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O Coruja/III/VII

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Por esse tempo o Coruja, sempre lutando com o seu coração, com a sua natural antipatia, com o seu trabalho excessivo e com as exigências da velha Margarida e mais da filha, achava-se em uma situação especial.

O diretor do colégio, em que ele trabalhava havia tantos anos, um viuvão preso ultimamente à cama pelo reumatismo, acabava de sucumbir pedindo-lhe, antes de morrer, que ficasse com o estabelecimento e fizesse o possível para mantê-lo sem quebra dos créditos até aí conquistados.

André prometeu; mas, feito o inventário do colégio, verificou-se que este devia dez contos de réis, ficando por conseguinte quem tomasse conta dele obrigado a fazer frente a esse débito.

Ora, o Coruja não tinha dez contos de réis, nem donde os haver, pois que Teobaldo, único a quem ele poderia recorrer, já não se achava em circunstâncias de servi-lo.

Entretanto, mesmo com algum sacrifício, pagava a pena de ficar com o colégio, porque, em primeiro lugar, o que havia dentro deste valia bem a metade daquela quantia, e, em segundo lugar, o estabelecimento era um dos mais acreditados da corte e contava um bonito número de alunos. Notando-se ainda que a ninguém convinha como ao Coruja ficar com ele a dirigi-lo, visto que de há muito fazia as vezes do diretor, e, valha a verdade, com vantagem sobre o verdadeiro, já por introduzir no estabelecimento muitas das reformas do ensino primário, já por desenvolver várias aulas que encontrou quase que em estado de abandono.

Ora, se o Banco do Brasil, que era o principal credor, cedesse dois anos de moratória, o Coruja, empregando todo o seu esforço, bem podia dar conta do recado.

Tratou-se do negócio. O Banco mediante a hipoteca do colégio, dava um ano para a entrada da metade da dívida e outro ano para a entrada do resto. André teria, pois, se fechasse o acordo, de apresentar seis contos de réis daí a um ano e outros seis daí a dois, submetido, já se vê, aos juros da lei.

Verificou o que conseguira economizar depois da moléstia de D. Margarida, calculou ao certo o produto líquido do colégio e, tomando a resolução de reduzir ainda mais as suas despesas e largar de mão por algum tempo a sua história do Brasil, resolveu afinal assinar o contrato.

Tudo isso fez ele sem o menor entusiasmo, com uma inalterável confiança nos seus esforços.

E desde então com efeito não descansou um segundo: dispensou alguns professores, cujo serviço tomou a seu cargo e começou a lecionar por dia nada menos do que oito aulas, inclusive a de música.

Pois, ainda assim, descobria tempo para fazer a escrituração da casa e, lá uma vez por outra, para adiantar uma página à sua querida história do Brasil.

Embalde protestava-lhe o corpo contra tanto excesso de trabalho. Coruja não se deixava vencer e reagia energicamente; é verdade que, ao chegar a noite, já se não podia ter nas pernas e só com muito sacrifício aguentava-se acordado até às onze horas, trabalhando ainda; mas em compensação trazia agora o espírito mais tranquilo a respeito do seu compromisso com Inez, a quem desposaria, mal visse o colégio desembaraçado.

A nova situação de André por qualquer forma animou a velha Margarida, que ultimamente se havia convertido para ele em um verdadeiro tormento.

— Ora, Deus queira que desta vez você desembuche, criatura! disse-lhe ela, quando o rapaz lhe levou a notícia. — Já não vem sem tempo!

— Ah! desta vez creio que ficará tudo realizado!... considerou André — É que as coisas, Sra. D. Margarida, nem sempre caminham à medida dos nossos desejos...

— Ora, seu Miranda, se você quisesse, há muito tempo que já teria dado um jeito ao negócio!

— Mas para que fazer as coisas no ar? É muito melhor ir pelo seguro! Olhe, logo que eu liquide o meu débito com o Banco, posso casar sem receio, porque já terei certo o necessário para sustentar mulher e os filhos que vierem. O colégio, uma vez desembaraçado, dará perfeitamente para isso o talvez até para se pôr de parte alguma coisinha... Não acha a senhora, D. Margarida, que sempre é melhor assim, do que casar-se a gente em um dia e já no outro estar arrependida?

A velha, em vez de responder às considerações de André, limitou-se a exclamar:

— Hei de ver este casamento pelas costas e ainda me parecerá um sonho!

— Agora há de vê-lo realizado!

— Com um ano de espera pelo menos... arriscou Inez. — Em um ano o mundo dá tantas voltas!...

E sua cara era tão feia e tão apoquentada com semelhantes palavras, que fazia desconfiar que as tais voltas do mundo haviam de ser por cima dela.

— O que não sei é se ele ainda deitará um ano ... considerou a velha, quando o Coruja a deixou com a filha. Acho-o agora tão não sei como!... O diabo do homem parece que fica mais feio de dia para dia!

— A mim, o que lhe acho, acrescentou a outra — é mais bodega do que nunca: já não se sabe de que cor é o paletó que ele traz no corpo, e o chapéu parece que está a se acabar aos nacos!

Tais considerações sobre o mau trajar do Coruja não eram privilégio exclusivo das duas senhoras; em casa de Teobaldo já todos haviam também notado a mesma coisa, sem que ninguém aliás se animasse a censurá-lo, porque bem sabiam a que ponto levava ele a economia depois de tomar o colégio à sua conta.

Mas se aí lhe perdoavam a penúria de roupa, o mesmo não sucedia nas outras partes, e o pobre Coruja ia ganhando fama de sumítico e miserável.

Comentavam amargamente aquela extrema restrição de despesas; acusavam-no de nunca ter sido visto a gastar um só vintém com pessoa alguma, e muita gente garantia que ele aferrolhava dinheiro.

Em verdade, não podia ser mais rigorosa a abstinência do Coruja, nem podia o seu tipo ser mais farandolesco e miserável do que era ultimamente; mas, também, quem o surpreendesse à noite no seu cubículo, depois de recolhido, ve-lo-ia tirar de uma gaveta diversos títulos do Banco e diversos maços de cem mil réis em papel, que ele contava e recontava com uma voluptuosidade de avarento; como, se à força de conferir o dinheiro, pretendesse engrossá-lo.

O Aguiar embirrava com ele progressivamente. Ao topá-lo em casa do amigo, tão maltrapilho e tão esquerdo de maneiras, torcia sempre o nariz e às vezes chegava a exprobrar à prima aquela relação.

— Também não sei, dizia, — como Teobaldo, que é aquele mesmo, conserva este tipo dentro de sua casa...

— São muito amigos, respondia Branca secamente.

— De acordo, mas, que diabo! semelhante figura é o bastante para desmoralizar uma casa... Parece um mendigo! um verdadeiro mendigo!

— É um homem honesto, afianço-lhe.

— Oh! nem podia deixar de ser! com tal aspecto ser honesto não é favor: ele tinha obrigação de ser, pelo menos, santo.

— E talvez meu primo acertasse. O Coruja tem coisas de um verdadeiro santo.

— Menos a figura, que essa é marca de Judas.

— Com efeito, é antipático, mas também não é tanto assim... Repare bem e verá.

— Não. Tenho medo. Aquela cara seria capaz de me pôr doente se eu a fitasse.

A atitude do Aguiar ao lado da prima continuava a ser a de um seu parente chegado e amigo da casa; Branca, todavia, ao conversar com ele, sentiu por várias vezes orçar-lhe pelo pudor as antenas de uma estranha intenção, que ela procurava não compreender e contra a qual se retraía toda. Mas o sedutor nem por isso perdia as esperanças, e, sempre com o seu sistema artificioso, ia empregando todos os meios de insinuar-se-lhe no ânimo, até que chegasse uma boa ocasião para a empolgar.

A ocasião, porém, não queria apresentar-se, e ele teria talvez precipitado os acontecimentos, se o acaso não fosse ao seu encontro, avivando-lhe a coragem e fazendo-lhe antever um desfecho ainda mais rápido do que esperava para a sua campanha.

Aguiar estava muito ao corrente das pretensões jornalísticas de Teobaldo e, melhor ainda, sabia em que pé caminhavam as intimidades deste com a senhora do conselheiro; de sorte que, um belo dia, ouvindo Branca teimar que o marido tinha de passar a noite em importante conferência comercial com alguns amigos, ele sorriu e disse:

— E o que perderia a prima se eu lhe provasse o contrário?

— Perderia mais uma ilusão a respeito de meu marido, respondeu ela. — Até aqui ainda não o apanhei mentindo, e confesso que o julgo incapaz de tamanha baixeza.

— E se eu provasse que ele, em vez de passar a noite nessa fantástica conferência, estará por esse tempo aos pés da mulher do conselheiro?...

— Creio que ainda assim eu não acreditaria.

— E se as provas fossem irrecusáveis?

— Nunca perdoaria a ele semelhante infâmia.

— E jura que não fará o mesmo a meu respeito, se eu provar o que disse?

— Pode estar tranquilo por esse lado, porque nós, as mulheres, só condenamos os atos maus e as faltas da pessoa que amamos. Em nós o ódio é sempre o avesso do amor e só aparece quando este se esconde; o nosso coração é uma capa de duas vistas, cujos lados não podemos usar ao mesmo tempo: ou bem que amamos, ou bem que odiamos.

— Quem me dera então ser odiado pela prima...

Branca sentiu o roçar das tais antenas e tratou logo de cortar a conversa, retirando-se para o seu quarto, a pretexto de sentir-se indisposta.

Aguiar ficou na sala, mas a denúncia dele acompanhou-a, grudando-se-lhe ao coração com tanta insistência, que afinal já a oprimia.

— Um mentiroso! pensava ela, deixando-se cair sobre o divã.

E vieram os soluços.

— Mentir, enganar-me, trair-me como o mais baixo dos homens não faria com sua mulher!... Oh! isso não! Isso já é demais! Isso já não é uma fraqueza, é uma vilania e uma perversidade! Se ele está farto de mim, se não me pode suportar, por que então não fala com franqueza? por que não confessa tudo dignamente? por que me traz nesta dúvida ridícula e mais dolorosa do que a pior das evidências?...

E ainda chorava sobre estes raciocínios quando Teobaldo chegou à tarde. Ela disfarçou as suas lágrimas, acompanhou-o ao jantar, depois conversaram juntos, como de costume, debaixo de um caramanchão que havia na chácara e, só à noite, ao vê-lo já pronto para sair, perguntou-lhe com os braços em volta do pescoço dele:

— Vais sempre à tal reunião?

— Vou, e creio que me demorarei alguma coisa; mas fica descansada, que não irei muito além da meia-noite.

E beijou-a na testa e teria desaparecido logo, se a mulher não o prendesse com mais força.

Ele estranhou:

— Então! disse. Creio que não vou empreender alguma viagem aos pólos!

A esposa tomou coragem e interrogou-o abertamente:

— Quero que me digas uma coisa, mas não mintas! Fala com franqueza.

— Não te compreendo, filha.

— Dize-me: onde vai tu agora?

— Oh! estou farto de repetir! E estalando as sílabas: — Vou a uma reunião comercial, que tem hoje de deliberar sobre um sindicato, apresentado ao governo, pedindo privilégio para o fornecimento de certos materiais de guerra que tencionamos mandar ao Paraguai. Oh!

— Jura! Dá tua palavra de honra!

— Ora essa!

— Então não acredito.

— Paciência!

— E vejo que as minhas desconfianças têm razão de ser...

— Desconfianças?

— Sim. Não acredito na tua reunião.

— E com que direito?

— Com o direito de quem tem ciúmes.

— Ciúmes, tu?

— Eu mesma.

— E duvidas de mim?

— Só não duvidarei se renunciares a essa tal reunião.

— Não posso.

— Fica. Peço-te.

— É impossível! Teria um grande prejuízo!

— Fica, Teobaldo.

— Não. Seria uma tolice, que eu a mim mesmo nunca perdoaria! Bem sabes que os meus negócios não vão bem, atravesso uma crise muito séria, extraordinariamente séria! A guerra tem me feito um mal diabólico! Se me descuidar, estará tudo perdido, tudo! Nesta reunião de hoje vou tratar do nosso futuro; é o interesse que me conduz e não devo faltar!

— Bem, vai!

— Adeus.

— Adeus.

Ele tornou a beijá-la na fronte e depois saiu.

Branca ficou imóvel, junto à porta, a segui-lo com os olhos. Viu-o descer muito lépido a escadaria de pedra, atravessar a chácara e ouviu depois rodar o carro lá fora.

— Qual dos dois será o mentiroso? este ou o outro?... balbuciou ela, deixando pender a cabeça para o peito e entregando-se a uma cisma atormentadora e ensombrecida pela dúvida: Qual dos dois será o infame? Talvez ambos...

Despertou com a voz do primo.

— Então? Ele sempre foi? perguntou este com um sorriso.

Branca respondeu sem falar, procurando esconder a sua preocupação. Deu uma pequena volta pela sala, afinal foi colocar-se ao lado do primo:

— Onde é a entrevista, sabe?

— No Catete.

— Em casa de quem?

— Na minha.

— Na sua casa?

— Ele pediu-ma e eu não podia negar. Não acha?

— Fez bem.

E ela acrescentou, depois de uma pausa aflita, aproximando-se mais de Aguiar:

— Meu primo, o senhor disse que é meu amigo, não é verdade?

— E sustento.

— Pois bem, prove-o, não dando uma palavra a respeito do que eu vou fazer.

— Juro que não darei, mas peço em troca uma promessa do mesmo gênero.

— Fale.

— A prima não dirá a Teobaldo quem foi que o denunciou.

— Pode ficar descansado.

Dito isto, Branca foi ao tímpano e vibrou-o.

Apareceu um criado.

— O Caetano que se apronte para sair e venha imediatamente aqui; você vá chamar um carro. Depressa!

— Vai certificar-se? perguntou Aguiar à prima, feliz com aquela intimidade que o aproximava mais dela e como que o fazia seu cúmplice, estabelecendo entre eles um segredo, um pacto e um juramento.

Branca respondeu que sim, queria certificar-se com os seus próprios olhos.

— E que meios tenciona empregar para isso?

— Espiá-los.

— Mas, de que modo?

— Postando-me defronte da casa.

— E se eles já tiverem entrado e se fechado por dentro?

— Espero que saiam.

— Mas é que dessa forma a prima será descoberta e terá de passar longas horas a esperar na rua, metida em um carro de aluguel, talvez arriscando a sua reputação...

— Que então hei de fazer?

— Seguir os meus conselhos. Eu me comprometerei a levá-la a um lugar, donde a prima poderá observá-los a vontade e sem ser vista.

— Ir em sua companhia?...

— Parece-me que sempre é mais prudente do que ir em companhia do Caetano... Lembre-se de que esse velho a ninguém preza neste mundo como a Teobaldo e que não resistirá por conseguinte ao desejo de contar-lhe tudo!

— Pouco me importaria eu com isso!

— Sim, mas importo-me eu. Se Teobaldo chegasse a descobrir a armadilha, descobriria também quem a armou. Ao passo que, indo a prima só comigo, eu a faria entrar misteriosamente pelos fundos da casa e levá-la-ia a um lugar seguro donde, já disse, os poderia ver, sem que ninguém desconfiasse da sua presença.

O velho Caetano acabava de aparecer à porta da sala, todo paramentado com a sua libré nova, a cabecinha já muito branca e vergada ao peso dos seus setenta anos.

— Espere, Caetano, disse-lhe Branca, encostando-se a um móvel, como para melhor resistir às idéias que a acabrunhavam.

É que ao seu espírito altivo e leal repugnava tudo aquilo, sentia-se mal, como se estivesse premeditando uma infâmia.

— Você já não é necessário, declarou Aguiar ao criado, enquanto ela pensava.

O velho Caetano fez uma respeitável continência e apartou-se sem dar palavra, arrastando os seus cansados pés e afagando lentamente com a mão a nuca encanecida.

Branca teve afinal um gesto resoluto de cabeça, foi ter com o primo o perguntou-lhe com a voz tão firme quanto era firme o seu olhar:

— Dá-me a sua palavra de honra em como não deixará de ser cavalheiro um só instante enquanto estiver ao meu lado?

— Dou-lhe a minha palavra de honra em como a respeitaria como minha irmã ou minha mãe!

— Bem. Aceito a sua companhia.

E retirou-se por alguns segundos para ir por uma capa.

— Podemos ir, disse ao reaparecer na sala.

O primo deu-lhe o braço e os dois saíram juntos.