O Coruja/III/XVI
No dia seguinte, ela procurou de novo o marido para saber se ele estava ou não disposto a tomar qualquer deliberação a respeito dos negócios do Aguiar.
Teobaldo respondeu já meio impacientado:
Que o deixassem em paz e não o estivessem apoquentando com tolices! Já bastante tinha com que se aborrecer e não era pouco! A mulher, se queria ser atendida, que diabo! dissesse a razão que levava a semelhante exigência e, se não estava resolvida a desembuchar, que não lhe desse mais uma palavra sobre o tal assunto!
Branca, todavia, hesitou ainda. Seu espírito, aliás tão forte para entestar com outras provações, seu espírito orgulhoso e sempre vencedor, quando abria luta contra a bestialidade da carne, acobardava-se agora defronte da hipótese de um escândalo social.
— Um escândalo! Que horror!
Não podia conformar-se com a idéia de que seu nome fosse correr as ruas, de boca em boca, despertando em uns a curiosidade e o direito de desejá-la também e em outros a simples vontade de rir; não podia aceitar enfim que um fato de sua vida caísse no domínio público e servisse de divertimento à multidão, igualando-a com qualquer artista tapageuse ou com qualquer meretriz de espavento, que precisa do escândalo para não ser esquecida.
Via-se entalada por um dilema, cuja saída havia de ser fatalmente escandalosa, porque das duas uma: ou tudo confessava ao marido e a questão daria um escândalo doméstico; ou deixava que a vingança do Aguiar corresse à revelia e neste caso o escândalo teria um caráter todo comercial.
Preferia o último. Mas desde então terrível sobressalto apoderou-se dela e começou a crescer à proporção que os dias se passavam; afinal era já um martírio de todo o instante, uma agonia sem tréguas, que lhe não deixava um momento de repouso.
Nesta conjuntura lembrou-se de André e resolveu contar-lhe tudo.
E tal idéia lhe chamou logo aos lábios um suspiro, como se ela, só por si, fora já uma consolação completa. Entretanto, não podia a pobre senhora explicar qual era o estranho motivo dessa confiança que lhe inspirava o Coruja.
— Que mais podia esperar dele, além de conselho ou algumas palavras de animação? O fato, porém, é que Branca só com a ideia de lhe confiar aquilo que ela não quis confiar ao marido, sentiu-se menos oprimida e mais sobranceira ao perigo.
Uma inexplicável esperança, uma espécie de fé a arrastava para junto daquele homem honrado, daquele anjo de bondade que sempre encontrava meios de proteger todo o infeliz que ia procurar abrigo à sombra das suas asas.
Havia um quer que seja de religioso naquela confiança de Branca por André; ela esperava dele a proteção como os crentes quando se dirigem a Deus, sem mesmo indagar quais os meios que este empregará para isso.
E, nesta ilusão, tinha de si para si que chegaria ao Coruja tão facilmente como uma devota supõe chegar ao objeto de sua crença; mas, uma vez ao lado dele, sentiu-se vazia, sem encontrar o que dizer, sem uma palavra para principiar.
André estranhou-a e quedou-se igualmente mudo.
Houve um silêncio, durante o qual Branca de olhos baixos; torcia e destorcia o debrum de seu casaquinho de musselina preta, ao passo que ele, sem se animar a encará-la, olhava para os lados, meneando o corpo da direita para a esquerda.
— A senhora, se não me engano, balbuciou afinal o pobre André, creio que disse ter alguma coisa a comunicar-me. Não é exato?
— É exato... fez Branca, tornando-se ainda mais pálida.
— Pois então...
— Mas é que..
— Tenha a bondade de falar com franqueza...
— Sim, eu, ouça-me... eu...
E ela não achava ânimo.
— Então!
— Vai ouvir tudo. Aguiar, sabe?...
— Seu primo?
— Sim; o Aguiar tem procurado todos os meios de me seduzir.
André sorriu lividamente. Ela acrescentou:
— Não me deixa há muito tempo, e, se bem que nenhum perigo houvesse nisso até agora, porque sou bastante honesta e virtuosa para não temê-lo... receio todavia que...
— Que?...
— Que ele, aproveitando-se das nossas circunstâncias atuais, se lembre de fazer-nos alguma maldade...
— Mas como?
— Ora! ele é credor de Teobaldo.
— Oh! é impossível, porém, que aquele rapaz leve a esse ponto semelhante perseguição. Não creio que haja no mundo um homem capaz disso!
— É porque supõe os outros por si.
— E Teobaldo? Que diz ele a respeito disto?
— Nada, porque nada sabe.
— Pois a senhora não lhe contou tudo?
— Não.
— Por quê?
— Receando um escândalo.
— Ah! E o que tenciona fazer agora?
— Não sei, e é isso justamente que eu desejo ouvir de sua boca. O senhor, como o modelo dos homens honestos, deve saber aconselhar-me, dirigir os meus passos. Quero evitar um escândalo e quero conservar-me imaculada; diga-me: o que compete fazer?
— Mas...
— Oh! não hesite por amor de Deus! É impossível que o senhor não tenha uma boa resposta para me dar. É impossível que o senhor, tão bom, tão amigo dos outros, não encontre meio de me valer, quando eu venho pedir o seu auxílio.
Coruja não respondeu e pôs-se a coçar a cabeça.
— Então? disse ela. Vamos, fale. Diga-me alguma coisa!
E Branca sacudiu-lhe o braço.
Ele ia responder afinal, quando foram interrompidos por um criado, que vinha anunciar o Aguiar.
— Ainda?! exclamou Branca, deveras surpreendida. Pois meu primo tem ainda o atrevimento de voltar?
— Receba-o, disse o Coruja enfim.
E acrescentou, encaminhando-se para uma porta que havia na sala:
— Eu fico aqui escondido por detrás desta cortina. Receba-o sem o menor escrúpulo, porque a senhora não está só.
— Faça entrar meu primo, ordenou Branca ao criado.
Daí a pouco Aguiar estava defronte dela.
— Que deseja? perguntou a senhora, vendo que a visita não se resolvia a falar.
— Venho receber a confirmação do que há dias a senhora me disse.
— Ora essa! De que espécie de confirmação fala o senhor?
— Da confirmação das suas últimas palavras. Não quero que me pese na consciência a menor sombra de remorso pelo que vou fazer...
— Contra quem?
— Contra a senhora e contra seu marido.
Branca, por única resposta, apontou-lhe a porta, como da primeira vez.
— Pense um instante! disse ele ainda. Veja bem o que faz!...
— Rua!
— Branca!
— Saia! Já lhe disse!
— Mas repare que a senhora me obriga a ser pior do que sou!
— Se não sair, mando-o despejar lá fora pelo criado!
— Sim?! Pois não sairei!
— Hein?!
— Não saio, porque não quero!
E, pondo o chapéu na cabeça:
— Já não se trata aqui de pedir amor em troca de amor; agora trato apenas de exigir o que me compete de direito! Quero para aqui o que me devem!
— Miserável!
— Oh! pois não! a senhora entende que me deve humilhar a seu gosto e eu devo ficar de cabeça baixa! Engana-se! Por bem sou capaz de todos os sacrifícios; por mal sou capaz de todas as crueldades. Já não é a recusa do seu amor o que me revolta; farte-se com ele quem quiser; mas o seu atrevimento, a sua insolência, o seu orgulho mal entendido!
Branca, lívida e trêmula, mas sem dar uma palavra, encaminhou-se para a mesa onde estava o tímpano, com a intenção de chamar um criado.
— É inútil! observou Aguiar, cortando-lhe o passo; é inútil fazer vir alguém, porque eu não sairei. Já não é com a senhora que tenho de me entender e sim com o seu marido!
E, sacando do bolso algumas letras:
— Exijo o pagamento destas letras ou elas serão protestadas!
Nisto, porém, afastou-se o reposteiro do quarto, onde estava escondido o Coruja, e Aguiar viu com espanto surgir o vulto maltrapilho do professor e encaminhar-se tranquilamente para ele com um terrível sorriso nos lábios.
A sua primeira menção foi de sair, mas o outro o deteve com um gesto cheio de delicadeza.
— Espere, disse, o senhor vai imediatamente ser embolsado do que lhe deve o marido desta senhora. Fui encarregado por ele de tratar disto.
O Aguiar mediu-o de alto a baixo com um olhar em que transparecia mais decepção do que altivez. André, sem se alterar. afastou-se e voltou depois com um grosso maço de dinheiro.
— Faça o favor de verificar se está certo, acrescentou.
E, como o outro hesitasse ainda:
— Então, vamos, confira!
E, para o animar, principiou ele próprio a contar o dinheiro, nota por nota.
— Bem! fez, logo que estava a soma conferida; creio que agora já ninguém lhe deve nada nesta casa. Pode retirar-se.
Aguiar, muito pálido e constrangido, tomou o chapéu com a mão a tremer e encaminhou-se para a saída, sem ânimo de levantar os olhos sobre nenhum dos dois outros.
Entretanto Branca presenciara isto imóvel e com a vista presa ao Coruja, como se contemplara um Deus.
André foi acompanhar o outro até à porta da rua e disse-lhe, empurrando-o brandamente para fora de casa:
— Agora, muito cuidadinho com a língua, porque não é só com Teobaldo que terás de te haver! A respeito do que se passou aqui, nem uma palavra! compreendes? Anda. Vai-te embora, desgraçado!
Feito isto, voltou tranquilamente ao seu sótão, fechou a gaveta da sua secretária, que ele deixara aberta com a precipitação de buscar o dinheiro, e desceu ao gabinete de Teobaldo.
Branca, porém, foi ao encontro dele e, passando-lhe os braços em volta do pescoço, deu-lhe um beijo em pleno rosto e desatou a soluçar.
Mas a porta do gabinete acabava de abrir-se, e Teobaldo aparecia defronte dos dois com um flamejante olhar de leão cioso.