O Coruja/III/XVII
Com a chegada de Teobaldo, Branca e o Coruja separaram-se instintivamente, enquanto aquele, tirando da algibeira o seu revólver, precipitou-se sobre o amigo.
A mulher lançou-se entre eles, tentando desviar o tiro, mas a bala partiu e foi cravar-se no calcanhar esquerdo de André, que caiu, amparando-se à parede.
— Fizeste mal... disse a vítima com um gemido.
E Branca, soltando um grito, exclamou para o outro:
— Desgraçado! Acaba de ferir o salvador da sua e da minha honra!
— Expliquem-se!
Branca apresentou-lhe as letras do Aguiar e acrescentou:
— Já que o senhor assim o quer, saberá tudo. Fiz o possível para não lhe falar em semelhante coisa; vejo, porém, que era muito mal empregado o meu escrúpulo.
— Deixemos-nos de palavras e venham os fatos! Quero a explicação do que acaba de se passar aqui e quero saber a razão por que essas letras se acham em seu poder!
— Estas letras aquele pobre homem resgatou-as ainda há
— Resgatou-as? E por quê?
— Porque assim era preciso, como aliás já o senhor sabia.
— Mas, afinal, porque era necessário resgatá-las?
— Pelo simples motivo de que o seu amigo Aguiar queria se prevalecer dessa dívida para me obrigar a esquecer os meus deveres de mulher casada.
— Será possível? interrogou Teobaldo, vencido agora pelo implacável olhar da esposa e pelo sereno gesto de perdão que transparecia já no rosto do Coruja.
Houve um silêncio.
— Oh! maldito seja eu! exclamou Teobaldo por fim, correndo a erguer nos braços o ferido.
— Não és culpado! disse este. Foi um instante de loucura! Não te incomodes comigo! Isto nada vale!
À detonação do tiro os criados haviam acudido; Coruja foi carregado para uma cama; descalçaram-no e banharam-lhe o pé com arnica, enquanto não chegava o médico, que se fora chamar a toda pressa.
Teobaldo parecia louco, estava atarantado, ia e vinha do gabinete ao quarto, esmurrando a cabeça, torcendo os punhos, sem encontrar palavras bastantes para se maldizer.
É que duas idéias o atormentavam: a de haver ferido o amigo e a de vingar-se do outro.
— Ah! resmungava de vez em quando, aquele miserável há de cair-me nas mãos! e há de pagar-me bem caro a sua infâmia!
Logo que o médico declarou que o ferido não apresentava maior perigo, Teobaldo enterrou o chapéu na cabeça e teria ganho a rua se gente de casa, por ordem de Branca não lhe impedisse a saída.
Foi, porém, necessária a intervenção do Coruja para que ele consentisse em ficar.
— Não saias ainda, pediu-lhe aquele; o médico acaba de dizer que a extração da bala há de ser um tanto dolorosa; fica para me animares com a tua companhia.
Teobaldo compreendeu a intenção de tais palavras e assentou-se resignado junto à cama de André.
Entretanto fez-se a operação logo que a ferida esfriou. Branca, enquanto não viu o Coruja com o pé aparelhado, não se desprendeu do lado dele, cercando-o de desvelos, ameigando-o e servindo de ajudante ao médico.
Este, apesar das repetidas perguntas que ela lhe fazia a respeito do ferido, não quis logo falar abertamente e só ao despedir-se, confessou que o Coruja havia de ficar aleijado, visto que a bala lhe cortara vários tendões do pé; mas que não tinham a recear amputação, se se não descuidassem de lhe dar o tratamento necessário.
Com efeito, durante os dias que a isto se seguiram, era André a maior preocupação dos que moravam naquela casa. Todos os cuidados de Branca lhe pertenciam.
Teobaldo, porém, achava-se em terrível estado de inquietação, já porque lhe chegara aos ouvidos a notícia de que o Aguiar havia arribado para a Europa, e já porque as suas circunstâncias não lhe permitiam naquela ocasião restituir ao amigo o dinheiro de que este se privara por causa dele.
— Todavia, disse-lhe o Coruja, acho que, para evitares um escândalo à tua esposa, deves fazer acreditar a todos que o pagamento das letras do Aguiar foi feito por ti e não por mim; e, então, quando puderes, me restituirás a quantia, sem ser necessário que mais ninguém além de nós saiba de tais particularidades.
Teobaldo jurou que, desse momento em diante, não descansaria enquanto não tivesse obtido o dinheiro necessário para evitar que o amigo ficasse em falta com o Banco. Mas o dia destinado à primeira prestação do Coruja chegou, sem que o outro tivesse obtido coisa alguma. E, para maior desgraça, André ainda não podia andar, senão de muletas.
O colégio foi posto de novo em arrecadação e vendido em proveito do Banco.