O Gaúcho/I/VI

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Calmo na aparência, mas abalado no ânimo, assistira o brasileiro à cena anterior, encostado à pilastra do alpendre.

— Que eguazinha, hein, Manuel Canho? disse o dono da pousada aproximando-se.

Respondeu o rio-grandense com um sorriso, levantando os ombros desdenhosamente.

— Não sabem levá-la.

Chegava no entanto o chileno, muito contente de si, a galhofar com a roda dos companheiros, entre os quais vinha derreado e coberto de poeira o gabola do paraguaio.

Manuel caminhou direito a D. Romero.

— Tenho dez moedas nesta guaiaca, disse ele erguendo a aba do ponche, quer o senhor recebê-las pela égua?

— Por dinheiro algum a vendo; mas se tanto a cobiça o amigo, por que não a leva de graça? Basta montá-la, retorquiu o chileno com ironia.

— Então sustenta a aposta?

— Está entendido.

— Mande tocar o animal, Perez, disse o brasileiro voltando-se para o dono da locanda.

Os outros olharam surpresos para Manuel Canho; embora não conhecessem qual a habilidade do brasileiro na gineta, era tal a façanha, que todos à uma duvidaram do bom resultado. Pasmos com o arrojo do gaúcho, e ainda mais com a confiança e singeleza de seu modo, se preparavam para assistir a segundo trambolhão, e rir à custa do rio-grandense, como tinham rido à custa do paraguaio.

Posto cerco ao animal, os peões conseguiram depois de alguns esforços, tocá-lo para o gramado.

— Basta, disse Manuel, agora deixem a moça comigo.

Tinha a baia parado a alguma distância e vibrava o olhar cintilante sobre a gente reunida então perto do alpendre. Suspensa na ponta dos rijos cascos, longos e delgados, de cabeça levantada, cruzando a ponta das orelhas finas e canutadas, com o pêlo erriçado e a cauda opulenta a espasmar-se pelos rins, parecia o animal prestes a desferir a corrida veloz.

O Canho adiantou-se alguns passos, cravando o olhar na pupila brilhante da baia, ao passo que soltava dos lábios um murmurejo semelhante ao rincho débil do poldrinho recém-nascido, quando busca a teta materna. No semblante rude e enérgico do moço gaúcho se derramava um eflúvio de ternura.

Ao doce murmurejo, as orelhas do animal titilaram com ligeiro estremecimento, enroscando-se como uma concha, para colher algum som remoto, esparso no ar. Fita no semblante de Manuel a vista ardente e sôfrega, dir-se-ia que a inteligente égua interrogava o pensamento do homem e queria compreendê-lo.

À medida que ela inalava o fluido magnético do olhar do gaúcho, uma expressão meiga e terna se refletia na pupila negra. Serenava a braveza e cólera acesas na próxima luta. O pêlo riçado ia-se aveludando, as ranilhas de suspensas pousavam sobre a relva, enquanto os flancos clássicos, alongando-se, perdiam a torção dos músculos, retraídos para o salto.

Lentamente, a passo e passo, aproximou-se o gaúcho, até que pôde estender-lhe a mão sobre a espádua. A égua arisca arrufou-se de novo. Rápido foi o assomo; outra vez soara a seu ouvido, mais terno e plangente, o débil ornejo, ao tempo que a mão, instrumento e condutor d’alma humana, alisava-lhe a anca e a selada com um doce afago.

Estava o generoso bruto aplacado e calmo, mas ainda não rendido. Cingiu-lhe Manuel o colo garboso com abraço de amigo, e encostou-lhe na cabeça a face. Os olhos de ambos se embeberam uns nos outros e se condensaram em um mesmo raio, que fluía e refluía da pupila humana à pupila eqüina.

Que palavras misteriosas balbuciavam os lábios do gaúcho ao ouvido do indômito animal, com a mão a titilar-lhe os seios, e os olhos a se engolfarem no horizonte límpido por onde se dilatavam os pampas?

O bruto entendia o homem. Quando Manuel aspirou as baforadas da fria rajada que vinha do deserto, a égua espreguiçou o lombo, recurvando o pescoço para estreitar o gaúcho; e um relincho de alegria arregaçou-lhe o beiço.

Em profundo silêncio assistiam os companheiros ao colóquio do bruto com o homem. Essa luta da razão com a força é sempre eloqüente e admirável; aí patenteia-se o homem, rei da criação: o triunfo não pertence unicamente ao indivíduo, mas à espécie.

Vendo Manuel, depois de repetidos afagos, passar a ponta do cabresto pelo pescoço do animal, os campeiros tomaram fôlego. Seus olhares se cruzaram, transmitindo uns a outros a expressão da própria surpresa, e buscando o sinal da alheia. O pensamento, que assim flutuava nesses olhares, reproduzia-se a trechos em exclamações breves e entrecortadas:

— Então?

— É verdade?

— Quem diria?

— Monta?

— Ele, parece...

— Também creio.

— Nunca pensei.

— É de pasmar.

— Só mandinga!

Atento aos gestos de Manuel, o chileno não tirava os olhos do ponto. Ouvindo os ditos dos companheiros, retorquiu com despeito:

— Até montar, ainda há que ver.

Com efeito a baia recusava entregar o focinho ao cabresto. Encrespando de novo o pêlo, empinou-se para soltar o galão, e arremeter pelo pasto. Já as patas repeliam o chão, e o talhe da égua, lançado como uma seta, perpassava nos ares.

— Não dizia! exclamou D. Romero com ar de triunfo, voltando-se para a roda.

A resposta foi uma exclamação estrepitosa, que prorrompeu dos lábios dos companheiros:

— Bravo!

Quando o vulto esbelto relanceava por diante dele, o Canho, com incrível ligeireza, salto no espinhaço da égua, que lá se foi a escaramuçar pelo campo, gineteando graciosamente e vibrando os ares com nitridos de prazer.

Depois de algumas voltas, quis o rapaz trazê-la ao terreiro, mas encontrou resistência, que depressa venceu. Amaciando-lhe as finas sedas da clina com a mão direita, se debruçou ao pescoço para abraçá-la. O inteligente bruto, de seu lado, voltou o rosto para ver o semblante do gaúcho, e talvez agradecer-lhe sua carícia.

Domada, ou antes, rendida ao amor e à gratidão, a baia aproximou-se do terreiro sacando com gentileza e elegância, como faria o mais destro corcel em luzida cavalhada.

— Ganhou o animal, amigo, mas assim eu não o queria decerto.

— Que pretende o senhor dizer com isso?

Era de Manuel a pergunta; começada longe, acabou em face do mascate, onde veio cair de um salto o irado gaúcho, que se arremessara de cima do animal, apertando na cinta o cabo da faca.

O chileno empalideceu de leve:

— Não se afronte, que não há razão. O que eu disse, repito. A égua abrandou de repente, ou por estar cansada, ou por outro qualquer motivo: o caso é que não está como dantes.

Vexou-se o Canho de seu arrebatamento, reconhecendo que não havia realmente motivo para tanto. Mas sentia ao mesmo tempo que a presença do chileno produzia nele uma desagradável impressão.

As súbitas antipatias são incompreensíveis; é este um mistério d’alma, que a ciência ainda não conseguiu perscrutar. Parece que há no magnetismo animal, como na eletricidade da atmosfera, um fluido de repulsão e um fluido de atração; um pólo para o amor e outro para o ódio.

Foi sem dúvida sob a influência deste último que uma aversão irresistível se estabeleceu logo do brasileiro para o chileno. Recente era o encontro; Manuel o tinha visto pela primeira vez há cerca de uma hora; poucas palavras trocara com ele, e não obstante parecia-lhe que desde muito tempo o detestava.

Entretanto a figura de D. Romero era mais própria para despertar sentimentos benévolos. Mancebo de vinte e cinco anos, tinha um semblante prazenteiro; o negro bigode e a pêra destacavam-se bem sobre uma tez alva e rosada. Era mediana a estatura, mas de um porte airoso, embora com excessivo donaire que afeta geralmente a raça espanhola.

Trajava o mancebo com a garridice de cores muito apreciada pela gente da campanha. Lindo pala chileno, com listras de amarelo e escarlate, caía-lhe dos ombros até pouco abaixo da cintura. Pela abertura da gola de veludo com abotoadura de ouro, via-se o peito da camisa de fina Irlanda. As botas eram de couro de vicunha, tão bem curtido que imitava a camurça. Trazia um chapéu de palha alvo com o linho de que parecia tecido; esse primor lhe havia custado oito onças em Santiago.