O Gaúcho/I/IV

Wikisource, a biblioteca livre

IV.

O PADRINHO.

 

Soavam trindades na torre da matriz.

Manoel Canho ergueu-se e esperou de cabeça descoberta pela ultima badalada; depois do que sahiu na volta da rua das Palmas onde morava o coronel.

Estavam á porta, o cabo de ordens e uma recua de camaradas paizanos ao serviço do coronel. Não havia então na campanha do sul homem ou estancieiro importante que não se acompanhasse de um bando de gaúchos. O numero desses camaradas, que lembram os acostados da idade média, indicava o gráo de preponderância e riqueza do patrão.

Voltara Bento Gonçalves do quartel, e emquanto serviam a ceia, foi ter na salla com seu prisioneiro, D. Juan Lavalleja.

O caudilho dava signaes bem visíveis de mau-humor, no senho carrancudo e na impaciencia com que trincava a ponta do cigarro de palha. Por momentos arrependia-se do que tinha feito e lamentava não ter morrido combatendo contra Fructuoso Rivera ou Bento Gonçalves, antes que sujeitar-se á humilhação de render as armas. E a quem? A brasileiros.

Não obstante, no meio desta apoquentação lá surdia no animo do ambicioso caudilho uma idéa, que elle ruminava com a mesma pertinacia do dente a morder a palha do cigarro.

Com a entrada de Bento Gonçalves, a sofreguidão de Lavalleja augmentou. Correspondendo apenas com um gesto seco á saudação do hospede, ergueu-se e começou a percorrer a varanda de uma a outra ponta, em passo de carga. Pelo que lembrou-se o coronel de assobiar o toque de avançar á marche e marche.

Ou porque o gracejo do hospede o excitasse ou porque era chegado o momento da explosão, Lavalleja veiu como uma bomba parar em face do coronel, e exclamou com uma voz taurina, atirando aos ares um murro furioso.

— Coronel, o senhor não é um homem?

Como aquella palavra abalou Bento Gonçalves, que achou-se em pé de repente, affrontando em face o oriental! Mas não passou de um primeiro assomo; a alta estatura que a indignação erigira perdeu a rigeza ameaçadora: no rosto annuviado perpassou o sorriso plácido e sereno das grandes almas, que uma cholera pequena não conturba. São essas almas como o grande oceano; qualquer borrasca não o agita; para subvertel-o é preciso o tufão dos Andes.

— O senhor é meu prisioneiro e hospede desta casa, general, disse Bento Gonçalves sentando-se com a maior calma. Em outro momento e outro logar, eu lhe mostraria que um brasileiro não vale um, mas dez homens; emquanto que são precisos dois castelhanos para fazer meio brasileiro. O senhor deve saber disto.

— Outrotanto lhe podia eu retorquir; mas não estou agora para bravatas. Digo e repito que não é um homem, Sr. Bento Gonçalves, pois si o fosse, seria o primeiro de todo este Rio Grande. Em vez de coronel se faria general. Que vai o commando desta fronteira para quem pôde, estendendo a mão, apanhar a presidência da provincia?

— Que pretende dizer com isto general?

— Caramba! No momento em que Bento Gonçalves quizer, o Rio Grande do Sul será um estado independente como a Banda Oriental. Está bem claro agora? Para arrancar minha pátria ao jugo do império bastaram trinta e três heroes; bem sei que um delles era D. Juan Lavalleja. O senhor que tem por si toda a campanha, deixa-se aqui ficar bem repousado, á chupitar seu mate como uma velha; e pica-se porque lhe digo que não é um homem. Mas de certo que não o é. Minha mulher, D. Anna Monteroso, teria vergonha de praticar semelhante fraqueza; ainda que é mulher de quem é, todavia...

— De que lhe serviu ao senhor, diga-me, fazer a divisão da Cisplatina, retorquiu o coronel com ironia. Lá está seu compadre, dentro do queijo; e eu obrigado bem contra minha vontade a desarmar o heróe da independência de sua pátria, como um rebelde.

— Lá isso não vem ao caso; é a sorte da guerra. Hoje ganhou meu compadre a partida, amanha chegará minha vez; todavia cá entre nós quem manda é o mais forte; não somos governados por um menino de dez annos.

— Quem governa é a lei; respondeu Bento Gonçalves em tom seco.

— Burla, coronel; este mundo é governado por duas cousas: a forca ou a astucia. O mais, isso de lei, de liberdade e justiça, são palavras sonoras para o povo, que no fim de contas não passa de um menino a quem se acalenta com um chocalho... O Rio Grande lhe pertence, coronel, como a Banda Oriental á mim, D. Juan Lavalleja.

— Vamos ceiar, general.

— Então deixa passar a occasião?

— Sou brasileiro; nasci cidadão do império; e assim heide viver, emquanto houver liberdade em meu paiz; porque para mim a liberdade não é uma burla para enganar o povo, mas o primeiro bem, que não se perde sem deshonra, e não se tira sem traição. Quando eu me convencer que para ser livre, é preciso deixar de ser imperialista, não careço que ninguém me lembre o que me cabe fazer. O coronel Bento Gonçalves saberá cumprir seu dever.

Dando esta resposta com tom enérgico, o rio-grandense guiou o caudilho á varanda onde tinham posto a ceia.

Em uma das extremidades da longa mesa, estavam collocados dois pratos com talheres de prata destinados ao dono da casa e seu hospede. Diante delles fumegava um grande assado de couro, e um peixe que enchia a immensa frigideira de barro. Havia além disso hervas e legumes.

Já estavam na varanda os gaúchos da comitiva do coronel, osquaes lhe deram as boas noites, O Canho adiantou-se para beijar a mão de Bento Gonçalves que era seu padrinho.

— Oh! Estás por cá, Manoel?

— Cheguei esta tarde.

— Como vae a comadre?

— Bôa, graças a Deus.

— Estás um rapagão! Abanca-te; vamos ceiar.

O coronel tomou logar á cabeceira, dando a direita ao hospede. Na outra ponta da mesa sentaram-se os camaradas e Manoel, em bancos de madeira; cada um tirou um prato da pilha que havia no centro e collocou-o diante de si.

Depois de servido o dono da casa e o hospede, os pratos eram levados pelo escravo copeiro para a outra extremidade onde os gaúchos Iam. tirando seu quinhão com a faca de ponta que traziam á cinta.

— Vamos ao peixe, general; disse Bento Gonçalves servindo a Lavalleja. Então, Manoel, andas de vadiação ou isto é volta de negocio?

— Nem uma, nem outra cousa. Vim só para fallar a meu padrinho.

— Pois falla, rapaz; não percas tempo.

— É sobre um particular.

— Está bem; então logo mais.

Terminada a ceia emquanto os outros tomavam mate e fumavam, o coronel fez ao gaúcho um gesto para que este o acompanhasse á salla.

— Que particular é este? Alguma gaúchada, aposto?

— Vim pedir a benção de meu padrinho, para me dar felicidade, e mesmo porque talvez lá me fique!

— E para onde te botas?

— Para Entre-Rios.

— Buscar o que?

— O homem que matou meu pae!

— Hein!... Depois de tanto tempo?

— São cousas que não esquecem nunca.

— Não esquecem bem sei; mas se perdoam; talvez o sujeito esteja arrependido.

— Melhor; Deus o absolverá.

— Visto isto, estás decidido?

— Desde muito tempo. Ha cinco annos a esta parte que descobri o homem lá em Entre-Rios, e então pela festa vou sempre para aquellas bandas, vêr si ainda lá está.

— Estiveste invernando-o antes de charqueal-o? replicou o coronel a rir.

— Sabe Deus quanto me custou deixal-o socegado todo este tempo. Mas eu precisava trabalhar primeiro, para que a mãi ficasse com alguma cousa. Tudo pôde acontecer; e afora eu não tem ella quem a ajude.

— E Bento Gonsalves não está aqui, rapaz?

— Meu padrinho tem muitos por quem olhar; não pôde chegar para todos. Si eu não voltar, sempre ficará com que accender o fogo.

— Que diz tua mãi a tudo isto?

— Ella não sabe.

Bento Gonçalves deu duas voltas pela salla.

— Escuta, Manoel. Teu coração te pede o que vaes fazer? Sentes que sem isso não poderás viver dencansado? Falla verdade.

— Si eu não vingasse o pai, elle me renegaria lá do céo e não quereria para filho um poltrão ingrato.

— Com a breca! Meu officio não é de padre! exclamou impetuosamente o coronel. Vae, rapaz; segue teu impulso. Tenho fé em que hasde honrar as barbas de teu padrinho; si chegar tua hora, o que não hade succeder, descança em paz, que eu velarei sobre tua mãi.

— Obrigado, , meu padrinho; bote-me sua benção.

— Deus te, abençoe e te acompanhe, Manoel.

Beijou o gaúcho a mão vigorosa do coronel, que; ria-se estrepitosamente para desfarçar a commoção.

Quando Manoel recolhia-se á pousada, ouviu uns sons de guitarra coados pelas frestas esclarecidas de uma rotula da visinhança. Ao som do acompanhamento arrastado, uma voz maviosa, de timbre infantil, disia com terna expressão, uma cantiga brasileira. O gaúcho apezar de preocupado pôde ouvir as seguintes cópias.

A minha branca pombinha.
Com tanto amor a criei;
Depois de bem criadinha,
Fugiu-me; por que, não sei.

Quis beijar o seio dela,
Bateu as azas, voou;
A minha pombinha bella,
Foi gavião que a levou.

— Bravo, Catita! exclamou a voz do Lucas Fernandes.