O Gaúcho/I/V

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V.

O PAREO.

 

Dias depois, já em Outubro, na salla de uma pousada da província de Entre-Rios, estavam reunidos vários andantes, invernistas e tambem alguns capatazes da, visinhança.

Entre outros pousara ali um chileno que vinha de Mendoza. ou Cordova, e contava atravessar toda a campanha até o Rio Grande do Sul. Espécie de mercador ambulante, mixto de mascate e de aventureiro, costumava elle percorrer as cidades e povoações do interior á cata do bom negocio, como da bôa vida.

Trazia duas ou três mulas carregadas com uma partida de fazendas de lã e seda, porém especialmente de chapéos de chile, pallas de vicunha, e guarnições de prata para arreios de montaria. De caminho ia chatinando a sua mercadoria, e comprando animaes, que mais adiante negociava, si lhe offereciam bom lucro.

Quando tinha a bolsa recheiada, e achava encanto no logar, deixava-se ficar uns oito ou quinze dias, quantos bastavam para concluir alguma aventura amorosa, ou para tirar a sua desforra dos parceiros que no jôgo da primeira lhe haviam limpado as onças.

Ao cabo de uma ou duas semanas, partia-se uma bella manhã, mais ligeiro da bolsa, porém contente de si, e prasenteiro sempre; levava a alma cheia da plena confiança que adquire o homem errante, habituado â boa e á má fortuna, affeito ao sól e a chuva.

Neste circuito, muitas vezes consumia o nosso chileno dois ou três annos. Frequentemente chegava até Sorocaba, onde a grande feira de animaes costuma reunir em maio grande numero de marchantes de diversas paragens. Estes concursos têm grande encanto para o viajante que pôde assim reviver as recordações de cada terra por onde passou. Além disso, na mesa do jogo e nas apostas, corre o ouro a rodo: fazem-se pareos fabulosos que affrontam os mais destemidos.

Estas cousas, o mascate gostava de vêr para contal-as mais tarde n’algum ponto remoto, onde elle podesse figurar como heróe da historia, no meio de alguma roda de bonitas muchachas.

Vendidas todas as fazendas, e. apuradas as berganhas feitas pelo caminho, voltava o chileno a provêr-se de uma nova carregação para continuar a vida nômade a que se habituara desde a infância. Essa locomoção constante era um elemento de sua existência; seu espirito superficial saciava-se logo das impressões de qualquer logar, e carecia de uma diversão.

As pessoas, reunidas na varanda, pitavam o infallivel cigarrito de palha, sorvendo a goles o mate chimarrão. A conversa, frouxa em começo, veiu a cahir sobre a gineta, que é juntamente com as historias de briga e namoro o thema favorito da conversa dos gaúchos na campanha.

— Pois, senhores, é o que digo; exclamou o chileno. Nenhum será capaz de montar a égoa que trago ahi.

— Talvez seja ella tão chiquita, D. Romero, que um homem não a possa montar, e sómente um gambirra; acodiu com ar sardonico um dos camaradas.

Os outros applaudiram.

— Uma cousa é rir, amigos, e outra fazer: redarguiu o chileno.

— Pois sem duvida que se ha de montar, D. Romero; disse um invernista de S. Paulo.

— Quer experimentar?

— Mande o senhor puxar a sujeitinha cá para o terreiro! disse erguendo-se um paraguayo.

D. Romero dirigiu-se ao dono da pousada:

— Faz favor, amigo, para satisfazer aos senhores.

Emquanto se foi buscar o animal que estava preso á soga no pastinho, contou D. Romero, como em caminho o apanhara de sorpreza perto de um desfiladeiro, a três dias passados. Desde então fizeram elle, e os dois camaradas que trazia, os maiores esforços para montal-o; mas desistiram.

— Ainda não encontrei quem se atrevesse! concluiu o chileno.

Um sorriso incrédulo, no qual se embebia soffrivel dose de arrogância e motejo, circulou pelos campeiros. — Por ventura os senhores duvidam? perguntou D. Romero assombrando-se.

— Não se duvida do conto, mas do animal, que seja como quer o amigo; e sinão veremos.

— O senhor vem lá da terra onde se monta em carneiros ou lhamas, como lhes chamam; disse outro companheiro.

— Com licença, tenho, visto os melhores ginetes e também entendo do riscado.

— Topa o senhor alguma cousa?

— Tudo, amigo. Tão guapa estampa de animal, não quero que haja em toda esta campanha até Chuquisada. Em Buenos-Ayres, Montevidéo, ou Porto-Alegre, o ponto é apresental-a que logo me. choverão as onças. Pois, senhores, si algum dos presentes fôr capaz de montal-a, a egoa é sua.

— Valeu! exclamou o paraguayo estendendo a mão ao chileno.

— Palavra de D. Romero.

— Bravo! exclamaram em coro. Venha a rapariga.

—r Ei-la ahi! disse o dono da pousada apontando.

Ao lado da casa, junto á mangueira, apparecêra com effeito o animal, trazido por um rapazinho que servia de pião. Não tiveram, porém, os companheiros tempo de examinar a egoa; porque instantaneamente achou-se ella no pateo diante do alpendre. Com dois corcovos unicamente devorára a distancia de muitas braças, que separava da casa.

Si não fosse tão ligeiro, o rapazinho não escaparia da fúria com que a egoa se arrojara para mordel-o; felizmente conseguiu elle alcançar o moirâo, onde passou a laçada do cabresto, pondo-se fora de alcance.

Na presença da gente que a cercava, a egoa estacou, raspando o chão com a pata arminada de branco. Pôde-se então admirar-lhe a perfeição da estampa. Desta vez, contra o costume, não havia exageração da parte do chileno: era com effeito um soberbo animal.

Talhe esbelto e fino sobre alta estatura; cabeça pequena, collo cintado e garboso; pello qual se encrespavam as longas crinas, esparsas como os anneis de basta madeixa; a anca roliça; ligeiramente bombeada e ondulando com os reflexos ardentes do luzidio pello; os ilhais a se retrahirem com um espasmo nervoso; e finalmente uma roupagem baia, que nos cambiantes luminosos parecia velludo tecido a fio de ouro; tal era a imagem viva e palpitante que os gaúchos tinham diante dos olhos.

Animada por um assomo de cholera, essa belleza equina, desenhava na imaginação daquelles homens os contornos voluptuosos de alguma gentil morena da redondeza, quando succedia irritat-a uma palavra ou gesto de seu namorado. Ao mesmo tempo despertavam no animo de cada um os brios de picador, embora o fero olhar que desferiam as grandes pupillas negras da egoa, soffreasse os impetos dos mais destemidos.

De momento a momento, aspirava o indomito animal uma golphada do vento agreste dos pampas. Escapava-lhe então do peito um nitrido plangente e merencório, que enternecia, como o soluço da selvagem mãi plorando o filho perdido.

Passado o primeiro movimento de curiosidade, e-feitos na linguagem pittoresca da campanha os elogios do lindo animal, aproximaram-se todos, fechando o circulo em torno do moirão.

Nesse instante ergueu-se do alpendre, onde estivera deitado sobre o pellego, um gaúcho, que veiu recostar-se ao parapeito. Ninguém ali o conhecia, a não ser o dono da pousada, com quem trocou algumas palavras.

O desconhecido chegara durante a noite e vinha de longe ao que parecia. Estava descansando da jornada, quando o borborinho das vozes, e as risadas que soltavam os andantes, o despertavam. Excitado da curiosidade, pôz-se a contemplar a scena do terreiro, que elle via perfeitamente daquella posição elevada.

Fora longa e renhida a luta dos piões com o animal, antes que lhe deitassem a mão. Em se adiantando algum mais affouto, a egoa juntava e de um salto espantoso se arremessava longe, disparando aos ares o couce terrível, e encrespando o pescoço para morder.

Conheceram afinal que era impossível levar sua avante pelos meios ordinários. Foi então laçado o animal pela garupa em um dos corcovos, e jungido ou antes enrolado ao moirão. Preso assim da cabeça e dos quadris, ficou tolhido de todo o movimento; mas um tremor convulso percorria-lhe o corpo, e a polpa da narina trepidava com as baforadas do hálito ardente, que se coalhavam na fria temperatura da manhã como frocos de fumaça.

Em um ápice estava a égua arreada. Eram a cincha, o peitoral e as rédeas, feitos de couro cru, que lá chamam guasca, e depois de seco resiste ao aço.

— Quem vai, gente? perguntou um da roda.

Ninguém respondeu.

— Esfriou-lhes a gana! Exclamou o chileno com riso motejador.

— Eu cá estava à espera dos senhores para não dizerem que lhes tomava a mão, disse afinal o paraguaio. Visto ninguém querer, vamos nós bailar, rapariga.

— Nada, o amigo que primeiro apostou, deve ter a dianteira. Não é, senhores?

— Pois decerto.

— Então, perguntou o paraguaio dirigindo-se ao chileno: o animal é de quem montar. Está dito?

— E escrito.

— Não há mais arrepender?

— Palavra de um guasca. Arrebenta, mas não arrepende.

— Bravo! exclamaram em roda.

Para ter jeito de montar, afrouxou o paraguaio o laço que prendia os quartos do animal ao tronco; e ajustando as rédeas, pôs o pé na soleira do estribo.

Imediatamente aos olhos dos campeiros atônitos passou uma coisa subitânea, confusa e estrepitosa; uma espécie de turbilhão para o qual só há um termo próprio.

Foi uma erupção.

Abolara-se a égua, como a serpente quando se enrosca para arremessar o bote. Retraiu-se o flanco sobre os quadris agachados, enquanto a tábua do pescoço arqueou dobrando a cabeça ao peito intumescido. De súbito, esse corpo que se fizera bomba, estourou. Espedaçados, voaram os arreios pelos ares e o paraguaio, arremessado pelos cascos do animal, rolava no chão.

— Irra! gritou o invernista.

Viram os campeiros desenvolver-se daquele turbilhão de pó uma forma elegante e nervosa que relanceou por diante deles estupefatos. A égua desaparecera; mas ouvia-se ainda o estrépito cadente do rápido galope.