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O Gaúcho/II/XI

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Cresceu o Juca.

Manuel esmerou-se em sua educação. A seiva era ardente e generosa; o exemplo da mãe, assim como os conselhos e desvelos do amigo, desenvolveram com extraordinário vigor aquela natureza impetuosa.

Assistindo a essa expansão de força e instintos nobres, sentia o gaúcho júbilos paternos.

As gentilezas do poldro o faziam palpitar; tinha verdadeiro orgulho, não de possuir, mas de dominar pelo amor como uma criatura sua, o bizarro animal.

Quando ia à povoação e a gente corria às portas para vê-lo passar, montada na linda égua, e acompanhado pelo formoso poldrinho que caracolava ao lado, tinha-se o gaúcho em conta do homem mais feliz e invejado de toda aquela campanha.

Às tardes os dois irmãos, pois Jacintinha fora admitida ao grêmio dessa mútua afeição, passavam a brincar com a Morena e o Juca. Manuel, depois que não era só a querer os seus amigos, perdera aquela nímia suscetibilidade de pudor, que dantes tanto o segregou; o exemplo da menina o animava. Demais, quem somente os olhava era Francisca, sentada no alpendre. Essa não se dava do que faziam os filhos; nem mesmo sentia o isolamento moral em que eles a deixavam.

Todavia, no meio do contentamento destes brincos, tinha Manuel às vezes um soçobro. Vinha sentar-se à parte, silencioso. Admirando o donaire da Morena e os flexuosos contornos de suas formas, suspirava; alguma coisa faltava àquela beleza, que ele não sabia definir. Todas as cordas do coração vibravam com as emoções que nele despertava a companhia desses amigos queridos; mas uma havia, que logo depois de percussa, distendia-se brandamente, sob o mágico influxo de uma saudade que se dilatava além, pelo tempo afora.

O gaúcho não tinha outro passado, além da infância monótona e triste que vivera naquela estância; todas as suas recordações estavam encerradas na casa paterna. Entretanto às vezes sentia ele vagas reminiscências de uma delícia inefável, que lhe invadia os sentidos e se apoderava de toda sua alma. Então errava-lhe ante os olhos uma linda imagem de mulher vaga e indecisa, que talvez já vira, mas não se lembrava quando; e, coisa singular, essa imagem assomava como uma transformação do vulto gracioso da Morena.

Muitas outras vezes, punha-se Manuel a observar a menina e a baia, e inadvertidamente se esquecia ao ponto de compará-las, como se fossem criaturas da mesma espécie: duas raparigas, uma ainda menina, e a outra já moça. Pareciam-lhe mais lindas que os anelados cabelos louros de Jacinta, as clinas negras e crespas da baia. Era alva a menina, alva como o leite derramado sobre uma conchinha de nácar. Ao irmão se afigurava que seria mais sedutora nas faces e pelo colo da mulher, uma tez ardente e voluptuosa como a tinha a Morena. Esbelteza de talhe, mimo de formas e graças titilantes de beija-flor, ninguém as possuía como a filha do Loureiro; e contudo aquela vigorosa carnação das ancas e o esgalgo dos rins, que debuxavam a estampa da baia, Manuel as contemplava com deleite. Devia de ser aquele o tipo da beleza na mulher.

De repente as duas criaturas se confundiam, ou antes se transfundiam. Esse vulto gracioso de menina crescia, tornava-se donzela e revestia as prendas que ele invejava da Morena, para uma bonita moça. E daí, dessa alucinação dos espíritos, surgia um sonho ou visão, que um poeta chamara seu ideal; mas para o rude gaúcho era apenas seu feitiço.

Essa visão tinha o moreno suave e o sorriso fagueiro da menina que ele vira em Jaguarão; mas sobretudo, a cintilação do olhar que lhe traspassara o coração como a faísca de um raio.

Depois de semelhantes desvarios, ficava o gaúcho preso de um estranho acanhamento. Não se chegava para as duas criaturas; nem mesmo se animava a deitar-lhes os olhos. Se acaso alguma delas vinha fazer-lhe uma das costumadas carícias, o esquisito rapaz se afastava corando. Em compensação redobrava seu carinho pelo poldro. Abraçava-o com transportes veementes, e o envolvia da mística efusão paternal, que é uma refração do amor conjugal. Quando o homem estreita o filho ao coração, ele sente palpitar naquele tenro seio duas vidas; a primitiva donde ele gerou-se, que é uma vida dúplice e mútua, e a recente, borbulha ainda aderente ao tronco por dois pontos, a teta materna e a mão do pai.

Não obstante o crescimento precoce de Juca, não quis Manuel embotar esse vigor nascente: deixou que se expandisse livremente na plenitude da natureza selvagem. Aos três anos porém atingira o potro seu completo desenvolvimento. Aquela gentileza infantil dos primeiros pulos cedeu ao arrojo viril do salto e ao passo altivo do corcel. O casco batia e escarnava o chão com ufania; já a pupila incendiava-se com os fogos da paixão, e o relincho, que ele soltava aos ares, tinha a máscula vibração do clarim.

Enfim estava Juca um mancebo.

Quem já provou o contentamento de se reviver no filho homem, compreenderá o que sentiu Manuel nesses dias. Pela primeira vez montou ele o soberbo ginete, e deu algumas voltas pelo campo. Insensivelmente lhe acudiu a lembrança daquele tempo em que seu pai, João Canho, o levava, a ele novato, em sua companhia para habituá-lo a viajar.

Tinha Juca a beleza da mãe com que se parecia na elegância do talhe e esbelteza da forma. Entretanto sob essa estampa, igualmente fina e delicada, palpitava uma estrutura mais nervosa e robusta. A mesma roupagem dourada não tinha as suaves ondulações da baia; ao contrário, inflamava-se com vivos e brilhantes reflexos.