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O Gaúcho/III/XI

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Fazia lusco-fusco.

Desenganados da caça que tinham dado ao bombeiro, voltavam os peões ao rancho, quando ouviram um estrépito medonho; e um turbilhão caiu sobre eles.

Era o Canho e sua tropilha à disparada; o homem soltara brados espantosos; os cavalos rinchavam com estranha ferocidade. Manuel os tinha habituado a combater; pareciam leões na peleja.

Os peões transidos, supondo-se atacados por força muito superior, dispersaram pelo campo fora. Um caiu ferido pela espada do gaúcho; ao outro alcançou o arremesso da lança; além o terceiro era colhido o laço enquanto o companheiro rolava com o animal esmagado pelas bolas. Se algum tentou levantar-se, os cavalos o acabaram a coices.

Dos dois peões que restavam, um escapara-se; o outro, Manuel o seguia de perto e arremessando-se como um tigre na garupa estringiu-lhe o corpo em um abraço. Era o Félix.

— Aqui estou! Não te querias encontrar comigo?

Isto dizia o gaúcho ao ouvido de Félix, metendo as chilenas no ventre do animal, e sem tirar os olhos do outro peão que adiante corria. Entretanto desprendendo o laço amarrava os braços do prisioneiro de modo a tolher-lhe os movimentos.

— Foste tu que lanceaste o Morzelo?

— Fui!

— E quem o boleou?... Responde, se não queres que os chimarrões te devorem vivo!

A ameaça era terrível.

— Aquele que lá vai, respondeu Félix.

— Ah! Então é preciso nos despedirmos; tenho pressa.

— Mata duma vez!

— Matar-te, a ti? Não; hás de viver, para namorar Catita ou alguma outra. sempre que ela olhar para ti, prometo que te lembrarás do bravo que assassinaste como um cobarde.

Ouviu-se então o ranger do ferro na carne e um terrível bramido. Saltando outra vez no Juca, Manuel abandonou Félix e continuou a perseguir o último dos peões; aquele que primeiro insultara e abatera o brioso corcel, atirando-lhe as bolas.

Durante a curta cena anterior o gaúcho não parara um instante: mas como então montava o cavalo de Félix, nenhum avanço tivera sobre o fugitivo. Agora, porém, de cada tranco do alazão, ganhava terreno. Contudo fora necessário que não lhe faltasse o espaço para alcançar o peão já muito distante. Era esse justamente o receio de Manuel observando a direção que levavam; a estância não podia ficar a muitas quadras; embora estivesse resolvido a seguir o matador do Morzelo até no seio do acampamento inimigo, quando chegasse, já o acharia refugiado dentro de casa e defendido pela força legalista.

Nisto luziram ao longe os fogos da estância; calculando a distância e a dianteira do peão, o gaúcho soltou um assovio.

— Morena!

Entre os dois animais era difícil distinguir o melhor corredor. Em grande distância o alazão vencia a mãe; mas no primeiro ímpeto a égua excedia ao próprio filho na velocidade. Por isso a chamava o gaúcho.

Poucos instantes depois o vulto esbelto da Morena perfilou-se com o alazão e Manuel passou rapidamente de um a outro animal.

— Upa!... Upa!...

A baia fendeu os ares como a asa negra do tufão; quando o peão surgia no clarão que derramava fogo pelo terreiro, os soldados atônitos viram precipitar-se um vulto negro, como uma águia em seu arremesso; e um corpo rolou aos seus pés.

Imediatamente correram às armas; soou a fuzilaria; e do turbilhão de fumo desenvolveu-se a sombra do gaúcho que fugia incólume entre uma chuva de balas. Já ele estava fora do alcance, quando recebeu nova descarga de um posto avançado, que o viu sumir-se ao longe nas trevas,

Manuel ouvira quatro tiros, e só duas balas tinham sibilado a seus ouvidos; uma se amortecera nas dobras de seu poncho batido pelo vento; mas a outra?

Morena devorava o espaço; nunca Manuel habituado à velocidade da égua sentira aquele ímpeto que lhe recordava a corrida vertiginosa da baia pelos pampas à busca do filho recém-nascido. Depois de algum tempo julgando-se livre de perigo, quis moderar-lhe o impulso, mas ela desobedecendo-lhe pela primeira vez redobrou a rapidez.

Esta insistência fez-lhe supor que era perseguido; o faro e o instinto do animal excediam sua perspicácia. Nisto reparou na ausência do alazão; quanto aos outros animais, era natural que ainda estivessem descansando das fadigas daquele dia tão penoso nos lugares onde os deixara. Mas Juca? Por que não aparecia? Tivera acaso a mesma sorte do Morzelo?

Manuel chamou o alazão com o costumado sinal; um vento rijo impelia o somo na direção da corrida; e o silvo que soltara repercutiu-lhe longe, mas pela frente. Debruçando-se então, pruriu o focinho da baia para que ela chamasse o filho com o nitrido fremente que fendia os ares. A Morena ficou muda; e arremessando-se com um novo ímpeto perpassou nas trevas como a sombra fugitiva e silente do corvo arrebatado pela procela.

Ao cabo de algumas horas dessa corrida delirante, a petrina da baia começou a resfolegar com uma espécie de estertor. Um pressentimento cruel cerrou o coração do gaúcho, que de um salto arrojou-se no chão.

— Está ferida!

Quando os pés do gaúcho tocavam a terra, Morena que sustivera-se até aquele instante com supremo esforço, deixou-se cair exânime sobre a relva. A mão convulsa do gaúcho, tateando-lhe o corpo, sentiu a tépida umidade do sangue derramado pela anca do animal.

Faiscar lume, acender fogo com palha e gravetos, foi o primeiro movimento de Manuel. Ao brilho vivo da chama, a baia fez um esforço para erguer a cabeça, pondo no amigo os olhos amortecidos. Bem a compreendeu ele; o animal receava que o fogo desse aviso ao inimigo; mas naquele momento pouco importavam a Manuel os que o perseguiam; o verdadeiro, o terrível inimigo, era o golpe que ameaçava essa existência querida.

Prontamente examinara Manuel o ferimento e reconhecera sua gravidade. A bala penetrando de revés na anca se entranhara, mas não atravessou do lado oposto. Teria-se alojado e amortecido nas vísceras? Nesse caso o ferimento era mortal. Encontraria o osso da rodela e aí se alojara? Se assim fosse, não havia lesão essencial; mas o esforço inaudito que fizera o animal e a grande perda de sangue, o punham em risco eminente.

— Água!... murmurou o gaúcho.

Só então reparou que se achava à borda de uma capoeira nas cercanias de Piratinim. De um cordão da serra dos Tapes que passa junto à vila descem inúmeros arroios; Canho descobriu um à pequena distância: rasgando a própria camisa, lavou a ferida e aplicou-lhe uma compressa para estancar o sangue.

De joelhos ao lado do corpo da Morena, com os olhos fitos na cabeça do lindo animal, o gaúcho engolfou-se numa cisma dolorosa e tão profunda que não percebeu um ligeiro rumor de folhas secas pisadas por um pé sutil.

— Assim devia ser!... balbuciaram seus lábios frouxos. Vivemos juntos, morreremos juntos, no mesmo dia. Morzelo, nosso velho amigo, foi o primeiro: deixou-nos esta manhã. Nós ficamos para vingá-lo; ele deve estar contente. Juca, a esta hora talvez já esteja com o padrinho; já terá conhecido o pai e o mano. A bala sem dúvida traspassou-lhe o coração, porque não soltou um gemido, não chamou nem por ti, nem por mim; foi mais feliz; não sofreu como tu, Morena!...

Um soluço abafou por momentos a voz do gaúcho.

— Foste tu quem te mataste, amiga, e para salvar-me! A bala em vez de atrasar a carreira, te deu asas; sentiste que me perseguiam, e voaste para me pôr fora do alcance do inimigo. E nem um gemido; nem um sinal por onde conhecesse que estavas ferida! Ah! se eu adivinhasse!... Para que fugirmos? Melhor era morrermos ambos combatendo, e vingando o nosso Juca! Eu só, não terei forças nem coragem! Que vale um homem meio morto; eu já morri no Morzelo, já morri no Juca; quando acabar de morrer em ti, que fico sendo? Uma cabeça sem corpo; uma mão sem braço! Então, melhor é dormirmos juntos no seio da terra.

Manuel correu os olhos em torno procurando um lugar onde abrir a cova que devia recebê-los a ambos. Uma faixa vermelha listrava o horizonte, anunciando a alvorada.

Neste momento o rumor tornando-se mais distinto excitou o reparo do gaúcho; mas com suprema indiferença pelo perigo, nem sequer volveu ele os olhos para perscrutar a causa. Que maior desgraça lhe podia sobrevir? Que mal ainda restava, de que valesse a pena guardar-se?