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O Gaúcho/II/X

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Depois de uma pausa, o Canho feriu de novo as cordas da viola. A roda se apoderara do estribilho, que repetiu em coro, respondendo Manuel alternadamente ao mote com uma das coplas da cantiga.

Livre, ao relento,
Pobre, sem luxo,
N’asa do vento
Vive o gaúcho.

Quanto possui, traz consigo,
Dorme no chão sobre a grama,
Serve-lhe o poncho de abrigo,
A xerga da sela é cama.


Livre, ao relento, etc.

No banhado, na coxilha,
Onde pára, chega em casa;
Dá-lhe o churrasco a novilha,
Dos ossos arranja a brasa.

Livre, ao relento, etc.

Ainda não rompe a aurora,
Já no rancho o mate chupa;
Por estes campos afora,
Sempre a correr. Upa!... Upa!...
Livre, ao relento, etc.
No rio é barco, navega,
Montado no seu cavalo;
No campo faísca e cega
Saltando por sanga e valo.

Livre, ao relento, etc.

Ponteiro como o tufão,
Rompendo os montes d’areia,
Pincha a manopla da mão
Que o touro feroz boleia.

Livre, ao relento, etc.


Vence o ginete ligeiro
Na caça o veado arisco.
Tem as asas do pampeiro,
Tem o fogo do corisco.

Livre, ao relento, etc.

A ema veloz alcança,
Como um gigante, seu braço,
Que rijo meneia a trança
E longe arremessa o laço.

Livre, ao relento, etc.

Arreda! Arreda!... No campo
Lá vem roncando a borrasca.
Não é trovão, nem relampo,
Mas sim a fúria dum guasca.

Livre, ao relento, etc.

Senhor de todo este pampa
Que tem o céu por dócil;
Rei do deserto, ele campa
No trono do seu corcel.

Livre, ao relento, etc.


S’está na vila ao domingo,
Na toada da viola
As saudades de seu pingo
Cantando, o peito consola.

Os aplausos que por diversas vezes tinham interrompido o trovador, prorromperam afinal. Onde aprendera o gaúcho letra tão bonita? Era tirada de sua cabeça, ou tomada de alguma cantiga que ouvira nas cidades?

Soltando a última nota, Manuel afastou-se rapidamente e sentou-se na outra ponta do alpendre onde lhe trouxeram almoço. A roda a pouco e pouco se foi dispersando; e instantes depois já não restava senão um ou outro amigo da cachaça, que não podendo bebê-la por falta de cobres, ao menos queria sentir-lhe o cheiro consolador.

De repente sentiu o Canho cingir-lhe o pescoço um colar macio e tépido; eram os braços da Catita que ela tinha enlaçado como uma cadeia. Voltando o rosto surpreso, viu o gaúcho um rostinho mimoso, banhado em um sorriso provocador, e esclarecido por um olhar lânguido e fagueiro.

— Você me dá aquele poldrinho, sim? dizia a voz, doce como um favo de mel.

Manuel desatou secamente o enlace que o prendia, e desviou-se da menina aborrecido. Aquele pedido lhe parecia uma ofensa; e o modo por que fora feito ainda mais o contrariava.

Arredando-se do lugar onde estivera sentado, procurou esquecer-se da menina; acabado que foi o almoço, acendeu o cigarro, ajustou os arreios, e cuidou de pôr-se a caminho.

Ia montar quando sentiu que lhe faltava alguma coisa: era a boceta que deixara ficar sobre o banco onde a princípio estivera sentado. Voltou a procurá-la.

Catita a tinha visto, e movida pela curiosidade, sem pensar na indiscrição que cometia, a abrira. A vista do lindo turbante a fascinou; quis experimentar se lhe servia; ajustou-o na cabeça; e começou a faceirar-se pelo alpendre, segurando nas saias em ar de mesura.

Nessa ocupação a veio achar o Canho; dos dois o mais enleado não foi ela, que breve recobrou a sua petulância ordinária e saiu-se com um gracejo.

— Já sei que foi para mim que trouxe este lindo toucado. Fico-lhe muito obrigada, disse fazendo-lhe uma mesura. Serve-me perfeitamente; e até diz com o meu corpinho de belbute!

Em verdade não se podia imaginar um enfeite mais gracioso para aquele rostinho gentil, moldurado pelas tranças aneladas de uns lindos cabelos negros. Catita parecia um anjinho de procissão, como os vestem ainda hoje, com um trajo bem profano.

O olhar aveludado que ela deitava a Manuel e o sorriso que lhe brincava nos lábios, ninguém imagina que brilho, que beleza e sedução davam a esse mimoso semblante.

Manuel, alcançando a mantilha, fugiu sem importar-se com o turbante, e tão depressa que nem ouviu a voz da menina a chamá-lo:

— Moço, tome o seu toucado!

Quando o Lucas Fernandes saiu fora, já o gaúcho sumira-se na estrada; daí induziu o seleiro que fora aquilo um meio de dar o presente a Catita. Ele não acreditaria por certo que um homem tão desempenado como o gaúcho tivesse medo de uma criança de treze anos.

Em Bagé comprou o Canho outro presente para Jacintinha, em substituição do turbante. Desta vez escolheu um indispensável, nome que davam então a uns sacos de seda bordados de miçangas.