O Gaúcho/III/II

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A moça erguendo os olhos, viu sobre o alto de uma pequena coxilha, ao lado do caminho, assomar um cavalo.

A formosa estampa se debuxa contra o azul diáfano do horizonte, como uma estátua de bronze sobre alto pedestal. O porte é majestoso; a atitude briosa e arrogante. Com a fronte erguida, coroada pela crina soberba que o vento agita como a juba do leão, o altivo corcel lança pelo vale um olhar sobranceiro. A mão esquerda finca na terra, com o jarrete de aço distendido, enquanto a destra, batendo amiúde mas cadente, escarva ligeiramente o chão.

A roupagem é do mais puro e brilhante alazão, sobre o qual destaca a seda opulenta das crinas e da longa cauda, bem como a orla de branco arminho que cinge-lhe a raiz do casco alto, de rijas tapas, fino e bem copado.

Outrora os mestres da nobre arte da gineta acreditavam que dos quatro elementos da natureza derivavam as cores predominantes na raça hípica, e daí tiravam indícios a respeito das qualidades e defeitos do animal. Assim o preto indicava a terra, o branco a água, o castanho o ar, e o alazão o fogo.

Quem visse o lindo ginete, cujo pêlo cintilava com os raios do sol, acreditaria que realmente aquele soberbo animal tinha nas veias o fogo que dardejava na pupila negra, e cujo fumo resfolgava dos grandes alentos na respiração ardente. Os hipogrifos, que combatiam entre chamas, deviam vestir aquela auréola esplêndida, que envolvia o brioso corcel.

Tinha esse cavalo os traços que entre os árabes indicam o animal de fina raça. Cabeça pequena e descarnada; fronte larga, alçada com ardimento e nobreza; grandes e proeminentes, os olhos límpidos que afrontavam o sol; orelhas curtas, rijas, canutadas, e tocando-se nas extremidades, pescoço largo e na volta garboso, como o colo do cisne; as pernas delgadas e nervosas, mostrando no relevo dos músculos sua firmeza e elasticidade; o peito amplo e vigoroso; a anca redonda, mas fina; os flancos delgados, esbeltos e flexíveis.

Não pertencia, porém, o corcel à aristocracia hípica do Oriente; era um selvagem americano, um filho dos pampas. Viera das tropas bravias que povoam as estepes do Sul; provinha dos baguás que montavam os guaicurus. Tinha melhor genealogia que as coudelarias dos califas; descendia da natureza virgem; nascera no deserto.

Não recebeu a América, do Criador, as três raças de animais, amigos e companheiros do homem, o cavalo, o boi e o carneiro. Este fato, que à primeira vista parece uma anomalia da natureza, revela ao contrário um desígnio providencial. Regenerar é a missão da América nos destinos da humanidade. Foi para esse fim, que Deus estendeu de um pólo a outro este vasto continente, rico de todos os climas, fértil em todos os produtos, e o escondeu por tantos séculos sob uma prega de seu manto inconsútil.

O gênero humano pressentiu esta alta missão regeneradora da América, dando-lhe a designação de Novo Mundo. De feito é nas águas lustrais do Amazonas, do Prata e do Mississipi, que o mundo velho e carcomido há de receber o batismo da nova civilização e remoçar.

Para não exaurir, mas concentrar, a seiva exuberante da terra virgem, despovoou-a o Criador daquelas raças nobres, que ela estava destinada a juvenescer. Mas apenas a semente caiu na vigorosa argila que a esperava, desenvolveu-se com uma possança formidável. Como ao homem europeu e a todos os animais domésticos que formam a família irracional, como a todos os produtos úteis do velho continente, a América adotou o cavalo; mas a este parece que o concebeu no seio do deserto, e o fez selvagem de seus pampas.

Tem o potro americano sobre o potro árabe a grande superioridade da natureza. A liberdade é força e beleza; nem há no mundo outra nobreza real e legítima, senão essa. A elegância da forma, a altivez da expressão, a coragem, o pundonor e o brilho, são donaires que ao homem, como ao cavalo, dá a consciência de sua liberdade.

Do espartano, que ainda hoje nos enche de admiração com o exemplo de seu heroísmo e sobriedade, fazemos o maior elogio nesta frase — "era um cidadão livre". Daquele brioso cavalo se podia dizer da mesma forma, para exprimir com eloqüência a sua formosura e nobreza; "era um corcel livre".

Nenhum homem o escravizara jamais; nenhum se atrevera a castigá-lo; era indômito ainda como no tempo em que percorria os pampas nativos. Mas o potro selvagem tinha um amigo, quase um pai, a quem o ligara um profundo sentimento de gratidão. E daí sem dúvida lhe provinha a altivez e majestade que ressumbrava em seu porte.

O contato de nossa raça desvanece no animal o espanto selvagem que sente ainda o mais intrépido na presença do rei da criação. A amizade do homem inspira, sobretudo ao cavalo, uma emulação generosa, um heroísmo admirável. O Bucéfalo de Alexandre, o Morzelo de César, e o Orélia do rei D. Rodrigo, foram dignos dos heróis a quem serviram.

Não tivera a moça tempo de admirar a linda estampa do alazão, porque apenas se desvaneceu ao longe o eco do relincho, ele desceu a coxilha à disparada, e atravessando a estrada, sumiu-se por detrás de uma restinga de mato.

Aí, encontrou outro animal, no qual era fácil reconhecer a Morena, pelas formas esbeltas e elegantes, vestidas da linda roupagem baia. Fora ela que chamara o filho. Pouco depois apareceram o Morzelo e o Ruão, nossos antigos conhecidos, que tinham seguido de perto o Juca.

Todos juntos se aproximaram do lugar onde estava o Canho deitado sobre o pelego à sombra de uma árvore. O gaúcho não dormia, mas tinha os olhos fechados e o rosto coberto com a aba do poncho. Parecia prostrado pela fadiga; tinha feito em duas semanas mais de duzentas léguas. Quinze dias antes estava em Camacã quando recebeu um recado de Bento Gonçalves que o chamava a toda a pressa.

O coronel lutava com um acesso de cólera terrível. Cruzava o aposento de uma a outra banda, trovejando como um temporal desfeito.

— Por quem me tomam eles!... Pensam que admito semelhante loucura? Estão enganados!... Tinha que ver que eu fosse por minhas mãos entregar o continente ao mazorqueiro!...

Manuel surpreso daquela agitação, esperou que o coronel se apercebesse de sua presença.

— Ah! estás aí?...

Bento Gonçalves foi a uma banca onde estavam emaçadas algumas cartas que ele acabara de escrever.

— Monta a cavalo, Manuel, e não pares enquanto não estiverem entregues todas estas cartas. Começarás pelo Rio Pardo e acabarás em Alegrete, na estância do coronel Bento Ribeiro. Aí poderás descansar. Tens dois soberbos corredores, o Juca e a Morena; és o primeiro peão que eu conheço. Se não deres conta da mão, ninguém mais o fará decerto.

— Fique descansado, meu padrinho, disse o gaúcho.

E partiu.

Na véspera passara por Bagé, de volta de sua comissão: tomara a estrada de Piratinim por um atalho, deixando Erval à direita; e fizera ali uma parada, contando chegar à vila por volta da noite.

Os animais pararam, a olhar afetuosamente o gaúcho; porém o Juca, mais afoito, chegou-se perto e farejou-lhe o rosto para ver se dormia, ou talvez para avisá-lo que era tempo de pôr-se a caminho. Habituado a estas familiaridades, Manuel descobriu o rosto e correspondeu ao afago do alazão puxando-lhe carinhosamente a orelha.

De repente ecoou pelo campo um grito no meio de confuso tropel.

Erguendo-se rapidamente viu o gaúcho alguns animais de carga a correr pela várzea, e mais longe uma mula corcoveando para arrojar de si a moça que a montava. Um preto se lançara com a intenção de tomar-lhe o freio; porém, o animal furioso o tinha arremessado ao chão.

Quando o alazão passara pelo caminho a todo o galope, acudindo ao chamado da Morena, uma tropilha, que seguia o mesmo caminho dos viandantes, se espantara. As bestas retrocederam de corrida; o rumor dos couros que cobriam a bagagem ainda mais exasperou a mula que tomando o freio disparou, apesar de todos os esforços da gentil cavaleira.

Com o pescoço enroscado, o queixo fincado aos peitos, e o corpo encolhido, a mula assanhada dava saltos e corcovos terríveis. Ora contraía-se toda, e logo distendia-se no arremesso, forcejando para romper os arreios que a ligavam. Catita, porém, não perdia o equilíbrio e fustigava com o chicote a cabeça do animal.

Entretanto aos saltos a mula afastava-se da estrada. Na direção que ela seguia, o terreno elevado e pedregoso formava uma barranca sobre a charneca ou tremedal, a que na província dão o nome de sanga. Se a moça não conseguisse domar o animal, o que não parecia provável, na carreira cega em que ia, a catástrofe seria inevitável.

Tudo isto passara rapidamente ante os olhos do gaúcho. Compreendendo o perigo que ameaçava a moça, ele não teve tempo de refletir. Passou a mão ao laço, atirado sobre a grama junto aos arreios, e saltou no costado do Juca.