo público, já se via influindo sobre os destinos da pátria, e determinando com uma penada as mais graves questões políticas.
Uma enorme sede de luzir, de parecer grande, de dominar, o assoberbava ultimamente, fazendo-o esquecer-se de tudo e de todos, para só cuidar do seu nome. Apoderava-se dele a febre do avô, a paixão da altura; queria subir até onde chegava sua ambição. Não havia nisso a menor sombra de amor pelo trabalho, nem desejo de ser útil à pátria ou aos seus semelhantes, mas só vaidade, essa mesma vaidade que fora sempre a sua única soberana, e pela qual ele seria capaz dos maiores heroísmos e também das maiores perversidades.
E enquanto Teobaldo devaneava e passeava no corredor, entusiasmando-se com o alto conceito que fazia de si mesmo, o outro, o Aguiar, quedava-se no camarote, acompanhando em silêncio todos os gestos da prima.
Estavam já no penúltimo ato, em meio do grande dueto de Raul de Nangis e Valentina; Branca não despregava o binóculo da cena e parecia arrebatar-se com a magia daquela música suprema e apaixonada; os seus desgostos, as suas profundas mágoas de amor, acordavam todas, uma por uma, no fundo de sua alma; e, quando o tenor soltou a última frase do dueto, uma lágrima brilhou nos olhos dela e um longo suspiro desdobrou-se-lhe nos lábios.
Só então, despertando do seu enlevo, atentou para Afonso, que a devorava com a vista.
— Como sofre... disse ele entredentes, não tão baixo, porém que a prima não o ouvisse.
Ela balbuciou ainda uma frase de desculpa, mas o rapaz acrescentou em segredo:
— Para que há de esconder de mim os seus sofrimentos? Julgará que é de hoje que os observo e acompanho?... Melhor faria, minha prima, em derramá-los no meu coração, porque só os que também sofrem poderão compreendê-los e...
— Eu é que não compreendo... respondeu Branca, fazendo-se muito séria.
— As palavras de um bom amigo só não as compreende quem de todo não quer.
— Nesse caso repita-as a Teobaldo, que ele as compreenderá melhor do que eu.
— Duvido.
— Não acredita então na amizade de meu marido?...
— Não.
— Como assim?
— Teobaldo não estima a ninguém. Ele só cuida si, só pensa na sua própria pessoa, só de si se preocupa.
— Não é isso o que meu primo costuma dizer a respeito dele.
— Ah! certamente, porque desejo engrandecê-lo aos olhos de todos.
— Mas então com que fim?
— Com o fim de ser — para ele — útil e para a prima agradável.
— Pretende então agradar-me?
— Decerto, visto que sou seu amigo.
— E como, se é meu amigo, procura convencer-me de que Teobaldo não estima a ninguém?... Esquece-se, meu primo, porventura de que, se eu chegasse a acreditar em semelhante falsidade, seria a mais infeliz das mulheres, porque adoro meu marido e suponho ser amada por ele?
— Se a prima acreditasse no amor de Teobaldo, não sofreria como sofre.
— Quem lhe disse que eu sofro?
— Diz-me tudo: dizem-me as suas lágrimas mal disfarçadas, a sua melancolia, os seus suspiros; dizem-me esses pobres olhos entristecidos e queixosos!...
Branca abaixou as pálpebras instintivamente, e o rapaz, aproveitando o efeito daquelas palavras, acrescentou:
— Quando uma mulher é correspondida no seu amor, toda ela resumbra contentamento e felicidade; de cada beijo que dá ou recebe da pessoa amada, fica-lhe na alma o gérmen de um sorriso e não da lágrima, que ainda há pouco lhe vi saltar dos olhos.
— Mas, quando assim fosse, retorquiu a senhora, dada a hipótese de que com efeito tenho qualquer motivo para sofrer, que lucraria eu em confessá-lo?
Que lucraria? oh! lucraria muito! Lucraria em desabafar, lucraria em dividir com alguém a sua mágoa!
— Não! Isso só se pode fazer com um ente, um único, quando o possuímos, e eu o possuí tão pouco!...
— Quer falar de sua mãe?
— É verdade.
— E não se lembra de que eu, por bem dizer, sou seu irmão, que a vi pequenina e que me habituei a estimá-la e a respeitá-la, como se tivéssemos bebido o mesmo leite materno?...
— Mas que lhe podem interessar meus desgostos? São tão íntimos... tão meus !...
— Por isso mesmo me interessam, porque eles são muito seus. Oh! era preciso não ser seu amigo, seu companheiro de infância, seu irmão, para não me interessar por eles, como me interesso por tudo que lhe diz respeito!
E chegando-se ainda mais junto dela:
— Juro-lhe, minha prima, que, apesar da tremenda decepção que sofri com o seu casamento, apesar de a ter desejado ardentemente para minha esposa, só a idéia de que Teobaldo faria a sua felicidade levou-me a esquecer tudo! Nunca mais a possuiria, é exato; nunca mais a vida seria para mim outra coisa mais do que a morte sem as regalias da morte, sem o descanso, sem o esquecimento e sem a dor; consolava-me, porém, a ideia de ter contribuído para a ventura daquela que eu idolatrava, daquela que foi a única mulher que amei, que amarei sempre! E contava, pois, que, em a vendo satisfeita e alegre, eu teria também, do fundo da minha desgraça, o meu quinhão de alegria! Vendo-a gozar, eu gozaria também! Ah! mas quando dei pelo procedimento de seu marido; quando descobri que ele covardemente a enganara, fazendo-lhe acreditar que a amaria por toda a vida; quando cheguei a compreender qual fora a verdadeira intenção daquele miserável, arrancando-a brutalmente da casa paterna; ah! então, confesso-lhe, minha prima, transformei-me todo; confesso-lhe que senti indignação tão grande como seria a indignação de seu pai, se ainda vivesse!
— Meu pai! Oh! não me fale nele, por amor de Deus!
— Sim, seu pai, que juntou a vida ao dote cobiçado pelo seu raptor.
— Meu primo!
— Perdoe-me! Deixe-me desabafar por uma vez, que estou cansado de reprimir a minha indignação! Juro-lhe que, se Teobaldo fosse um bom marido, teria em mim um amigo para a vida e para a morte; mas, fazendo-a sofrer, desprezando-a como a despreza, desdenhando de todas essas virtudes e de todos esses encantos que a prima possui como nenhuma outra mulher no mundo, preferia vê-lo atravessado por uma bala!
— Cale-se por amor de Deus!
— Não tem que se revoltar com o que estou dizendo! é na qualidade de amigo e de irmão que lhe falo! Ninguém terá maior empenho do que eu em protegê-la!
— Não posso aceitar uma proteção que acusa e ofende meu marido...
— Em sua defesa, eu acusaria o próprio Deus, se ele a desgostasse!...
— Pois se assim é, proteja-me estimando Teobaldo, perdoando-lhe as faltas e defendendo aos olhos dele a minha causa. Só por essa forma provaria o primo que me estima deveras.
Mas, justamente nessa ocasião, Teobaldo, em um camarote defronte do da esposa, fazia a corte à mulher do tal conselheiro de quem dependia a criação do seu jornal.
Experiente e vivo como era, sabia que as mulheres são o melhor conduto para se chegar aos maridos. — Porque, considerava ele — das duas uma: ou a sujeita é boa e por bondade cederá ao meu pedido; ou não é, e neste caso eu a farei solidária nos meus interesses, desde que a converta em minha amante.
A senhora do conselheiro, posto não fosse de todo desengraçada e despida de seduções, era já uma gordachuda quarentona que em ninguém acenderia delírios de amor, e muito menos em Teobaldo, que, a respeito de mulheres, só tinha tido até ali boas fortunas. Não se tratava, porém, de satisfazer ao gosto e sim de arranjar proteção, e como ele, logo ao primeiro ataque, descobriu que a esposa do conselheiro pertencia à segunda daquelas duas ordens, tratou de dar toda força aos seus recursos de insinuação e aos seus artifícios de conquistador.
Foi tiro e queda! No fim de pouco tempo de conversa a senhora do conselheiro se interessava visivelmente pelo marido de Branca. Ouvia-o com toda a atenção, abanando-se indolentemente, a sorrir e a contemplá-lo em silêncio.
Ele falava de tudo, promiscuamente, tocando apenas com a ponta da asa do seu espírito no assunto que se oferecia; não esteve calado um instante; depois ergueu-se de súbito e, o claque em punho, o ar todo restrito, pediu as ordens da excelentíssima senhora, lamentando ainda uma vez a ausência do conselheiro, a quem fazia empenho de ser apresentado.
— Pois então apareça-nos sexta-feira. Está convidado. Eu prevenirei meu marido de que o senhor não faltará. Vai?
Teobaldo vergou-se todo defronte destas palavras, disse que sim com um gracioso sorriso e, requintando a sua cortesia, beijou a mão que a senhora do conselheiro lhe havia estendido.
— É interessante este rapaz! anotou ela consigo, depois de sair a visita.
— Estou garantido! pensou ele, quando se viu em liberdade.
Entretanto, o Aguiar, que não perdera um só dos movimentos do marido de sua prima, chamou a atenção desta sobre o modo pelo qual ele se despedia da outra.
— Não há de ser por mal... considerou Branca, afetando tranquilidade, mas no íntimo ressentida.
É que acabava de cair por terra mais uma das pedras do pobre castelo das suas ilusões.