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O Gaúcho/I/IX

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Sentindo os joelhos do gaúcho a lhe cingirem os rins, a égua disparou, sibilando nos ares como uma seta.

Rangeram os dentes de raiva ao Javardo; metendo a mão por baixo do ponche desenrolou da cintura um laço, que num ápice girou-lhe duas vezes em torno da cabeça, e foi arremessado longe com força desmedida.

A Morena estancou de repente. O laço a colhera pelos peitos. Procurou Manuel na ilharga sua faca para cortar a trança de couro, que prendia o brioso animal, porém, não a achou; com a pressa de montar resvalara da cinta.

Entretanto o caçador com os pés fincados no chão, fazia grande esforço para conter o ímpeto do animal, que ficara como suspenso na corrida veloz, com as mãos erguidas e unicamente apoiada sobre os cascos posteriores.

— Hup, Morena! gritou Manuel debruçando-se sobre o pescoço da égua.

A baia retraiu-se como o gato selvagem quando prepara o salto. Não decorreu um instante; o corpo robusto do caçador, arrancado como um cedro que o pampeiro arrebata, rolou pela encosta. Assim arrastado, bateu acaso no toco de um pinheiro e pôde trançar nele as pernas.

Bruscamente sofreada, a égua estacou de novo, mas para colher as forças e arrancar mais impetuosa. A trança do laço estalando foi açoitar a cara de Pedro que rugiu como um touro.

Manuel voltou ao lugar onde lhe caíra a faca para a apanhar. Outra vez a corrida veloz da Morena fendeu o imenso deserto, que se dilata pelas margens do Paraná.

Levanta-se a lua.

O vulto do astro se reflete nas águas de um banhado. Entre o céu e a terra flutuam tênues vapores que os raios da lua nova infiltram de uma luz cerúlea e rociada. Sob essa gaza suave e transparente se desdobra, como um lençol, a vasta planície.

Duas vezes durante a noite apeou Manuel para dar fôlego ao brioso animal. A mãe sôfrega por chegar relutava sempre; alongando o pescoço para o horizonte, soltava um relincho penetrante e ansiado.

Na sua impaciência, abandonava por momentos o gaúcho e avançava pelo campo fora. Mas voltava logo arrependida e submissa.

Por que o animal selvagem e livre não corria onde o chamava o instinto com tamanha veemência? Tinha ele necessidade do homem, carecia do auxílio do amigo? ou uma força desconhecida o prendia à vontade superior que o tinha domado?

Quem o pode saber?

Apesar de seu desejo de satisfazer o impulso da baia, Manuel usava da severidade necessária para impedir um esforço que podia ser fatal. Ele sabia que o teor da paixão é sempre o mesmo no homem, como no bruto.

Ao alvorecer, o deserto muda de fisionomia: perde a expressão harmoniosa e suave, para tomar um aspecto agreste. O senho é torvo. Há nas aspérrimas devesas, que irriçam agora o horizonte, traços de um semblante carrancudo.

Já não ondulam docemente, espreguiçando pelo campo em brandos contornos, as lindas colinas que a imaginação pitoresca dos gaúchos chamou coxilhas, ao recordar a curva sedutora da moreninha. Também não se retraem mais com leve depressão os vales macios que semelham o regaço da donzela.

As formas da campanha se convulsam agora. São belas todavia; ainda se percebem alguns contornos maviosos; mas pertencem a um corpo rijo e inteiriçado.

Grupos de pequenos penhascos vestidos de uma vegetação ingrata e sáfara anunciam essa fase do deserto: são como as primeiras enervações da natureza dos pampas. Sucedem algumas rampas áridas incrustadas de grandes seixos dispersos, estilhaços de primitivas explosões. Afinal levantam-se grandes molhos de esguios alcantis, cobrindo a lomba dos cerros, como híspidas cerdas.

Quando atingiu Manuel as orlas crestadas da bronca região, um bando de urubus, vindo de remotos sítios, voava na direção do cerro.

Descobriu-os a égua; soltando um gemido fremente e aflito redobrou de velocidade. No desespero do temor que a arrastava, parecia querer lutar de rapidez com o abutre. Aspirava o ar com sofreguidão, coando no olfato as mínimas emanações trazidas pela brisa. De vez em quando vibrava um henito agudo e estridente, como o rugido da leoa; imediatamente estendia as orelhas para recolher algum tênue som remoto, em resposta ao seu ofegante apelo.

Chegou enfim.

A meio da fragosa encosta havia um largo pedestal de rocha, sobre o qual se erguiam como grupos de colunatas, algumas touças de palmeiras.

Quase ao rés-do-chão abrira o granito uma fenda estreita; dentro via-se alguma relva e plantas que sem dúvida povoavam a caverna. Os urubus piavam, esvoaçando de rama em rama.

Foi aí, que a égua arquejante esbarrou a corrida; não se podendo mais ter sobre os pés caiu de joelhos; metendo o focinho pela fenda, arrancou do peito um clangor inexprimível. Ia de envolta nesse brado o nitrido argentino, que é o grito de júbilo do cavalo com o rincho áspero e brusco, lamento de uma dor súbita.

Não cessava a mãe aflita de farejar o interior da caverna, e lastimar-se ornejando submissamente. Esse primeiro instante foi só do filho, que ali estava, ainda vivo sim, mas prestes a exalar o último alento. Não se lembrou de nada mais; nem dela, nem mesmo do amigo generoso e dedicado que a trouxera. Pouco se demorou porém essa atonia.

Ergueu a fronte e pôs no gaúcho olhos ternos e suplicantes, ao passo que a pata copada e rija batia a fenda da rocha; consolou-a Manuel afagando-a com a mão e o doce murmurejo que falava ao coração materno. Nas farpas da pedra, gretada pela parte interior, estavam grudadas por visgo branco réstias finas e macias de um pêlo alazão: da parte exterior, porém, via-se pelo resbordo, molhos de fios alvacentos.

Levantara-se a Morena e pela rampa íngreme subira ao respaldo do penhasco. Ali estava entre os troncos das palmeiras, sob um arbusto embastido, a cama de folhas e grama, que servira de berço ao filho. Entre o fino capim, sobre a crosta argilosa do rochedo, descobriam olhos vaqueanos o rastro de um casco pequeno e ainda vacilante, a julgar pela leve depressão da terra. Baralhado com este o rastro maior do puma, seguindo um trilho de sangue na direção da selva. Em todo o circuito, desde a fenda até à mata, o chão estava profundamente escarvado pelos cascos da égua.

Para o fundo, o terrado declinava e abrupto sumia-se por funda barranca; era aí o ventre da caverna a que a fenda servia apenas de glote. Acompanhando o movimento do animal que em risco de precipitar-se alongava o pescoço, sondava Manuel as profundezas da gruta.

Nesse momento ouviu-se um som débil e flente que vinha da fenda. A mãe aflita correu para ali e tornou a chamar ansiosamente o filho. Entanto os ramos se afastavam e outra égua, de pêlo tordilho, se aproximou, seguida do seu poldrinho; viera trazida pelo rincho da companheira. Eram amigas; abraçaram-se cruzando o pescoço e acariciando-se mutuamente as espáduas. Depois de trocadas estas primeiras carícias, a recém-chegada começou uma série de movimentos entrecortados de rinchos que deviam ser a narração eloqüente dos sucessos anteriores. A Morena atendia imóvel.

Presenciou o gaúcho do alto aquele terno colóquio, que veio completar a notícia colhida na confissão da baia e na investigação do terreno. Sabia agora toda a verdade do triste acontecimento.

Havia oito dias que tivera a Morena um lindo filho alazão. Uma tarde, quase ao escurecer, o puma assaltara a malhada do poldrinho, que recuando intrépido para fazer face ao inimigo, escorregara pela rocha e caíra na gruta. Acudira a mãe; perseguiu o animal carniceiro, e lhe fendeu o crânio com as patas. Quando fazia os maiores esforços para tirar o filho, foi ali cativa do chileno, atraído pelos rinchos angustiados. Na sua ausência conseguira o poldrinho galgar até à fenda e introduzir por ela o focinho. Foi então que a tordilha, condoída do órfão, se roçara com a lapa a fim de pôr-lhe as tetas ao alcance. Amamentou-o assim alguns dias; mas os torrões argilosos, onde pisava o animalzinho, cederam aprofundando-o pela caverna.

Lá devia estar, pois, inanido, a soltar o último alento.