O Gaúcho/I/VIII

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Por sangas e coxilhas, galgando encostas e transpondo barrancos lá vai a baia campos afora.

É um adejo essa corrida; tem a velocidade dos surtos e ao mesmo tempo a serenidade do remígio de uma águia. Não se ouve o estrupido dos cascos na terra, nem parece que tocam o chão. Nesse deslize rápido e suave, sente o cavaleiro despontar-lhe asas ao corpo, enquanto o pensamento, docemente embalado, colhe os vôos e adormece.

Descambava o sol.

Fez alto Manuel à beira de um arroio, onde havia frescura d’água, sombra e relva. Perto erguiase uma choça, perdida no meio dos pampas, como uma árvore da floresta, cuja semente veio trazida pelo vento.

A égua estava ardendo por esticar os músculos e espojar-se na grama.

— Sossegue, moça! disse o gaúcho sorrindo.

Com um molho de ervas secas esfregou-lhe o pêlo banhado de copioso suor; e só depois disso, consentiu que ela se rolasse pelo capim e estancasse a grande sede, não de um fôlego, mas por diversas vezes. A impaciência materna era assim moderada pela inteligente solicitude do gaúcho.

Enquanto o animal retouçava aparando os tufos da grama viçosa, que vestia as margens do arroio, tratou o gaúcho de refazer as forças.

A choça estava deserta e a porta presa apenas por uma correia. No interior, composto de uma só quadra, havia de um lado a cama feita de estiva e forrada de pelegos; do outro o brasido onde assava uma grande naca de charque, suspensa em um espeto. Conhecia-se que a ausência da pessoa que aí habitava era recente, pois a carne apenas estava tostada na parte exposta ao fogo.

Entrou Manuel sem hesitação. No deserto, uma habitação não é mais do que um pouso. Alguém o levanta; o peão de alguma estância que por aí pousou; um caçador talvez, se não um evadido da sociedade. E o rancho lá fica abandonado; aquele que aí chega depois é hóspede, como o outro que há de vir mais tarde.

Nessa vasta solidão, onde o homem, ludíbrio da natureza, não se possui a si mesmo, a propriedade não é mais do que a ocupação.

Nunca tivera o gaúcho ocasião de refletir sobre essa comunidade do deserto, que entretanto agora ele compreendia por uma intuição. Com a consciência de seu direito, tirou do espeto a carne já assada e comeu, tendo o cuidado de substituí-la por outro pedaço, que separou das mantas estendidas nas varas da palhoça.

Finda a colação, deitou-se para descansar um instante. Decorrido algum tempo, ouviram-se passos e assomou no vão da porta o vulto de um homem robusto. Dos largos ombros pendiam-lhe, á guisa de abas de ponche, dois pelegos de carneiro; tinha a cabeça descoberta, e não trazia mais roupa do que uma tanga de velha baeta encarnada.

Vestia a parte nua do corpo, cara, braços e pernas, um pêlo ríspido e fulvo, semelhante ao do caititu. Na mão direita empunhava um chuço, cuja haste grossa e faceada servia ao mesmo tempo de vara e de clava. Na esquerda suspendia pelas quatro patas, como se fosse algum coelho, o tigre que matara poucos momentos antes.

Correu o desconhecido os olhos pelo interior, prescrutando o que passara em sua ausência. Vira os passos do gaúcho e do animal nas margens do arroio.

— Deus o salve, amigo! disse Manuel erguendo-se.

— Para o servir, respondeu o desconhecido.

Era rouca e áspera a voz, porém articulada. No primeiro instante pareceu estranho que saísse fala humana daquela boca hirsuta, como o focinho de uma fera.

— Por que não se deita? perguntou ao gaúcho com rispidez.

Atirando a caça à banda, comeu o desconhecido a naca de carne, ainda crua, que estava sobre o braseiro. Para beber água foi ao arroio e estendeu-se de bruços pela margem. De volta ao rancho, aproximou-se dos pés do leito onde o Canho estava deitado; e puxando um dos pelegos que o forravam, estirou-o no chão e deitou-se.

Nesse momento meteu a égua a cabeça pela porta. Dando com o gaúcho sentado, fitou nele os olhos, e começou a ornejar baixinho, como para chamar a atenção do companheiro. Acudiu-lhe Manuel erguendo-se.

Que alegria ao vê-lo aproximar-se! Que afagos trocados entre os dois amigos! A Morena alongava o pescoço, estendia o focinho para os longes da campina; e roçava a espádua pelo gaúcho, vergando faceiramente o ombro, como se o convidasse a montar e partir.

— Ainda não, Morena; coma e descanse primeiro, dizia Manuel, amimando-lhe o colo; há de ver o pequerrucho, mas a seu tempo!

Durante as doze horas de conhecimento que tinham, já conseguira o amansador fazer-se compreender perfeitamente da baia. Era a égua um inteligente animal; e depressa aprendera a linguagem pitoresca e simbólica inventada pelo gaúcho para suas relações sociais com a raça eqüina.

Puxando levemente a baia pela orelha, obrigou-a Manuel a pastar um trevo gordo e apetitoso que estofava as fendas de uma lapa. A Morena quis recalcitrar, mas cedeu submissa ao olhar imperioso do gaúcho.

Por uma terna solicitude sofreava Manuel os impulsos do amor materno, poupando as forças da égua, que na impaciência de ver o filho, e talvez salvá-lo, podia matar-se. Tão comum é essa sublime insensatez na criatura racional, que não pode admirar no bruto!

Voltando à palhoça, deu o gaúcho com o caçador que o observava da porta.

— Quer barganhar a égua?

— Não! respondeu Manuel com rispidez.

Esta proposta o desgostou.

— Dou-lhe em troca...

Volveu o homem o olhar à sua pessoa e o devolveu em torno, buscando um objeto que servisse para a barganha proposta: descobriu a alguns passos, meio enterrada, uma velha chilena de ferro, torta e desirmanada.

— Dou-lhe em troca esta chilena!... Não faça pouco. A sua de prata, ou de ouro que fosse, não valia tanto. Saiba que pertenceu ao famoso capitão Artigas, cavaleiro como nunca houve no mundo, nem há de haver.

Sorriu-se Manuel.

— Vale muito, nem digo o contrário. Mas a égua não me pertence.

— De quem é então?

— De ninguém. É livre.

— Está zombando?

— Dou-lhe minha palavra. É livre, tão livre como eu, disse o gaúcho com firmeza.

— Bem: neste caso, eu a tomarei para mim.

— Com que direito?

O caçador grunhiu uma espécie de riso, que insuflou-lhe as ventas largas.

— Vê aquela onça? Esta manhã era mais livre do que a égua.

— Perca a esperança, que a égua não há de ser sua.

— Por que então?

Fitando no caçador um olhar límpido e sereno, respondeu o gaúcho com pausa:

— Porque eu não quero.

— E como se chama você, homem?

— Manuel Canho, para o que lhe aprouver.

— Pois digo-lhe eu, Pedro Javardo, que a égua há de ser minha.

— E eu juro, palavra de um brasileiro, que se tiver o atrevimento de pôr-lhe a mão, hei de montá-lo como um porco-do-mato que é, para cortá-lo com estas chilenas.

— Está você falando sério?

— Experimente.

— Veja em que se mete. Ainda não achei homem que me fizesse frente.

— Pois achou um dia.

— Tenho eu força neste braço como um touro.

— Touros costumo eu derrubar todos os dias no campo.

— Então não se desdiz?

— Tenho mais que fazer do que aturá-lo. Vou longe e com pressa.

Carregando o chapéu na testa, passou o gaúcho com arrogância por diante do caçador; atirando-lhe aos pés uma moeda de prata, entrou no rancho, e cortou um pedaço de carne para a viagem.

Ao sair não viu mais o caçador. Conhecedor, porém, da índole pérfida desses abutres de espécie humana, habitantes do deserto, redobrou de vigilância.

Não tinha dado dois passos, quando Pedro, oculto numa ramada, se arremessou contra ele, com um salto de tigre. Estava, porém, o gaúcho prevenido, e desviou-se a tempo; sacando a faca esperou o inimigo de frente.

A esse tempo a baia aproximou-se; quando Manuel ia montar, o caçador, já armado com o chuço, investiu furioso.