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O Gaúcho/II/VIII

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Tanto que Manuel lanceara o entrerriano assomava no teso fronteiro um peão.

Era esse o mesmo negro que, dois meses antes, o gaúcho encontrara perto da casa, em companhia do frade chamado para confessar Barreda. Pertencia ele à estância da qual era capataz o morto.

Percebendo o que sucedera, e conhecendo que seu auxílio já não podia salvar a vítima, colheu o negro as rédeas ao cavalo, que a princípio arremessara na esperança de chegar a tempo. Saltou no chão, e por cima da sela, armado o trabuco, preparou a pontaria com a maior atenção.

Quando teve bem firme pela mira a bota direita do gaúcho, o que lhe dava certeza, com o desconto da arma, de atravessar o coração da vítima, um sorriso de caçador arregaçou o beiço do negro, que desfechou o tiro.

Antes porém que batesse o cão da espingarda na caçoleta, repercutira a dois passos um relincho agudo.

Era a Morena. Saindo do mato, onde a deixara o gaúcho, a égua parara um instante no alto da lomba, e estivera contemplando de longe a cena do combate. Chegava justamente o peão, cujos movimentos despertaram a atenção do corajoso e inteligente animal.

Pressentiu a égua que a pontaria feita pelo peão ameaçava a existência de seu amigo, do homem que a restituíra a seu filho? Ou obedeceria ela a um impulso repentino, levada unicamente pelo desejo de correr ao lugar onde estava o Morzelo?

Ninguém sabe até onde se pode elevar o instinto do bruto generoso, sobretudo quando se põe em comunicação com almas da têmpera de Manuel Canho.

Arrancando aos galões, a Morena dispara como uma bala. Ao passar por junto do peão, desfechou-lhe nas costas um coice que o atirou de bruços sobre a macega, aos pés do cavalo; e foi esbarrar junto ao corpo de Canho, estendido numa barroca do terreno.

Estancando aí para farejar o corpo, sobre o qual também o Morzelo estendia o focinho, a égua soltou outro relincho estridente, e rodando sobre os pés volveu a corrida com igual velocidade, na direção onde havia tombado o peão. Tão pouco tempo decorrera, que este ainda não se recobrara da dor e surpresa, e jazia emborcado no chão.

Ouvindo o estrupido do animal que se aproximava e receoso de uma nova refrega, o negro levantou a cabeça a custo, e estremeceu. A égua estava sobre ele; porém, coisa mais terrível do que o vulto do animal tinham distinguido seus olhos.

Na altura do braço esquerdo da Morena, onde termina a omoplata, apareceu-lhe um semblante ameaçador que o espavoriu. Ao mesmo tempo, semelhante à projeção de mola de aço, vibrou um punho que arrebatou-lhe da mão o trabuco fumegante.

O Canho pois não estava morto, como supusera o negro, nem sequer ferido.

Para o gaúcho, o rincho era a palavra do cavalo; ele compreendia o sentido dessa linguagem rude, mas enérgica. Na Morena sobretudo, nenhuma impressão, nenhum movimento traduzia a voz do inteligente animal, que não repercutisse fielmente n’alma do rio-grandense.

Ouvindo-lhe o nitrido, Manuel adivinhou às primeiras notas o soçobro do temor e a angústia, pela trêmula vibração da voz sempre límpida e argentina. Voltando-se de chofre, entreviu rapidamente o salto da égua e o vulto do negro com o trabuco apontado para ele. Antes do pensamento já o instinto da conservação o tinha lançado ao chão, contra uma leiva natural do terreno, que o podia proteger.

Fora inútil, se a Morena o não tivesse prevenido, derrubando o negro antes que o tiro partisse. A mãe extremosa acabava de pagar sua dívida de gratidão ao homem que lhe salvara o filho, salvando por sua vez a existência do generoso amigo.

Manuel o compreendeu; quando ele caiu, já o tiro havia soado, e contudo não fora ferido, nem ouvira sibilar a bala. Estremeceu, pensando que em sua dedicação o intrépido animal se houvesse sacrificado, arrojando-se contra a arma assassina.

Com que extremo de gratidão e alegria não cingiu ele o colo da Morena, inquieta por vê-lo no chão! A égua, porém, não lhe deu tempo de acariciá-la, pois voltou sobre os pés, levando suspenso à espádua o gaúcho seguro apenas pela ponta da bota na anca, e pela mão esquerda segura na cernelha. Não passara de todo o perigo; o negro ainda conservava na mão a arma homicida.

Arrebatando-a, Manuel a brandiu nos ares, para esmigalhar o crânio do inimigo. Este, erguendo meio corpo sobre os cotovelos, juntou as mãos, implorando compaixão.

Ainda o gaúcho pôde ver o movimento quando já desfechava o golpe; imprimindo à arma diverso impulso, foi ela, girando como a pedra de uma funda, cair longe numa touça de macega.

— Vai enterrar teu capataz, disse Manuel.

O negro obedeceu à ordem. A haste da lança, cravada no coração da vítima, surdia fora da cova cerca de uma braça. Manuel quebrou um troço da outra lança com que pelejara Barreda, e atou-o de través com um tento de couro cru, formando os braços de uma cruz.

Terminada assim a triste cerimônia, procurou no campo uma pedra para deitá-la no pé da cruz, sendo ele o primeiro a praticar esse ato de piedade e respeito pelas cinzas do morto.

Muita gente ignora o que significa esse costume de chegar o passante uma pedra para a cruz, erigida à beira do caminho. É uma singela devoção do povo. Em falta de lousa, sela-se o túmulo com um cômoro de seixos.

Quando Manuel partiu desse triste lugar, sentiu na face uma ligeira umidade: era lágrima, ou gota de suor que lhe escorria da fronte?

Atravessando a Banda Oriental, o gaúcho passou a fronteira em Jaguarão. Queria ver Bento Gonçalves e falar-lhe. Depois do que fizera, carecia para viver tranqüilo da aprovação de seu padrinho. O coronel era para ele o símbolo da coragem, da honra, da justiça, da virtude. Aquilo que ele achasse bom devia merecer a graça de Deus.

Bento Gonçalves tinha em Camacã duas propriedades: a chácara do Cristal, residência habitual de sua família, e a estância de São João, distante daquela quatro léguas. O serviço militar porém o retinha constantemente em Jaguarão, onde aquartelava o 4º regimento de cavalaria, cujo comando reunia ao da fronteira.

Muitas vezes o chamavam fora da vila as necessidades do serviço, ou visitas às próximas estâncias, nas quais havia de ordinário jogo forte de parada. Como todo o homem habituado a uma existência cheia de perigo e agitações, o coronel carecia das emoções desse passatempo.