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O Gaúcho/II/IX

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Em caminho da fronteira, que ele acabava de transpor para a vila, teve Manuel a fortuna de encontrar o coronel. O comandante oriental, D. Frutuoso Rivera, o convidara para uma tertúlia.

— Pois agora é que voltas, rapaz? exclamou o coronel, reconhecendo o afilhado. Já te supunha estaqueado!

— Ainda não, meu padrinho! disse o gaúcho a rir.

— É que os tais amigos são da pele do cão; o cuchillo não lhes cochila na mão, replicou o coronel fazendo um trocadilho com o nome castelhano de punhal.

— Desta vez, cochilou e está dormindo, que só há de acordar no dia do juízo.

— Então?...

Esta pergunta do coronel foi acompanhada de um revés da mão direita estendida, figurando o bote de uma espada.

— Nada; plantei-lhe no coração a lança que ele deixara lá em casa há doze anos.

— Conta-nos isso, rapaz. Quero ver como te saíste.

O coronel suspendeu a perna no estribo, e descansando sobre o quadril, dispôs-se a ouvir a narração do Canho.

O gaúcho referiu tudo o que passara entre Barreda e ele; mas simplesmente, sem encarecer a sua intrepidez e destreza nem desfazer no adversário. O gaúcho tinha consciência, mas não orgulho de seu valor. Para um rio-grandense, e especialmente para o filho de João Canho, ser bravo, tanto como o mais bravo, era obrigação. Não havia mérito nisso.

— Muito bem, Manuel.

— Então, meu padrinho, acha que não me saí mal?

— Caramba! Desafiaste sozinho teu inimigo e o mataste em combate leal, escapando à traição! Melhor do que isso não há! Até serviste de médico e enfermeiro ao sujeito; e o puseste são para a viagem do outro mundo.

Acompanhou o coronel estas palavras com uma grande risada. Nesse momento excitou-lhe a atenção um salto da égua. O lindo animal, vendo a comitiva do comandante, parara em distância; mas a pouco e pouco se fora aproximando. Como tentasse um camarada pôr-lhe a mão na espádua, ela relanceou dum pulo, saltando uma touceira de cardos.

— Oh! Que lindo animal trazes tu, Manuel! exclamou Bento Gonçalves com satisfação de picador. É para negócio? Abre preço, rapaz!

— Não, senhor, esta não se vende.

O gaúcho hesitou balbuciando:

— Mas se meu padrinho...

— Nada, Manuel; sei o amor que a gente toma a estes brutos. Aposto que lhe queres tanto bem como à tua namorada.

Na despedida, quando o gaúcho lhe beijava a mão, o coronel deixou-lhe na palma uma onça de ouro.

— Em Jaguarão comprarás uma mantilha de ponto real, e um turbante de plumas: a mantilha é para minha comadre, o turbante para tua namorada.

E dando de rédeas ao ginete, sumiu-se em uma nuvem de pó.

Era dia de Nossa Senhora da Conceição.

A vila tinha ares domingueiros; acabara a missa havia pouco tempo; ainda as ruas estavam cheias de grupos de mulheres com mantilha e homens em trajo de cidade.

Apeou-se Manuel Canho a uma loja, onde se vendiam fazendas, chá, rapé e quinquilharias. Escolheu a mantilha para sua mãe, e um turbante de plumas escarlates para Jacintinha. Naquela época esse toucado era uma das últimas novidades da moda; consistia em uma faixa de cetim bordada a ouro, cingindo a cabeça em forma de coifa, e ornada com duas ou três plumas que se anelavam pelos cabelos.

Acomodados os dois objetos na boceta de folha de pinho, que ele ocultou debaixo do poncho, Manuel encaminhou-se à venda, onde da vez passada tinha pousado.

Junto do balcão estava uma grande roda de peões e gente do povo a beber genebra e a parolar. No alpendre, que seguia em continuação à queda da taberna, via-se também outra roda de peões; estes já haviam molhado a garganta e se entretinham em descantes ao som da viola, a qual ia correndo de mão em mão, à medida que passava ou acudia a inspiração.

Eram mais ou menos os mesmos sujeitos que aí estavam reunidos no dia do desarmamento de Lavalleja. Na primeira roda destacava o Lucas Fernandes, antigo miliciano que exercia agora o ofício de seleiro. Na segunda se distinguiam o Félix, rapaz sacudido de seus vinte anos, que ainda era aparentado com o seleiro e trabalhava na sua tenda; finalmente o ferrador, o tropeiro, o carneador e o peão, que tinham, havia dois meses, se apresentado como noivos à Catita e por ela foram recusados.

Também aí estava o Chico Baeta fazendo roda a uma formosa rapariga de cabeção de cacondê e saia de cassa branca com ramagens azuis. Era a Missé, que trazia o peão de canto chorado.

No momento em que entrou o Canho, cabia a mão ao carneador, sujeito largo de ombros e corpulento bastante. Tendo aparecido a Catita começou o tocador a requebrar-se para ela, ruminando consigo um mote para cantar-lhe.

Nesse dia estava a Catita toda faceira e cheia de si, com uma saia curta de cetim azul, um corpinho de belbutina escarlate franjada de prata, e sapatinho raso de duraque com meia de renda que mostrava o moreno rosado da perna roliça.

Tinha chegado naquele instante da missa; e ouvindo tanger a viola na venda que ficava contígua à sua casa, correu para lá com a petulância e liberdade próprias da cidade e educação da gente de sua classe.

O carneador, que também era barqueiro, pois remava nas lanchas da charqueada, para trazer a carne à vila onde se baldeava para os iates, lembrou-se de tirar o tema do verso da segunda profissão, mais poética sem dúvida que a de matar reses.

Saiu-se por isso com esta quadrinha:

Lá vem um barco à bolina, Carregadinho de flor; É meu coração, menina, Atopetado de amor.

À cantiga do barqueiro respondeu Catita com um momo de enfado, levantando os ombros desdenhosamente e voltando-lhe as costas. A menina tinha birra antiga do sujeito, não só pelas enormes bochechas e imenso corpanzil, como pelas denguices com que ele a perseguia desde certo tempo.

Já se afastava da roda a menina, quando arrependendo-se ou talvez sentindo o arrojo do estro que também ela cultivava como flor agreste, voltou-se com um riso brejeiro, e ao som da viola tangida pelo carneador, atirou-lhe com a pontinha do beiço esta resposta.

Sou canoa pequenina Do rio do Jaguarão...

Repetiu duas vezes este começo, dando tempo talvez para acudir-lhe a rima; por fim terminou assim:

Sou canoa pequenina Do rio do Jaguarão,

Não vejo barco à bolina, O que vejo é tubarão.

A última palavra foi acompanhada de uma careta, com que a Catita procurou, insuflando as bochechas, arremedar ao carneador. Uma estrondosa gargalhada, que desnorteou o sujeito, aplaudiu por muito tempo o epigrama da menina.

Corrido, o tocador para não dar o braço a torcer, ainda continuou por alguns instantes a baralhar desengraçadamente na viola, até que descartou-se dela entregando-a ao Félix.

Por sua vez o rapaz fez seus requebros à Catita, que ria-se, mas não lhe dava corda. Havia no trato da menina para com o oficial da tenda de seu pai um ar de superioridade, que percebia-se à primeira vista, e contra o qual Félix não se revoltava; ao contrário o aceitava com humilde submissão. Essa arrogância que ele não sofreria do mestre da tenda, nem de qualquer outro homem, causava-lhe íntimo prazer . via nela um sinal do bem que Catita lhe queria.

Entretanto o Canho, tendo afrouxado a cincha do Morzelo, enquanto descansava, aproximou-se da roda para ouvir os descantes e assistir ao passatempo, não perdendo de vista a Morena e o poldrinho que excitavam a admiração e os gabos dos entendidos.

Catita foi uma das que se recostaram ao parapeito do alpendre para festejar o Juca, nesse dia de uma travessura e gentileza sem igual. Ora gambeteava como um cabrito pela rua afora, subindo ao respaldo das casas; ora começava a fazer afagos e negaças à mãe, pronta sempre a brincar com ele.

Vendo a menina debruçada no parapeito e desejoso de chegar-se, Félix ofereceu a viola a quem desejasse.

— Então, gente, não há quem queira?

Ao que parecia, já estavam todos satisfeitos da brincadeira, pois nenhum dos peões tomou o instrumento, pouco havia tão disputado.

— Já que ninguém quer!... disse o Canho estendendo a mão.

Depois de afinar a viola, e acertar um acompanhamento simples e fácil, porém vivo como o trinado do sabiá, o Canho, encostando-se na ombreira da porta e erguendo os olhos ao céu, como quem procurava ali no azul diáfano o raio da inspiração, começou a descantar.

Sua voz era cheia e sonora. Apesar de um tanto áspera, não deixava de haver doçura nas notas vibrantes que se desprendiam de seus lábios; mas era a harmonia agreste dos lufos do vento no descampado, ou do canto da seriema na macega do banhado.

Começou ele atirando o mote de seu descante, neste rápido estribilho:

Livre, ao relento,
Pobre, sem luxo,
N’asa do vento
Vive o gaúcho.

A atenção geral foi vivamente excitada. As pessoas presentes fizeram roda e ficaram suspensas dos lábios do Canho, cuja fisionomia torva de ordinário, brilhava nesse momento iluminada por lampejos de inspiração.