Saltar para o conteúdo

O Gaúcho/I/XI

Wikisource, a biblioteca livre

Cabriola a Morena em volta do filho, agora de todo reanimado. Não parece já aquela ardente natureza, cheia de paixão; tornou-se menina; ei-la agora travessa rapariga, a saltar sobre a relva em dias de folgares. Como alegre caracola, e atira as upas lascivas, soltando relinchos de prazer. As dengosas moreninhas das margens do Jaguarão, não se requebram com mais gracioso donaire, ao som da viola.

Não é só amor, paixão e culto, a maternidade; mas também e principalmente uma reprodução da existência. Renasce a mãe no filho, volve à puerícia para simultaneamente com ele, a par e passo, de novo percorrer a mocidade e a existência. Deus lhe deu essa faculdade de se desviver, para que transviva na prole; sem isso, como seria possível à débil criatura romper os limbos da infância?

Há duas concepções.

A primeira, material, que produz o feto: é a mais breve e a menos dolorosa. Este parto reduz-se à dilaceração do seio quando o rasgam as raízes da nova existência que desponta. Dores cruas, mas inefáveis; lágrimas congeladas, mas que se diluem em júbilos santos!

Desde que nasce o filho, logo a mãe de novo o concebe, mas dentro d’alma; há aí um seio criador, como o útero; chama-se coração.

Dura esta gestação moral, não meses, porém anos; os estremecimentos íntimos e os repentinos sobressaltos se transmitem; há um cordão, invisível, que prende o coração-mãe ao coração-filho, e os põe em comunicação. A vida é uma só, repartida em dois seres.

Admirável solicitude da natureza! O grelo, que borbulha, rompe a terra protegido pelas rijas cápsulas da semente. O ovo é o primeiro berço da cria, cujo germe tem em si. Na entranha, da serpe também está o regaço e o ninho, que recolhe a prole débil. Nenhum animal, porém, realiza a segunda gestação, a que chamam infância, como seja a sarigüê; o filho nasce duas vezes; a primeira vez para a mãe; a segunda vez para si.

Semelhante à membrana que forra o seio do animal, é a solicitude do coração da mulher e a ternura que envolve a criança, formando um berço para a alma do filho. Por isso não há dor que se compares ao parto do coração materno, a essa dilaceração d’alma quando separa de si o filho já criado, que nasce enfim para os trabalhos da vida.

Cada filho é, pois, uma nova mocidade para a mulher. A mãe só envelhece, como a árvore, quando lhe estanca no seio a seiva, que devia despontar em renovos e viços. Que importam as rugas do córtice e as carcomas do tronco?

A flor é a eterna juventude; e o filho é flor.

Que lindo poldrinho o da Morena! Uma pelúcia de cor alazã, macia como a felpa de um cetim, vestia-lhe o corpo airoso e gentil. Tinha ainda certa desproporção das formas, que em sendo belas, como as dele, aumentam a graça da meninice.

Afastara-se Manuel para descansar o corpo sobre a grama. Enquanto festejava a baia seu poldrinho, sem nunca se fartar de o ver e possuir, dormiu o gaúcho um sono breve, mas profundo e reparador. Era tarde caída quando despertou.

Voltava a tordilha, guiando as selvagens coudelarias, que vinham felicitar a exilada pela sua boa volta aos cerros nativos. Os relinchos de prazer, as alegres cabriolas, não tinham que invejar ao mais terno agasalho da família que revê a irmã perdida. Se diferença houve foi a favor dos agrestes filhos dos pampas. Nenhum se lembrou que era mais uma fome para a comunhão. O cavalo é sóbrio e generoso.

Erguendo-se o gaúcho, dispararam os magoes, e sumiram-se por detrás de um cerro. A baia, porém, foi ter com as irmãs e conseguiu que tornassem. Outra vez apareceu o bando, mas parou em distância ao sinal do chefe, soberbo alazão, cuja estampa magnífica desenhava-se em miniatura no lindo poldrinho recém-nascido. O altivo sultão do selvagem harém avançou cheio de confiança.

Tinha a Morena contado o que por ela fizera seu benfeitor?

O pai do magote e o gaúcho saudaram-se como dois reis do deserto. Não houve entre eles afagos, nem familiaridades; mas uma demonstração grave de mútuo respeito e confiança.

Quanto, porém, às companheiras da baia, essas apenas viram o alazão aproximar-se do gaúcho, fizeram-lhe uma festa como não se imagina. Manuel recebeu-as a todas com a efusão e prazer que sentia por essa raça predileta. A umas alisava o colo, a outras penteava as clinas, ou amimava-lhes a garupa. E todas se espreguiçavam de prazer e trocavam sinais de grande afeição, como se fossem amigos de muito tempo.

Nunca Manuel sentira tamanho prazer. Achar-se no meio daqueles filhos livres do deserto: admirar de uma vez tão grande número de lindos e altivos corcéis; deleitar-se na contemplação das estampas mais elegantes e garbosas; admirar a casta em sua pureza, e nos mais belos tipos, enobrecidos pela independência e liberdade; há gozo que se compare a este para um peão?

O avaro, nadando em ouro, não teria as inefáveis emoções de Manuel naquele momento, ao meio dos magotes que o festejavam, escaramuçando em torno. Também ele era filho do deserto, e desejaria fazer parte daquela família livre, se outros cuidados não o chamassem além.

Cuidou enfim o gaúcho da partida. Cumprira o dever de... Ia dizer de humanidade e talvez não errasse; tão inteligente e elevado era o sentir dessa alma pelo brioso animal, que ele prezava como o companheiro e amigo do homem! Para ele, que devassava e entendia os arcanos da organização generosa, o cavalo se elevava ao nível da criatura racional. Tinha mais inteligência que muitas estátuas ermas de espírito; tinha mais coração que tantos bípedes implumes e acardíacos.

Não direi contudo dever de humanidade, mas de fraternidade, o era decerto; posso afirmá-lo. Manuel considerava-se verdadeiro irmão do bruto generoso, bravo, cheio de brio e abnegação, que lhe dedicava sua existência e partilhava com ele trabalhos e perigos.

Teria a si em conta de um egoísta e cobarde se não seguisse os impulsos de seu coração restituindo um ao outro aquela mãe órfã ao filho desamparado. Agora que estava, uma tranqüila e contente, o outro salvo e reanimado, e completa pela mútua adesão aquela dupla existência, podia-se ir sossegado; e o devia quanto antes, que um dever imperioso o reclamava em outro lugar.

Esse dever, sim, era humano; era a vingança do filho contra o assassino que lhe roubara o pai.

Segurou Manuel com o fragmento do laço do caçador uma égua rosilha, que já não tinha poldrinho a amamentar. Nenhuma resistência fez o animal; todos se haviam rendido à influência misteriosa do gaúcho; e todos desejavam tanto mostrar-lhe seu afeto, que houve quase querelas e arrufos de ciúmes pela preferência dada à rosilha.

Quem mais se agitou com esta escolha foi a Morena. Embebida até então com poldrinho, toda ela era pouca para a satisfação e alegria daquela restituição. Multiplicava-se; havia tantas mães nela quantos sentidos; uma nos olhos, que embebiam o filho; uma nos ouvidos, que o escutavam; uma na língua, que o lambia; uma nas ávidas narinas que o farejavam; uma no tato com que o conchegava.

Mas onde estava ela sobretudo era naquele sexto sentido, exclusivamente materno, que reside nas tetas lácteas, o sentido da sucção, pelo qual a mãe sente que se derrama no corpo do filho, e se transporta gota a gota para aquele outro eu.

Percebendo o movimento do gaúcho, foi a égua arrancada ao jubilo materno pela lembrança do que devia ao benfeitor. Correu para ele; e afastando meio agastada a rosilha, cingiu com o pescoço a espádua do amigo.

Manuel abraçou-a entre sorriso e mágoa.

— Pensavas tu, Morena, que me iria sem abraçar-te?... Adeus!... Levo de ti muitas saudades. A corrida que demos juntos, nunca, nunca hei de esquecê-la!... Duvido que já alguém sentisse prazer igual a esse. Falam outros das delícias de abraçar uma bonita rapariga; se eles te apertassem como eu a cintura esbelta, voando por estes ares!... Adeus! Lembranças ao alazãozinho.

Arrebatando-se à emoção da despedida, pulou o Manuel no costado da rosilha, e apartou-se daquele sítio. No momento em que virava o rosto, que tinha voltado para ver a baia, esfregou as costas da mão pela face esquerda.

Seria uma lágrima que brotava ali?

Ficou-se imóvel a égua, com a grande pupila negra fita no cavaleiro que afastava-se rapidamente. Seu peito arfava com ornejo profundo, que parecia um soluço humano.