O Coruja/III/XXII
Meses depois, quando as câmaras já se achavam fechadas e o ministério em crise, a rua do Ouvidor regorgitava de povo que vinha de todos os pontos da cidade saber as novidades políticas. Falava-se muito em dissolução das câmaras; falava-se em subir de novo o partido liberal; citavam-se conselheiros que Sua Majestade o imperador mandara chamar a S. Cristóvão.
Mas, de repente, tudo serenou; porque um grande letreiro acabava de ser fixado à porta de um jornal: "Organização do novo gabinete conservador".
E entre os sete nomes que aí se liam, achava-se também o de Teobaldo Henrique de Albuquerque.
O organizador do novo ministério chamara-o na véspera para lhe dar a pasta da Agricultura, Comércio e Obras Públicas.
Estava ministro.
O Coruja, logo ao saber da grande nova, não se pode conter e atirou-se para a casa do amigo.
— Teobaldo ministro! Oh! que belo! que belo! ia ele a pensar pelo caminho. Quem o havia de supor? Deputado apenas nesta última candidatura e já hoje no poder! Isto é o que se chama andar aos pulos!
E foi com imensa dificuldade que o Coruja conseguiu chegar até à porta de S. Exa., tal era a multidão que aí se reunia, para saudar o novo ministro. A rua, a chácara tudo estava cheio de gente, uma banda de música tocava o hino nacional em frente da casa, e dentre o povo partiam repetidos vivas ao herói daquela festa e ao partido conservador.
André deteve-se um pouco entre a multidão, empenhado em escutar os originais e desencontrados comentários que se faziam a respeito do amigo.
— Não há dúvida que ele é uma grande cabeça! dizia um sujeito em meio de uns quatro ou cinco.
— Ora qual! opunha um destes, não passa de um felizardo! Entrou na câmara dos deputados por um acaso e ainda por outro acaso conseguiu pilhar uma pasta.
— Como por acaso?
— Pois então há quem ignore que este tino foi chamado às pressas para substituir o Rosas, que não aceitava o programa do Paranhos? Entrou para fazer número e, uma vez passada a lei, mandam-no passear de novo.
Em outro grupo se afirmava que Teobaldo era no Brasil o homem talvez de maior ilustração e com certeza o de idéias mais adiantadas.
— Hão de ver o que vai sair dai!
— É um portento, não há dúvida!
Um desses dera a sua palavra de honra em como o partido conservador jamais tivera um ministro tão teso, tão ativo e tão reto. E jurava que as repartições públicas sujeitas à alçada dele iam agora ver o bom e o bonito.
— Ah! Já foi contando com isso que o chamaram para o poder, acrescentou o outro. E afianço que certos empregadinhos vão pedir demissão de seus lugares, antes que Teobaldo lha dê.
— É um farofa! dizia entretanto um tipo de outro magote, um retórico! Não enxerga um palmo adiante do nariz, nada sabe, nada! Um verdadeiro pulha!
Mais adiante se dizia que a principal qualidade de Teobaldo era a pureza de caráter e, logo ao pé, proclamavam-no um velhaco de marca maior.
— Hipócrita só como ele! segredava-se aqui.
— Homem sincero! considerava-se ali.
— Ele o que é, dizia alguém, é um grande pândego! Foi eleito deputado pelo escrutínio secreto das damas e chegou até ao poder subindo por uma trança de cabelos louros.
Mas a opinião geral e mais corrente a respeito do marido de Branca era-lhe de todo o ponto favorável. Davam-lhe grande talento, vasta erudição, caráter firme e sentimentos patrióticos; quer dizer: quase todos atribuíam-lhe justamente aquilo que lhe faltava, e ninguém, menos a esposa, as duas únicas qualidades intelectuais que ele tinha deveras desenvolvidas — habilidade e bom gosto.
E foi só com a sua habilidade e com o seu bom gosto que o pândego chegava àquela altura.
Todavia, o Coruja, meio atordoado pela confusão do povo e pelo desacordo das opiniões que ouvira a respeito do amigo, atravessou a chácara e subiu a escada que ia dar à sala.
— Ainda não pode entrar! gritou-lhe asperamente um ordenança que aí se achava.
— Oh, senhor! mas não era preciso dizer isso deste modo.
O ordenança mediu-o de alto a baixo com um gesto de superioridade e virou-lhe as costas desdenhosamente.
— Olha que impostor! disse consigo o Coruja, e perguntou quando seria possível falar a Teobaldo.
— A quem?!
— Ao ministro.
— Ah! Logo mais! Daqui a pouco franqueia-se a casa ao povo.
— Está bom; eu espero.
— Lá embaixo! Espere lá embaixo!
Ouvia-se vir de dentro da casa um rumor alegre e quente de vozes de homens e risos de senhoras; alguma coisa que dava logo a idéia de uma existência aristocraticamente feliz. Pelo rumor daquelas vozes, pelo tilintar daquela alegria bem educada, pelo aspecto exterior da casa, com as suas cortinas muito claras, com a sua chácara e as suas escadas de pedra branca imaginava-se logo uma boa mesa servida com porcelanas e cristais de primeira ordem; imaginava-se a confortável mobília, as largas cadeiras estofadas, a voluptuosa cama de molas de aço, o banho perfumado, as roupas de linho puro.
E o Coruja, sem que aliás a menor sombra de inveja lhe entrasse no coração com a idéia de tudo isso, nunca se sentiu tão desamparado, tão só no mundo, como naquele momento.
Uma agonia surda e duvidosa apoderou-se dele.
E foi com a garganta cerrada por um punho de ferro que o mísero desceu lentamente a escada, arrastando de degrau em degrau o seu pé aleijado pelo tiro.
Ao chegar embaixo reparou que um grito de aclamação partia de todos os lados; voltou-se e notou que Teobaldo acabava de assomar ao balcão da janela seguido pela esposa.
E o Coruja notou igualmente que o amigo não parecia um simples ministro, mas um príncipe. Estava belo com o seu porte altivo e dominador; com o seu grande ar de fidalgo que exerce a delicadeza, não em honra da pessoa a quem se dirige, mas em sua própria honra. Iam-lhe muito bem os fios de cabelo branco que agora lhe prateavam a cabeça e a barba, dando-lhe à fisionomia uma expressão ainda mais distinta e mais nobre.
Abriram-se as portas da casa ao povo que ia cumprimentá-lo, e as salas foram invadidas, enquanto a banda de música continuava a tocar.
Havia um grande número de senhoras lá dentro e, Branca, ao lado de D. Geminiana e mais do velho Hipólito, que se tinham apresentado de véspera, fazia as honras da festa, sem alterar, no meio daquela tempestade de louvor e adulação que cercava o marido, o seu frio riso de estátua.
Só ela parecia não tomar parte moral no grande entusiasmo de toda aquela gente.
Coruja ouviu de fora os hurras dos brindes e os vivas levantados a Teobaldo, ao partido conservador e ao monarca; não se sentiu, porém, com ânimo de entrar e resolveu ir-se embora.
Saiu triste, profundamente triste, sem contudo saber a razão dessa tristeza. Um vago desgosto pela vida o acabrunhava e consumia; um tédio enorme, uma espécie de cansaço de ser bom, levava-o sombriamente a pensar na morte.
É que em torno de seus passos havia encontrado sempre e sempre a mesma ingratidão ou a mesma antipatia por parte de todos, ou a mesma maldade por parte de cada um.
Agora daria tudo para poder cometer uma ação má, como se por essa forma o seu coração pretendesse repousar um instante.
E, por todo o caminho, notou pela primeira vez os encontrões que lhe davam, as caras más que lhe faziam os transeuntes, a falta de consideração que todos lhe patenteavam.
Observou que ninguém lhe cedia a passagem na escada. Um homem em mangas de camisa dera-lhe um empurrão e, ainda por cima, lhe gritara: — "Que diabo! Está bêbado?!" Um padre, querendo passar ao mesmo tempo que ele, dissera-lhe: "Arrede-se!" E um menino de jaquetinha e calça curta chegara a obrigá-lo a ceder-lhe o passo. Ao atravessar a rua, quando ia chegar à casa, uma carruagem que passava a todo trote, levantou com as rodas um jato de lama, que se foi estampar na cara dele.
Era o Afonso de Aguiar quem ia dentro desse carro. Voltara, afinal, ao Brasil.
E, só aquele fato de ver o Aguiar, sempre feliz, rico, rejuvenescido com o passeio à Europa, ainda mais o fez entristecer.
Coruja recolheu-se, finalmente, foi para o seu quarto, que era o pior da casa de D. Margarida, fechou-se por dentro e deixou-se cair em uma cadeira, a soluçar como uma criança que não tem pai nem mãe.