O Coruja/III/XXIII
E de então em diante ia ficando cada vez mais triste, mais concentrado e mais esquivo de tudo e de todos.
Não tinha afinal um canto seguro, no qual, fugindo aos desgostos da rua, pudesse refugiar-se com o seu tédio, porque na própria casa onde morava é que a má vontade mais se assanhava contra ele; o infeliz em troca de toda a sua dedicação pelas duas desgraçadas senhoras que tomara à sua conta, só recebia constantes e inequívocas provas de ressentimentos e até de ódio.
Ah! o Coruja estava bem convencido de que aquela gente, se não precisasse dele para não morrer de fome, também o enxotaria de junto de si, como se enxota um cão impertinente.
E, pois, sem carinhos de espécie alguma, sem o menor consolo, lá ia vegetando entre aquela família, que não era sua senão no peso, e entre aquela mesquinha e perversa humanidade, que o apupava, que o insultava e que nunca lhe estendera a mão com outro fim que não fora pedir uma esmola ou dar uma bofetada.
Isto, além de o tornar mais sóbrio, afrouxava-lhe a coragem, enfraquecia-lhe o caráter, a ponto de lhe trazer um mal, que ele até aí não conhecia: a revolta contra a própria sorte e o desamor à vida.
Dera para resmungão: falava só, gesticulando zangado; afetava contra seus semelhantes uma grande raiva toda de palavras, desesperando-se ainda mais por não poder deixar de ser bom, por não poder dominar o seu irresistível vício de socorrer os desgraçados e despir-se de tudo para suavizar as necessidades alheias; sofrendo por não conseguir ser mau como qualquer homem e procurando esconder da vista de todos as boas ações que praticava, como se procurasse esconder uma falta vergonhosa e humilhante.
E tal era agora o seu empenho em disfarçar a bondade que, um dia, depois de muito discutir com um taverneiro, a quem ele não pagara no prazo marcado uma velha conta de vinho, feita pelo marido de Inez, viram-no pôr-se a rir, estranhamente satisfeito, porque o credor lhe gritara em tom de descompostura:
— Mas eu não devia esperar outra coisa de quem aproveita a moléstia de um desgraçado para se meter com a mulher dele!
Este modo de explicar a residência de André na casa da velha Margarida não pertencia exclusivamente ao taverneiro, mas à rua inteira, e ninguém perdoava àquele a suposta concubinagem.
Mas também se ele, em vez de defender-se de tais acusações, rejubilava-se com elas, mostrando-se pelos homens e seus juízos de uma indiferença de cínico!...
Agora, só um nome tinha o poder de o despertar ainda: o nome de Teobaldo.
Era, porém, tão difícil chegar até Sua Excelência!... havia sempre durante o dia na antecâmara do Sr. ministro tanta gente à espera de chegar a sua ocasião de falar com este!... E durante a noite a casa de Teobaldo tinha um tal aspecto de festa, um tal movimento de casacas e vestidos de seda, que o Coruja muito poucas vezes se animou a procurar o amigo depois da mudança.
— Mas para que iludir-se? Teobaldo não podia gostar de semelhantes visitas!
E, com efeito, a presença de André o constrangia bastante.
Não que já não o estimasse de todo; ao contrário sentia prazer em vê-lo, de vez em quando, apertar-lhe a mão e trocar com ele idéias que não trocaria com ninguém; gostava ainda de arrepiar os arminhos do seu espírito roçando a lixa daquele caráter de ferro; gostava de ouvir-lhe aquelas meias palavras, sinceras e ásperas; preferia ainda um gesto de aprovação feito pelo Coruja a quantos elogios lhe fizessem os outros; gostava muito de tudo isso, mas não ali, em presença de tantas testemunhas e exposto ao ridículo.
Estimava-o, não havia dúvida que o estimava, porém sentia-se mal à vontade e aborrecido, quando o pressentia chegar pelo barulho da sua grossa bengala de coxo.
Tanto que uma ocasião, vencendo todos os escrúpulos, disse-lhe abertamente:
— Queres saber de uma coisa, André? Desconfio que estas visitas que me fazes são para ti um verdadeiro sacrifício! Acho que o melhor é procurar-te eu em tua casa, de vez em quando, hein? Que achas?!
— É! resmungou o Coruja, abaixando a cabeça.
— Não te parece melhor?... Bem sabes que sou o mesmo; sou teu amigo e no meu conceito estás acima de todos, mas é que aqui não conseguimos nunca ficar à vontade; não podemos conversar livremente, e deves concordar que isto para mim é nada menos que um martírio! Que diabo! Prefiro não te ver senão quando estivermos a sós, completamente a nosso gosto! Não és da mesma opinião?
Coruja mastigou algumas palavras em resposta, sem levantar os olhos, muito vermelho, e depois retirou-se, todo atrapalhado à procura do chapéu que ele aliás conservara debaixo do braço durante a visita.
E foi quase a correr que atravessou a chácara e ganhou a rua, como um criminoso que foge do lugar do delito.
Notaram em casa que ele esse dia falou e gesticulou sozinho mais do que era de costume, com a diferença que desta vez os seus solilóquios acabavam sempre em lágrimas.
Dois meses depois, em um domingo, Teobaldo fora surpreendê-lo em casa às nove horas da manhã.
Ia de chapéu baixo, fato leve e bengalinha de junco. Em vez do cupê, que costumava usar com duas ordenanças, vinha de tílburi.
Entrou gritando desde a porta da rua pelo Coruja:
— Onde estava aquele malandro! Talvez ainda metido na cama!? Pois que não fosse tão epicurista e viesse cá para fora receber os amigos!
André, que trabalhava fechado no quarto, largou de mão do serviço e correu ao encontro dele; ao passo que Inez fugia para junto da mãe, muito sobressaltada por aquela voz argentina e cheia de vida, que espantava a miserável tristeza da casa com a sua risonha expressão de estroinice fidalga.
— Ora venha de lá esse abraço, mestre Coruja!
E assentando-se com desembaraço em uma cadeira da sala de jantar:
— Sabes! Vim disposto a almoçar contigo. Hoje estou perfeitamente livre; minha própria mulher supõe-me fora da cidade. Ninguém desconfia de que eu estou aqui. Ah! eu precisava passar algumas horas completamente despreocupado, precisava descansar e então lembrei-me de fazer-te esta surpresa; cá estou!
Ergueu-se, foi até ao parapeito do quintal; esteve a olhar por algum tempo para um tanque cheio de roupa que lhe ficava defronte dos olhos e disse depois suspirando:
— Como tudo isto é bom e consolador! É como se eu voltasse ao meu passado; estou vendo o momento em que entra por aquela porta, com a sua lata na cabeça, aquele velho que nos levava todos os dias o almoço e o jantar. Como se chamava, lembras-te?
— Sebastião.
— Era isso mesmo. Sebastião. Muito fiz eu sofrer o pobre diabo! Recordas-te de uma vez em que o obriguei a improvisar um bestialógico encarapitado sobre a mesa e com uma garrafa equilibrada na cabeça? Bom tempo!
Coruja erguera-se para ir à cozinha ver o que havia para almoçar, mas o outro, percebendo-lhe a intenção, gritara:
— Olha! Vão chegar aí umas coisas que mandei vir do hotel.
— Bom, disse André, risonho como havia muito tempo não o viam, porque o nosso almoço, força é confessar, não vale dois caracóis!
— Com certeza já tivemos outros piores! Replicou Teobaldo, encaminhando-se também para a cozinha. Deixa estar que ainda havemos de fazer aqui um jantar. Nós dois!
— Quando quiseres!
— Nós dois é um modo de dizer! Tu não entendes patavina a respeito de cozinha!
— Mas posso servir de teu ajudante.
Pouco depois chegou a encomenda do hotel. Teobaldo foi por suas próprias mãos abrir a caixa da comida e, para cada prato que tirava de dentro dela, tinha uma exclamação de afetado entusiasmo:
— Bravo! bravo! Bolinhos de bacalhau! Costeletas de porco! Maionese de camarões! Peixe recheado! Pato assado!
E, tão à vontade se mostrava na pobre casa de D. Margarida, que ninguém diria estar ali o ministro mais amigo da etiqueta, mais apaixonado pela sua farda e pelas suas bordaduras de ouro, como por tudo aquilo que fosse brilhante, luxuoso e ofuscador.
— Como vai a velha? perguntou ele.
— Assim, respondeu Coruja. Pouco melhor.
— Ah! está doente?...
— Ora! Pois então não sabes? Eu já te falei nisso por mais de uma vez.
— É exato, agora me lembro.
— E a filha?
— Essa está boa. Vou chamá-la.
— Não, deixa-a lá por ora. Virá depois. Olha. Recomenda-lhe que nos arranje o almoço, enquanto conversamos no teu quarto. Onde é?
— Aqui. Entra.
No quarto, o ministro, sem se mostrar nem de leve impressionado pelo aspecto de miséria que o cercava, tirou fora o paletó e pôs-se a examinar o que havia sobre a mesa do Coruja.
O grande maço de anotações históricas, já suas conhecidas, era a coisa mais saliente entre todo aquele oceano de papéis e alfarrábios.
— Está muito adiantado? perguntou, batendo com o dedo sobre as notas.
— Pouco mais. Ultimamente não tenho podido fazer quase nada. Ainda me falta muito para concluir a obra.
— Pois é tratares de concluir, que eu te arranjarei a publicação dela à custa do governo.
— Prometes!
— Ora!
— Ah! só assim tenho esperanças de não perder o meu trabalho, porque juro-te que já ia-me fugindo o gosto...
— Podes ficar certo que a tua história será impressa.
— Não calculas o alegrão que me dás com essas palavras!
— E então digo-te mais: a obra será adotada na Instrução Pública e transformar-se-á para ti em uma mina de ouro!
— Que felicidade!
— Hás de ver!
E na sua febre de fazer promessas agradáveis, Teobaldo perguntou a razão por que o amigo não se metia aí em qualquer repartição do Estado.
— Ora, que pergunta! Bem sabes que não é por falta de esforços da minha parte...
— Pois digo-te que agora também serás empregado. É verdade que a época não é das melhores para isso: os bons lugares estão todos preenchidos, mas...
— Não! qualquer coisa me serve... declarou André. Tu bem me conheces; desde que não haja necessidade de concurso...
— Que diabo! Se eu pensasse nisto há mais tempo, já podias até estar com o teu emprego.
— Olha! Vê se me arranjas alguma coisa na Biblioteca. Isso é que seria magnífico!
— Homem! e é bem lembrado. Havemos de ver.
Assim conversaram até a ocasião de irem para a mesa.
O almoço foi alegre e comido com bastante apetite. Inezinha preparou-se antes de aparecer ao senhor ministro, mas, apesar das insistências deste, não tomou lugar à mesa, para ficar servindo.
Dona Margarida, lá mesmo da cama onde continuava amarrada pelo reumatismo, dirigia o serviço, lembrando de quando em quando à filha tudo aquilo que podia ser esquecido.
— Areaste o paliteiro? perguntava ela do quarto. Se não areaste é melhor por o outro de louça, que está na gaveta do armário.
— Já pus, sim senhora.
— Não te esqueças dos guardanapos. Os melhores são os de debrum encarnados.
— Eu sei, mamãe.
— Olha que o café esteja pronto quando eles acabarem! Mas o Sr. Teobaldo talvez prefira o chá. Pergunta-lhe.
— Café! café! respondeu o próprio Teobaldo, de modos a ser ouvido pela velha.
E então uma conversa de gritos se entabulou entre os dois.
— S. Exa. nos desculpe, pedia a dona da casa, bem sabe quais são as nossas circunstâncias!
— Ora, por amor de Deus, D. Margarida! Acredite que há muito tempo que eu não almoço tão bem ou pelo menos com tamanho prazer.
— Que diria se eu não estivesse presa a esta cama! Não acredito que Inez tenha dado conta do recado!
— É uma injustiça que faz à sua filha. Está tudo muito bom.
E dirigindo-se a Inez:
— Tenha a bondade de levar este cálice de vinho à senhora sua mãe que eu vou beber à saúde dela.
— Não sei se não me fará mal! gritou logo a velha.
— Este só lhe pode fazer bem, respondeu Teobaldo, é uva pura!
Depois do café, Teobaldo esteve alguns instantes no quarto da velha, pediu-lhe licença para lhe deixar sobre a cômoda uma nota de cinquenta mil réis, dinheiro que ele depositou ao pé de um velho oratório, dizendo:
— É para a cera dos seus santos.
A velha agradeceu muito comovida e teria contado pelo miúdo da sua história, se a visita não arranjasse meios de afastar-se, declarando que ia para o quarto do Coruja encostar um pouco a cabeça.
E Teobaldo, tendo ainda conversado com o amigo enquanto dava cabo de um charuto, estirou-se melhor no trôpego capanê em que estava e adormeceu profundamente.
Coruja veio na ponta dos pés até à sala de jantar e, concheando a mão contra a boca, disse em voz baixa:
— Agora, nada de barulho, que Teobaldo está dormindo!