O Gaúcho/I/XII

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Ao cabo de algumas quadras, ouviu Manuel estrupir longe, pela campina aquém, outra corrida, mais veloz que a sua.

Pensou que fosse a repercussão do galope de seu cavalo, mas conheceu que se enganava. Voltando o rosto viu a Morena, que breve se perfilou com a rosilha.

Algum tempo seguiu assim unida, como em parelha. Sensível àquela demonstração de carinho, o gaúcho se derreou para recostar sobre as espáduas da amiga.

Mas o poldrinho chamou a mãe, que estremeceu; mordendo irada a rosilha, correu à disparada para o filho, e logo tornou ainda mais rápida ao cavaleiro, a quem breve alcançou. Ganhando a dianteira á rosilha, fê-la esbarrar um instante. De novo a reclama a voz do sangue; mas não lhe cede de todo a gratidão.

Ainda trôpego e débil, o poldrinho mal ensaiava os passos sobre a encosta. A Morena ora o instigava à corrida, ora se arremessava em seguimento do cavaleiro, soltando o hênito plangente da saudade; já volve, já avança, quando não hesita, partida entre dois impulsos e cativa de duas vontades em um só corpo.

Compreendeu então o gaúcho os extremos da gratidão do animal. A mãe não queria mais separar-se do amigo que lhe salvara o filho. Para bem certificar-se, o gaúcho perscrutou o desejo da baia na grande pupila negra e límpida, que ela fitava em seu rosto.

Esses dois seres trocaram longo e profundo olhar; nesse contato de duas almas soldou-se o vínculo de uma amizade que devia durar até à morte.

Sem apear-se, suspendeu Manuel o poldrinho que travessou na cernelha, amparando-o com o braço, como uma criança. Conheceu-se a alegria da Morena pelo riso harmonioso e vibrante, e pelas gambetas que deu a travessa.

Partiram todos, desta vez, sem estorvo. Passadas as primeiras horas, a Morena, que em princípio se mostrara prazenteira e contente, começou a dar sinais de impaciência; de vez em quando mordia o pescoço da rosilha; se esta se desviava do rumo em que iam ambas desfiladas, obrigando assim o gaúcho a afastar-se dela, imediatamente arrojava-se contra, repelindo a companheira, como se quisesse disputar-lhe o cavaleiro.

Bem a entendia Manuel: eram ciúmes. O amor que toma o homem à cavalgadura, sabia o gaúcho que é retribuído sinceramente. O ginete tem orgulho do cavaleiro que o sabe montar; como tem o soldado de seu general.

Não consente, porém, o amansador que se fatigasse a Morena, por causa do filho que tinha de amamentar, e por isso recusa o lombo que lhe ela oferecia. Debalde a faceira para o tentar alonga-se como uma flecha, e excede na corrida à rosilha. Debalde colhendo os flancos, se lança aos arremessos, como a corça, prometendo naqueles surtos as delícias da equitação; Manuel resiste a tudo, por amor do alazãozinho.

Dormiu o gaúcho numa restinga de mato.

Por madrugada ouviu Manuel longe uns ornejos de zanga, e não vendo a Morena, seguiu-lhe a pista. Acabava ela de despedir a rosilha, e vinha aos saltos, contente e folgando, oferecer o costado ao cavaleiro. Seria ingratidão recusar; depois de amamentado o alazãozinho, partiu aquela família selvagem, que se tinha formado no deserto, em face da natureza.

Ao pino do sol, encostou-se Manuel com uma tropilha, à frente da qual reconheceu D. Romero.

— Bons-dias, amigo, já vem de volta? Então foi buscar o poldrinho também? Dessa não me tinha eu lembrado.

— Viva, senhor, respondera o gaúcho secamente.

— Quer o amigo por ela com poldrinho duzentos patacões? Tenho que fazer um mimo a certa moçoila... É pegar da palavra, enquanto não me arrependo.

Nada mais natural do que oferecer preço por um cavalo, objeto de comércio. Alguns donos até se desvanecem com as boas propostas que lhes fazem. Cada preço alto é um brasão de fidalguia para o animal.

Irritou-se entretanto o Manuel com o oferecimento do chileno. Pareceu-lhe aquilo uma afronta igual à de pôr a preço uma pessoa de sua família, uma irmã.

— Se lhe pesam seus patacos, pinche-os, que não faltará quem os apanhe, respondeu com tom ríspido.

— Por pouco se escandaliza o amigo! disse o chileno sempre calmo e polido.

— Até ver, senhor.

Por volta da noite, chegou o gaúcho à pousada, de onde saíra havia quatro dias. O Perez já não o esperava mais, cuidando lá consigo que o homem levara a breca, arrebentado com a égua aí sobre algum barranco.

Depois de bem agasalhada a Morena e o poldrinho, trouxeram um bom assado de couro com escaldado, que o Manuel comeu, escanchado na ponta do banco que lhe servia de mesa.

Aí contou Canho ao Perez os incidentes de sua jornada pelo deserto, tais como eu fielmente os reproduzi. O que porventura parecer estranho, corre por conta do gaúcho, em cuja existência, aliás, havia muitas coisas, que não se compreendiam.

— Caramba! exclamou Perez. Por uma noiva, e pelo pequerrucho que lhe ela desse, você não fazia mais do que pela égua e seu poldrinho.

O Canho ficou no semblante do entrerriano os olhos surpresos. Estranho sorriso perpassou-lhe nos lábios.

— Por uma mulher, nada!

— Ai, que você está mordido, Canho! Alguma lhe fizeram. Essas raparigas são assim mesmo: gostam de moer a gente, como pimenta em almofariz.

— A mim, não, que não lhes dou este gostinho.

— Ora!

— Acredite, se quiser; mas digo-lhe que nunca até hoje me bateu o coração por mulher; e desejo morrer assim. Não pode haver maior desgraça para um homem!

— Também isso é demais.

— Eu as conheço. Gostam de todos, mas não podem viver para um só: se morre aquele a quem pertenciam, já não se lembram dele; e começam a querer bem a outro. Mas é só pelo gosto de terem

um companheiro; não que elas sejam capazes de sacrificar-lhe tudo.

— Muitas são assim, não há dúvida.

— Todas, Perez. Onde acha você uma rapariga capaz de fazer o mesmo que a baia? Porque eu salvei-lhe o filho, tornou-se cativa; e para me acompanhar e me servir deixou sua terra, suas amigas e sua liberdade.

— Lá nesse ponto, também nós homens não nos podemos gabar.

— Nem eu digo o contrário. Todos os amigos juntos não valem o Morzelo que foi de meu pai; mas os homens, ao menos, não enganam tanto!

O Perez deu boa-noite ao Canho; e foram ambos se acomodar. O gaúcho, porém, não pôde pregar olho, durante muitas horas; o vôo sussurrante de um morcego, que adejava no pátio, o sobressaltou.

Ergueu-se por vezes; foi ao pasto ver se a égua dormia, e se o poldrinho desprotegido era vítima do vampiro. Fazia um frio intenso; acendeu um pequeno fogo de ossos, porque não havia no campo outra lenha; mas só descansou quando pôde com a haste da lança abater o morcego.