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O Ermitão de Muquém/III/VI

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Inimá, embrenhado com seus companheiros nas matas vizinhas, escutava ao longe com desespero na alma aqueles festivos e entusiásticos rumores aclamando e vitoriando seu poderoso e feliz rival. Doze sóis havia que o desditoso cacique, homiziado nos covis das feras, tragava na solidão o fel peçonhento do ciúme, aguardando com impaciência a hora da vingança.

Entre os companheiros de Inimá, que com ele se tinham salvado da desastrosa derrota de sua expedição, havia um irmão de Guaraciaba, que sua mãe a gentil e graciosa Naumá tinha tido do esbelto e robusto Andiroba antes que Oriçanga a recebesse como esposa em sua taba. Anhambira, este era o seu nome, era um jovem guerreiro igual em idade a Inimá e mui semelhante a ele, quer nas feições do rosto, quer na estatura e na galhardia do porte; desde a infância ligaramse um ao outro pelos laços da mais estreita amizade; eram sempre companheiros inseparáveis em todos os jogos e em todos os trabalhos e empresas, e ao vê-los assim tão semelhantes um ao outro julgar-se-ia serem dois irmãos gêmeos. Anhambira seguira a seu amigo nessa expedição, que teve tão deplorável resultado, e já Guaraciaba tinha vertido amargo pranto sobre a sorte de seu irmão, julgando-o morto ou perdido como o resto de seus companheiros. Os outros guerreiros, que com Inimá se achavam na floresta, eram também amigos dedicados, fiéis a seu chefe até a última extremidade, e prontos a executar pontualmente as suas ordens, quaisquer que elas fossem.

Anhambira, posto que como amigo de Inimá fosse infenso a Itajiba, amava muito a sua irmã, e logo em sua chegada tinha pedido a seu chefe e amigo que o deixasse ir às tabas vê-la e abraçá-la; mas Inimá jeitosamente se opôs a isto, e o dissuadiu fazendo-lhe ver que Itajiba era cruel e suspeitoso, e que seu aparecimento nas tabas poderia ser funesto; dizia demais, a seu amigo, que não poderia passar um instante sem a sua companhia, que era o único alívio e conforto que ainda lhe restava na horrível solidão em que se achava; que no dia do noivado poderia ele ir ver sua irmã e lhe ficava livre voltar ou não para sua companhia. Anhambira, que tinha coração leal e singelo, e não querendo contrariar a seu amigo em ocasião tão penível e cruel, acreditou em suas palavras e esperou.

De feito, como chegasse o terceiro dia da festas nupciais, ao pôr-do-sol Inimá disse ao seu amigo:

— Anhambira, eis aí chegado o dia em que Itajiba vai ver coroados todos os seus desejos recebendo por companheira tua formosa irmã, e em que eu, amaldiçoado pelos céus e repelido pelos homens, irei longe daqui pôr termo a esta odiosa existência. Vai, meu amigo, vai ver e abraçar tua bela e feliz irmã e esse teu novo irmão que não conheces. Possas tu viver junto deles vida longa e feliz, e não te esquecer jamais do teu infortunado amigo, que ralado de amarguras, abandonado pelo céu e pelos homens, só poderá encontrar repouso no seio da morte. Vai, Anhambira, e recebe o meu último e doloroso adeus!

Anhambira respondeu-lhe chorando:

— Quão mal me conheces tu, Inimá, a mim, que sempre te amei e te acompanhei em todos os trances da vida! como acreditas que eu possa abandonar-te hoje, quando mais precisas de um amigo leal e dedicado que te alente e console no infortúnio em que jazes?... irei somente ver minha irmã e dizer-lhe o último adeus, pois não poderei viver em companhia desse estrangeiro teu rival e teu algoz, e voltarei a teu lado para acompanhar-te sempre e a toda parte que fores. Adeus, que breve estarei de novo contigo.

Nobre e leal mancebo! mal sabia ele que horríveis e sinistros pensamentos volviam em sua mente obcecada pelo ódio àquele a quem votava tão sincera e estremosa amizade! Anhambira saiu acompanhado de outro guerreiro, que Inimá mandara acompanhá-lo; depois de terem atravessado grande extensão de mata chegaram às tabas, e costeando o rio passaram pelas fogueiras através de uma imensa multidão, que se entregava com entusiasmo a toda a espécie de divertimentos, até que chegaram a uma pequena taba retirada a pouco a distância da de Oriçanga, meio escondida entre moitas de coqueiros e outros arvoredos, e onde não chegava senão mui frouxamente o clarão e o ruído das festas.

— Espera aqui, diz o companheiro de Anhambira ao entrarem na taba; eu vou chamar Guaraciaba, e dentro em um momento ela aqui estará contigo.

— Como! volve-lhe Anhambira com surpresa, por que razão não poderei eu mesmo ir lá vê-la?

— Tu não vês, replica-lhe o guerreiro, que o teu aparecimento inesperado na taba do cacique iria excitar as suspeitas do desconfiado e sombrio Itajiba, que não te conhece e te tomaria pelo próprio Inimá? amanhã poderás, se quiseres, pendurar tranqüilamente a tua rede na taba de tua irmã, e passar teus dias ao lado dela; mas por hoje é preciso cautela ainda.

Anhambira com a ingenuidade de uma alma pura acreditou, e assentado em um leito de peles esperou refletindo consigo:

— Melhor é mesmo esperá-la aqui; não serei obrigado a ver esse homem orgulhoso e fatal, que é a causa da ruína do meu amigo.

Em um espaçoso salão da taba de Oriçanga, ornado com todo o luxo de que os selvagens podem lançar mão, achava-se reunido o que se poderia chamar a corte do velho cacique. Em um ângulo da sala Guaraciaba cheia de emoção, que dá a felicidade, recostada em uma fina rede ricamente entretecida de lindas e mimosas penas, como uma rolinha deitada em ninho de flores, mal tomava parte nos brinquedos e conversas das companheiras, que a rodeavam. Estas, assentadas a seus pés sobre macias peles ou esteiras delicadamente tecidas, brincavam e garrulavam como um bando de andorinhas em manhã de primavera. Um guerreiro simplesmente ataviado, como quem viera dos combates, e não de festas e regozijos, se aproxima respeitosamente dela, e diz-lhe:

— Guaraciaba, raio de luz, flor de beleza, esposa feliz do poderoso e invencível Itajiba, venho anunciar-te que teu irmão Anhambira é vivo, e se o quiseres, poderás vê-lo neste momento.

A estas palavras Guaraciaba salta alvoroçada fora da rede, como o filho da ema que acode pressuroso ao grito da mãe que o chama com o alimento no bico.

— Que dizes, guerreiro? exclama ela; é vivo Anhambira?... quero vê-lo e já. Neste feliz dia o céu como que porfia em colmar-me de todas as aventuras!

— Sim, Guaraciaba, teu irmão é vivo, está entre nós, e te espera não longe daqui; por milagre escapamos eu e ele ao furor dos inimigos; se desejas vê-lo já, acompanha-me.

— E por que não vem ele mesmo aqui apresentar-se?

— Porque sendo amigo íntimo de Inamá não quer aparecer diante de Itajiba, e deseja falar contigo a sós; por isso me enviou para fazer-te este pedido.

— Pois irei eu mesma vê-lo, visto não estar longe, e o trarei para a taba de meu pai, onde será sempre bem-vindo.

E Guaraciaba deixou suas companheiras, às quais disse voltava naquele momento, e acompanhou pressurosa ao guerreiro, que a guiou à cabana isolada em que se achava Anhambira.

Poucos momentos depois outro guerreiro de igual aparência aproxima-se com ar misterioso de Itajiba, que na outra extremidade da sala recebia as homenagens e felicitações dos que o rodeavam, e diz-lhe em voz baixa:

— Itajiba, queres saber quanto é fiel a esposa que possuis?

Sobressaltado com tão extraordinária pergunta, Itajiba responde:

— Estás louco, guerreiro! a que propósito vem a tua pergunta? quem melhor do que eu conhece a meiga e fiel Guaraciaba?

— Ah! Itajiba, não a conheces, não.

— Insolente! diz Itajiba impaciente; não fora hoje um dia de regozijo para todos e de venturas para mim, eu fizera punir teu indiscreto arrojo.

— Itajiba, volve-lhe o guerreiro sem abalar-se e abaixando ainda mais a voz, olha que Inamá é vivo e acha-se entre nós; se queres saber mais, acompanha-me por alguns momentos.

Itajiba, atônito e sem compreender bem o sentido das estranhas e intempestivas palavras do guerreiro, reflete e hesita um momento; olha para o ângulo da sala em que se achava Guaraciaba, e não a vê mais ali; estremece; um pensamento sinistro lhe atravessa de súbito o espírito, e no mesmo instante se esvaece como um relâmpago; seria um crime conceber suspeitas por mais leves que fossem, em qualquer tempo, quanto mais naquela noite, contra a mais pura e a mais adorável das virgens da floresta. Mas as palavras do guerreiro eram ambíguas, a curiosidade tão natural em tais circunstâncias agita o espírito de Itajiba, que entendeu que nada perderia em decifrar aquele mistério. Portanto lançando mão de um arco e flechas diz ao guerreiro: vamos, e acompanhou-o de perto. Alguns dos circunstantes observando aquela cena, de que nada compreendiam, e que tinha um não sei quê de inquietadora e sinistra, os acompanharam também a curta distância. Guiado pelo índio Itajiba chega à taba encoberta entre arvoredos, na qual Guaraciaba e Anhambira se abraçavam ternamente na suave efusão do amor fraterno.

Chegado à porta o guia brande um facho que trazia nas mãos, e que imediatamente lança um vivo clarão no interior da taba, e apontando para dentro murmura ao ouvido de Itajiba:

— Olha! não os conheces? Guaraciaba e Inimá!

E Itajiba vê distintamente Guaraciaba com os braços enlaçados ao colo de um jovem guerreiro, que no semblante e beleza do porte parecia perfeitamente a figura de Inimá!

— Infames! rugiu, e imediatamente estica o arco: voou zunindo o tiro, e os dois míseros irmãos, varados no peito por uma só flecha, rolaram no chão sem vida.

Instantaneamente outros fachos se acendem, e vêm alumiar com luz sinistra aquele medonho e miserando quadro. Ainda abraçados os dois infortunados irmãos se estorciam no chão nas últimas convulsões da agonia. Alguns vultos entram de tropel na taba gritando todos a um tempo; o grupo se condensa, reina a maior agitação e forma-se um tumulto infernal, que vai crescendo e se propagando de momento a momento. Em poucos instantes toda a tribo dos Chavantes se achava apinhada em volta daquele sítio fatal bramindo furiosos como um bando de javardos em torno do caçador imprudente que entre eles se envolveu. No meio de todo aquele tumulto e confusos alaridos o desgraçado Itajiba enfim pôde compreender que de um só golpe tinha matado Guaraciaba e seu irmão Anhambira, que ele não conhecia, mas de quem ela muitas vezes lhe falara com ternura. Que palavras poderiam exprimir sua desesperação neste trance cruel? Cego, desatinado e louco abre caminho com os robustos braços através da multidão, que se apinhava em torno dos dois cadáveres; quer arrancar a seta que os traspassou, e com ela mesma varando o próprio coração misturar seu sangue ao de suas inocentes e infortunadas vítimas; repelido porém pela turba, atira-se à toa como um possesso pelo primeiro caminho que se lhe oferece, sem destino e sem consciência do que faz.

Como um condenado escapado ao suplício, a boca entreaberta e arquejante, os olhos desvairados, os passos precipitados e vacilantes, passa como um espectro por entre as turbas atônitas: já está longe das tabas, mas caminha ainda, até que esbarra com o leito do rio, que diante dele desdobra seu esteiro límpido e profundo; mas nem isso o detém em sua desatinada carreira, e vai como um ébrio em delírio arrojar-se na torrente.

— Quem vai lá? brada de um lado uma voz áspera e breve.

Itajiba parou sobressaltado, e olha para o lado donde partira a voz: uma canoa estava amarrada à margem, e sentado à popa acha-se um vulto de porte altivo.

— Ainda há pouco, responde Itajiba, eu era Itajiba, o valente e glorioso chefe dos Chavantes; agora sou Gonçalo o foragido!

— Itajiba ou Gonçalo, como quer que te chames, não vás procurar a morte nas águas desse rio, que te repelirá de seu seio. Tens estreitas contas a ajustar comigo; tua vida me pertence.

— E tu quem és, que assim ousas falar-me?

— Pois já não conheces Inimá?

— Inimá!

— Sim, Inimá, esse que cuidaste atravessar com tua flecha no braços de Guaraciaba, mas que ainda aqui te espera para ultimar sua vingança.

— Cobarde! ah! quanto folgo de encontrar-te aqui! bem vejo que foste tu que urdiste a trama infernal que me perdeu...

— Pois pensavas acaso que eu de bom grado consentiria que tu, vil forasteiro, lograsses tranqüilamente a ventura que o céu me tinha destinado, nos braços daquela que desde a infância amei? nunca te dei direito de fazer de mim conceito tão mesquinho.

— Nem eu tão pouco consentirei que sobrevivas mais um instante à tua atroz perfídia...

Dizendo isto Itajiba furioso ia-se precipitar sobre Inimá; este porém com voz calma e firme o atalha:

— Acalma-te, Itajiba: estamos a sós, e sobra-nos o tempo. Entra nesta canoa, e vamos sós e bem longe daqui, seja onde for, tendo unicamente por testemunhas o céu, as florestas e este rio, decidir o nosso pleito.

Onde e como quiseres, contanto que esta noite mesmo decidamos a nossa sorte, diz Gonçalo com impaciência, e salta na canoa, que logo após vai vogando serena pelo Tocantins abaixo.

A noite já ia alta, sem luar, mas límpida e estrelada. Nenhum vento agitava o tope escuro dos arvoredos, que imóveis e silenciosos se miravam no espelho das águas ao longo de uma e outra margem, e o largo veio do rio serpeando majestoso e plácido por entre as selvas refletia no profundo regaço os mil fulgores do firmamento como vasta charpa azul matizada de luzentes pedrarias. Com o profundo silêncio e a paz solene e inalterável daquelas solidões formavam vivo contraste as cruéis e violentas tempestades que agitavam a alma dos dois miserandos rivais. Sombrios e taciturnos, sentados em face um do outro, Inimá à popa , e Itajiba à proa, abandonaram à mercê da torrente a canoa, que por largo tempo foi boiando sem remos serena e silenciosamente até sumir-se a grande distância das habitações dos índios. Ambos tinham tocado ao supremo grau do infortúnio; para ambos a existência se tinha tornado um flagelo contínuo, um tormento insuportável, e só viviam de ódio e desesperação. A ambos torturava igual ânsia de ao mesmo tempo esmagar o seu rival e de expirar a seus golpes: quereriam morrer estrafegando-se mutuamente em um abraço de panteras. Já largo tempo tinham vogado quedos e taciturnos à mercê das águas quando Inimá rompe o silêncio.

— Itajiba, a noite avança e se o sol ainda nos encontrar ambos vivos sobre a terra e em face um do outro, de pejo e horror pode voltar-nos o rosto e recuar a esconder-se de novo no seio do oriente. Cumpre que um de nós não veja mais a face do sol.

— Eu me coloquei à tua disposição, volve-lhe Itajiba levantando-se e empunhando as suas armas. Onde queres combater? Aqui mesmo dentro desta canoa, ou em terra?

— Onde quiseres.

— Pois bem; seja aqui mesmo: esta noite deve ser eterna para nós ambos. Inimá, tu me odeias, e tens razão, porque com minhas mãos arranquei sem piedade pela raiz todo esse teu futuro de glória e de amor com que desde a infância te embalavas. Eu te odeio, Inimá, e também com razão, porque de um só golpe vibrado nas trevas me precipitaste do fastígio do poder e da felicidade no abismo do opróbrio e da desesperação. A existência deve ser para nós ambos um odioso peso; devemos um ao outro nosso sangue: fácil e suave nos é agora pagar essa dívida sagrada. Combatamos pois aqui mesmo; porém de tal sorte, que nenhum de nós escape.

— Mas isso, Itajiba, não será talvez possível: de que modo o conseguíremos?

— Nada mais simples. Tu embeberás no teu arco a tua melhor flecha, e eu farei o mesmo; curvá-lo-ás com vigor e apontarás ao meu coração, eu farei outro tanto e apontarei ao teu; darei com o pé dois sinais; ao terceiro dispararemos a um tempo. Por este modo será impossível que ambos não sucumbamos, e eu morrerei satisfeito por ter-te arrancado a vida, e te perdoarei a morte que me dás pela vida odiosa de que me livras.

— Bem que eu quisera antes de expirar morder-te a carne e beber-te o sangue, aceito, Itajiba, aceito o combate tal qual propões.

Gonçalo propusera aquele estranho gênero de duelo, porque ansioso de pôr termo a uma existência que se lhe tornaria insuportável daquele dia em diante, receava que, como sempre lhe tinha sucedido, ainda desta vez a sorte o favorecesse dando-lhe uma completa vitória e prolongando-lhe uma vida que detestava.

Devia ser pavoroso de ver-se aquele estranho combate travado sobre as águas a horas mortas da noite em meio das solidões, tendo por arena uma estreita canoa, e por testemunhas as estrelas, que lhes prestavam escassa luz, e o rio, que lhes devia servir de sepultura. Quem por acaso visse da margem aqueles dois vultos sinistros a vinte passos apenas um do outro em temerosa atitude, com os membros esticados a encurvarem com furor o arco prestes e disparar, e projetando sombras colossais sobre o esteiro límpido das ondas, recuaria de horror cuidando ter visto os espectros da noite a combaterem por cima das águas.

Antes de pôr-se em atitude de combate, Gonçalo, que nos trances arriscados de sua vida nunca se esquecia de sua celeste protetora, beijou com fervorosa devoção a imagem da Santa Virgem, e disposto a morrer encomendou sua alma a Deus. Desta vez porém não se lembrou de tocar no talismã do cinturão, ou de propósito não o quis fazer, pois que deveras desejava morrer.

Itajiba bateu o pé no fundo da canoa o primeiro sinal; daí a um instante o segundo; ao terceiro as flechas voaram dos arcos a um tempo e cruzaram-se nos ares. Inimá, varado no coração, depois de cambalear um instante caiu de cabeça para baixo como enorme surubi escapado à rede do pescador, e a líquida sepultura, que o devorou para sempre, fechou-se de novo sobre seu cadáver remoinhado com lúgubre rumorejo. Gonçalo porém vacilou apenas, e conservou-se em pé. Acaso Inimá em tão curta distância teria errado o ponto? ou algum poder sobrenatural e misterioso lhe teria turbado a vista e desviado a seta? Nada disso era crível, e nada disso acontecera. A flecha bem despedida do arco de Inimá voou certeira ao peito esquerdo de Itajiba, mas caiu-lhe aos pés sem penetrar!

Mas como poderia isto acontecer a não ser por um milagre? perguntar-se-á. Milagre ou não, nesse fato teve Gonçalo a mais evidente prova da valiosa proteção da Santa Virgem, por quem sempre tivera a mais viva e fervorosa devoção. A flecha do selvagem encontrou no peito de Gonçalo a grossa medalha de ouro, em que estava esculpida a imagem da milagrosa Santa, e caiu embotada a seus pés. Amparado por aquele escudo celestial o seu corpo nem de leve foi tocado, e sua alma foi salva dos caminhos da perdição.

Será um acaso? ninguém o dirá; foi manifesta proteção do céu, que queria converter um facínora em instrumento da divina misericórdia para alívio dos males da humanidade.