O Gaúcho/II/VII

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Tinha decorrido um mês quando Manuel se pôs de novo a caminho para as margens do Uruguai, que atravessou no passo de Itaqui. Montava a Morena; adiante trotava o Juca, e ao lado gineteavam o Morzelo, o Ruão e o resto da tropilha.

Desta vez o gaúcho ia devagar; receava chegar cedo; tinha medo que sua vingança lhe escapasse ainda.

No fim da outra semana, estava em Entre-Rios, na casa de Perez. Quis perguntar pelo Barreda, e hesitou. Se ele tivesse morrido? Pouco durou essa inquietação. O entrerriano passara pela pousada na véspera.

Manuel tomou outra vez, depois de três meses, a direção da casa. Avistando-a, recordou-se do espetáculo a que assistira, e sentiu um movimento de compaixão, que logo abafou.

O gaúcho não tinha ódio ao Barreda.

A vingança da morte do pai não era para sua alma a satisfação de um profundo rancor; mas o simples cumprimento de um dever. Ele obedecia a uma intimação que recebera do céu; à ordem daquele que sempre tinha presente à sua memória. E obedecia friamente, com a calma e impassibilidade do juiz, que pune em observância da lei.

Foi por isso que desta vez, avistando a casa, não sentiu a menor emoção.

Recolheu a tropilha em um capoão e mudou os arreios da Morena, em que viera, para o Morzelo. O generoso cavalo, amigo fiel de João Canho, também devia ter sua parte na vingança.

Eram 11 horas do dia; uma trovoada estava iminente, que nublava o céu, obumbrando os raios do sol.

Manuel atravessou a esplanada a galope, e chegando à porta da casa, bateu com o cabo da lança. Instantes passados, apareceu na soleira um homem de baixa estatura e forte compleição, orçando pelos 50 anos. Era o Barreda; sua aparência já não conservava o menor vestígio da grave enfermidade.

O gaúcho não deu tempo a que o entrerriano o reconhecesse, nem mesmo o interrogasse.

— Tu não me conheces, Barreda. Sou Manuel Canho, filho do homem que assassinaste cobardemente. Bem sabes o que me traz aqui à tua porta, depois de doze anos.

O castelhano recuara por precaução, apenas percebera o intento do gaúcho:

— Não tenhas medo: se eu fosse um assassino como tu, há muito tempo já teria te estendido morto, antes que soltasses ai Jesus! Vim para te matar em combate, e restituir a teu coração a lança que deixaste no corpo de meu pai. Encilha o cavalo, toma as armas, e sai cá para o campo.

— Então reza o credo, que és um homem morto.

Fechou-se a porta, e o Canho, parado a uma quadra, esperou o entrerriano. Este não tardou, vinha bem montado, e trazia um arsenal de armas: pistolas nos coldres, faca à cinta, lança na garupa, e as bolas meneadas na mão direita.

Os dois inimigos arremeteram com igual sanha. À meia carreira o Barreda lançou as bolas; mas o Morzelo, atento e destro nesse exercício, parou, e de um tranco pôs-se fora do alcance do terrível projétil. Brandindo a lança, Manuel correu então sobre o castelhano.

Mas este já tivera tempo de armar as pistolas, e com elas em punho esperava o gaúcho para atirar pelo seguro, a alguns passos de distância. Não logrou seu intento, pois o gaúcho fazendo escaramuçar o Morzelo, procurou de longe iludir a pontaria, para precipitar-se contra o inimigo apenas este lhe deixasse uma aberta, e cravar-lhe a lança.

Foi então uma luta de rapidez e agilidade entre cavalos e cavaleiros; enquanto estes mudavam de atitude a cada instante, ora mascarando-se com o corpo do animal, ora, quando fugiam à desfilada, voltando a frente para não perder os movimentos do inimigo, os cavalos de seu lado apostavam de ligeireza e força nos galões que davam para o lado, e na prontidão com que empinavam para rodar sobre os pés, ou arremessar o salto.

Afinal o gaúcho, aproveitando um descuido, investiu contra o Barreda, que desfechou um sobre outro seus dois tiros. Longe de se estirar pelo flanco do animal para cobrir-se, Manuel se expôs para não sacrificar o Morzelo: mas ele confiava na sua ligeireza e na segurança do olhar. A cada tiro mergulhava, por assim dizer, no espaço que o separava da terra.

Ágil também, o castelhano evitou a ponta da lança, mas com o choque dos dois animais, esbarrado na disparada lhe resvalou um pé até o chão. Nada seria, pois facilmente ganharia ele a sela, se o Morzelo não tivesse mordido com raiva o pescoço do castanho.

Vendo-se desmontado, Barreda correu para ganhar a porta da casa, onde se ouvia alarido e choro de mulher.

Tomando então a manopla, e fazendo voltear as bolas, o gaúcho atirou-as; o castelhano caiu estropiado a cinqüenta passos da casa. Em um instante Manuel estava sobre ele, calcando-lhe o pé no peito.

— Pede perdão a Deus, que chegou tua hora.

O castelhano de raiva emudecera.

A mulher do Barreda prostrava-se nesse momento aos pés de Manuel, implorando compaixão para o marido. Riu-se o gaúcho com dureza e escárnio:

— Virá outro marido para a consolar.

Arredando a desgraçada mulher, chegou o ferro da lança aos olhos do castelhano:

— Conheces!... É a lança com que há doze anos feriste meu pai à traição. Eu jurei que havia de cravá-la em teu coração, mas depois de vencer-te em combate leal. Chegou o momento.

Com uma calma feroz, espetou o ferro da lança, no corpo do assassino de seu pai, atravessando-lhe o coração como faria com uma folha seca.

Morzelo, que se conservava imóvel ao lado, durante toda esta cena, avançou a um sinal do senhor, e porventura ensinado, pisou com a pata a face contraída do moribundo, que ainda estremeceu, ante essa derradeira afronta.

Enquanto a vítima se debateu nas vascas da agonia, Manuel a contemplou friamente. Quando se apagou o último vislumbre de vida, se afastou sem lançar um olhar de compaixão à mulher desmaiada.

Nessa ocasião, o cavalo do morto chegou-se ao corpo para o farejar, soltando lamentos de dor. Comoveu-se o gaúcho com essa prova de amizade; e aproximando-se acariciou o animal.

Queria ele consolá-lo da perda que sofrera?

Súbito cortou os ares um henito fremente e aflito, ao tempo que reboava pela campanha o estrondo de um tiro.

Manuel Canho tombou, rolando pelo chão.