O Gaúcho/III/I

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Cruzando a coxilha grande, que atravessa a província de São Pedro, se alonga a serra do mar, como a bossa granítica daquele espinhaço.

Ao norte ficam as altas regiões, as chapadas da montanha; ao sul dilata-se a imensa campanha que vai morrer nas margens do Uruguai e do Paraná.

Estas vastas campinas, que se desdobram pelas abas da coxilha grande, são como as páginas de um capítulo da história do Brasil.

O dorso da coxilha é o lombo do livro; as folhas espalmam-se de um e outro lado. Aí escreveram as armas brasileiras muita coisa admirável: grandes feitos, combates gloriosos, brilhantes painéis em rude tela.

Que recordações heróicas não despertam os nomes de São Borja, Ibicuí, Rosário, Corumbá, Índia-Morta, São Carlos, Catalã, Taquarembó e Paissandu!

A imperícia e negligência lançaram, é verdade, feias nódoas no brilho daquelas páginas, e algumas por infelicidade bem recentes nódoas. As fronteiras onde outrora foi Artigas batido sucessivamente em vários combates, percorreu-as impune há quatro anos o bárbaro paraguaio, desde São Borja até Uruguaiana; e ao cabo dessa afronta, sitiado por forças três vezes superiores, esfaimado e inanido, logrou uma capitulação honrosa.

Ainda bem que o heroísmo brasileiro acaba de escrever nas laudas selvagens do Paraguai uma grande epopéia. A lembrança daqueles erros do passado, já de todo a apagaram as vitórias memoráveis de Riachuelo, Tuiuti, Curuzu, Humaitá, Itororó, Peribebuí e outras jornadas gloriosas.

Sete anos havia que na campanha rio-grandense cessara o estrépito das armas. Depois que Buenos Aires, temendo a reação do patriotismo brasileiro afrontado com as tristes jornadas de Sarandi e Itusaingó, pedira a paz, a província de São Pedro gozou de alguma tranqüilidade. Embora às vezes repercutisse na fronteira a agitação dos estados vizinhos, as labutações pacíficas da indústria sucederam geralmente às lides guerreiras.

Entretanto quem percorresse a campanha no mês de agosto de 1835, observaria certo movimento que não era normal, e desaparecera desde a paz de 1829. Pelas estradas encontrava-se a cada instante gente armada, que ia se reunindo pelo caminho, e formando pequenas partidas; assim como em sentido inverso, famílias que emigravam de um para outro ponto da província.

O aspecto animado daquela gente, a sofreguidão que se traía em sua marcha, o ar resoluto das fisionomias queimadas pelo suão, eram sintomas bem claros da próxima luta.

Essa agitação que se propagara por toda a fronteira, desde Jaguarão até São Borja, convergia para as proximidades da capital, mas especialmente para as margens do Piratinim. Aí, ao que parecia, era o ponto de reunião; as próximas estâncias situadas à beira do rio, estavam desde muitos dias cheias de hóspedes e peões, recém-chegados.

Onde o movimento se fazia mais sentir, era na estrada que, partindo de Porto Alegre como a aorta dessa nascente civilização, se bifurca na Encruzilhada, e lança as duas artérias tibiais uma para Uruguaiana e outra para Jaguarão. Por esta segunda estrada, em um dos últimos dias de agosto, caminhavam alguns viajantes que se dirigiam da vila do Erval à de Piratinim.

Adiante algumas braças, ia uma moça que teria pouco mais de dezesseis anos, apesar do completo desenvolvimento de sua beleza. A roupa de montar era de ganga; a saia, que se desfraldava em largas dobras, não apagava de todo os contornos das formas graciosas, cujo firme relevo traía-se com o movimento da equitação. O jaquéu justo, talhado à guisa de fardeta curta de soldado e enfeitado de alamares e dragonas de retrós, desenhava com a correção do cinzel antigo um busto encantador.

Era a moça de um moreno suave, que nos momentos de repouso, em contraste com o jaquéu escuro, se desvanecia; porém quando a agitava alguma comoção, sua cútis velutava-se com o fulvo arminho de uma corça. Nunca sob róseas pálpebras brilharam com tão vivo fulgor, mais lindos olhos crioulos, grandes e rasgados; nem brincou, entre lábios feiticeiros, sorriso mais brejeiro e provocador.

Sobre o trançado opulento que lhe cingia a nuca, trazia a moça um chapéu verde-claro, de pêlo de seda e copa alta, com uma fita branca e um ramo de rosas por tope. Atualmente esta parte do traje da formosa cavaleira seria um atentado inaudito contra o bom-gosto e tornaria horrível a mais gentil das amazonas, que pelo verão galopam nos passeios de Petrópolis. Naquela época porém era a moda, e em geral a achavam tão bonita, como a das botas que hoje trazem as senhoras. O caso é que o tal chapeuzinho verde, todo enfeitado, dava ao rosto da moça um arzinho pimpão, que enfeitiçava.

A seu lado ia outra cavaleira mais idosa e cheia de corpo; essa porém montava de escancha como um homem. Era o uso antigo nas províncias do sul. As bandas do vestido aberto de chita, que lhe caíam a um e outro lado, descobriam até o joelho as pernas da gorducha amazona.

Seguiam a alguma distância dois cavaleiros com um traje ambíguo entre paisano e militar; um deles vestia a farda da antiga milícia; o outro apenas tinha barretina e patrona do mesmo uniforme. Ambos porém traziam sobre os ombros o infalível poncho de pano azul, forrado de pelúcia vermelha.

Pouco mais era de meio-dia. O sol abrasava, embora a espaços as baforadas da brisa mitigassem a calma. Crestada pelo sol, a macega parecia o pêlo arrepiado de um mula xucra.

Os dois viajantes haviam interrompido por momentos uma prática bastante animada; o da farda, homem de 50 anos, magro, de barba cerrada, cogitava; o outro, rapaz de 25 anos, tendo passado as rédeas pelo dedo mínimo da mão esquerda, estava ocupado em preparar com a faca a palha para um cigarro.

— Assim mesmo, Sr. Lucas Fernandes, estou quase apostando que a coisa há de dar em nada, disse o mais moço, tirando uma fumaça. Tantas vezes que os homens depois de tudo arranjado se arrependem!

— Hein! respondeu o mais velho, caindo em si da distração. Que diz?

— Digo que ainda tenho meu medo de ver tudo isto dar em água de barrela.

— Medo tenho eu, Félix, de chegarmos tarde, quando já o negócio estiver acabado. Queria ter o gostinho de entrar com o coronel em Porto Alegre, para ensinar aquela cambada.

— Tal e qual o senhor me disse, vai fazer um ano, e não passamos do Erval; agora talvez que fiquemos por Piratinim ou Camacã.

— Se estou dizendo que o negócio desta vez é sério! Quando saía de Jaguarão, o Neto me disse: "Quem for patriota há de estar em Piratinim até o fim de agosto." Vê você?

— E onde foi ele?

— Ninguém sabe ao certo; mas eu suspeito que foi longe entender-se com os castelhanos; não que precisemos deles, mas para ter as costas guardadas. Sempre é bom.

— Pois olhe, Sr. Lucas, eu cá antes queria ter pelas costas um touro bravo, do que um castelhano manso. A maneira de guardar a gente as costas, é dar neles de rijo. O Neto bem sabe disso.

— Ele lá sabe o que faz, que o tal de Buenos Aires, o Rosas, também está metido nisso. No caso de ser preciso, o sujeito nos ajudará a escovar o pêlo aos imperiais.

— A falar a verdade, eu antes queria sová-los, a eles. Enquanto me lembrar do que fizeram aí por Bagé e Alegrete, que me contou meu pai, não se acaba esta gana que tenho de tirar uma desforra. Quer que lhe diga, Sr. Lucas Fernandes, eu estou que sentiria mais prazer em meter a faca no lombo de um castelhano, do que em abraçar a mais bonita rapariga de Buenos Aires.

— E cuida você, que eu também não lhes tenho vontade? Mas é preciso paciência para suportar por algum tempo ainda; depois que nos tivermos livrado cá da cáfila dos imperiais, então é que os castelhanos hão de ver a cor do riscado. Eles pensam que é uma coisa, mas há de sair-lhes outra muito diversa.

A este ponto foram os dois viajantes obrigados a interromper a conversa, por causa de um pequeno incidente.

A mula em que ia a moça tinha empacado à beira da estrada, e resistia aos esforços da cavaleira. Com as orelhas espetadas, olhos ardentes e pêlo erriçado, o lindo e possante animal parecia farejar algum perigo oculto.

— Que é isto, Catita? perguntou Lucas.

— Esta mula hoje não está boa, Sr Lucas, não sei o que tem, disse a gorducha. Todo o caminho veio torcendo-se, e agora não quer andar!

— Que remédio tem ela? acudiu Félix.

— Não é nada, mamãe! disse Catita.

— Depois levas aí um trambolhão?

— Ora qual, Vidoca! atalhou Lucas.

— Esqueci-me da minha esporinha, por isso está brincando comigo, tornou Catita a rir.

— Espere que eu a ensino.

Félix avançou, vibrando com força o rebenque.

— Heta, mula!

Aquela interjeição enérgica soou ao mesmo tempo nos lábios do rapaz e na anca da mula, onde o látego estalou com força.

A mula partiu escoiceando, no meio das risadas dos dois viajantes. Era destra cavaleira a Catita; apesar dos saltos do animal, ela manteve-se firme na sela, e sem perder a elegância de seus movimentos. Contudo dificilmente continha a mula, que irritada com o castigo corria forcejando por tomar o freio.

Nisto ouviu-se ao longe o rincho sonoro de um cavalo.

Buffon distinguiu no cavalo cinco espécies de rincho, que exprimem suas diversas paixões. O rincho da alegria, no qual a voz se eleva sustentando-se por muito tempo e expira em sons agudos. O rincho da cólera, breve, crebro e estridente, acompanhado pelo estrépito das patas. O rincho do temor, breve também, porém rouco e cheio, semelhante ao rugido do leão. Finalmente o rincho da dor, que é antes um gemido ou estertor da respiração opressa.

Há porém além destes um nitrido vibrante e incisivo que é a interjeição do cavalo, quando chama o companheiro distante. Era desta espécie o que tinha repercutido naquele momento pela campanha.

Respondeu-lhe perto um nitrido mais possante que vibrou pelos ares.