O Gaúcho/III/XII

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Raiava a manhã em Piratinim.

A rótula do oitão na casa de Fortunata abriu-se, e apareceu ali o gracioso rostinho de Catita, ainda amarrotado do sono.

Os lábios rubros começaram um bocejo que se desfez em um sorriso, enquanto as costas da mão esquerda encostada à fronte protegiam os olhos sonolentos contra a luz do dia. Tudo é gentil na mulher formosa; até esse desalinho do acordar.

A fresca brisa, que agitava os cabelos cacheados da menina em volta de sua cabeça, breve espancou-lhe as névoas do sono, e restituiu à tez a doce transparência da folha da rosa que se deslaça.

Ouvindo a voz da mãe, que a chamava, Catita se embuçou na mantilha e marrando em um lenço alguma roupa, correu ao quintal onde a esperava Maria dos Prazeres. Ambas desceram a encosta da colina, e seguiram em direção ao rio. O tempo estava quente para aqueles climas, e convidava ao banho.

Caminhando adiante com o pé ligeiro e o meneio airoso de seu andar, a rapariga devia enlear-se nalguma cisma; pois não se voltava para faceirar com a mãe, nem se abaixava para colher na relva estrelada de flores, as boninas de que tanto gostava. Em seus lábios risonhos esvoaçava um ligeiro descante, cuja letra mal se percebia:

Livre, ao relento, Pobre, sem luxo, N’asa do vento Vive o gaúcho.

Dias antes a rapariga achara casualmente no fundo de sua memória o eco dessa toada; e desde então que a repetia, buscando o fio que a tecera à breve história de sua vida. Onde e quando a ouvira?

De repente desenhou-se em sua fantasia a cena passada três anos antes no alpendre da taberna em Jaguarão. No rapaz sentado a distância reconheceu o perfil de Manuel Canho, e compreendeu a estranha impressão que o gaúcho produziu nela já moça, quando o vira ultimamente.

Estas recordações volveram o espírito da menina às preocupações que o absorviam durante a semana. Ela sabia que Manuel partira como bombeiro para reconhecer a posição do inimigo; e pressentia quanto essa missão era perigosa. Voltaria dela o gaúcho? E voltando continuaria a mostrar-lhe o mesmo desdém?

Foi interrompida nestas cismas pela voz de Maria dos Prazeres.

— Não vamos muito longe, não, menina; podem os caramurus aparecer por aí de repente.

— Qual, mamãe! Eles são capazes?

— O seguro morreu de velho.

— Então agora que Neto já tem um poder de gente.

— Pois não disseram que ele saía com a tropa esta noite?

— Ficou para hoje.

— Que desgraças não vai haver com esta rusga, minha Virgem Santíssima!

apesar da insistência da mãe, Catita continuou a margear o rio até o sítio que oferecia melhor banheiro, pela completa solidão e espessura da folhagem que o recatava, assim como pela bacia espaçosa formada na curva da corrente.

Enquanto Maria dos Prazeres com sua costuma pachorra descansava sentada na relva à beira do rio, a rapariga caiu n’água como um passarinho que mergulha e se espaneja. Estava ela entregue ao inocente folguedo, nadando e fazendo passos de dança, quando pela abóbada de verdura que ensombrava o rio, se propagou o surdo tropel de um cavalo.

Nada mais natural naquela paragem; contudo a moça receando a aproximação de alguém, saiu apressadamente do banho. A mãe estava ainda de camisa, sentada no chão, a esfriar o corpo; de vez em quando riscava a flor d’água com a ponta do pé, que logo encolhia.

— Já acabaste?

— Já, mamãe.

— Está muito frio?

— Não senti!

— Uih!

Durante este curto diálogo, Catita escondida entre a folhagem, vestia-se ligeira, acompanhando o tropel que se aproximava.

— Entre, mamãe!

— Já vou. Que pressas, gentes!

Nesse momento a ramagem farfalhou; um vulto passava. Catita cuidando reconhecer o cavalo de Manuel Canho, obedeceu ao primeiro impulso e o seguiu. Não se enganava; uma réstia de sol iluminou o pêlo aveludado do Juca.

— Que é, Catita? perguntou Maria dos Prazeres assustada.

— Creio que os caramurus aí vêm!

— Ai! meu São Brás!... Eu bem dizia!

A mulher de Lucas, metendo os pés na pachorra, sem importar-se com a transparência e frescura de seu trajo, nem com a sorte da filha, empurrou-se para a vila, onde chegou de uma batida, deitando os bofes pela boca. Tendo-lhe o mato arrancado metade da fralda, imagine-se em que estado chegaria a rechonchuda matrona. Felizmente era cedo e o quintal da casa de Fortunata se estendia até as abas do povoado.

Se Catita procurasse um meio para ficar só e livre de seguir seu impulso, não podia acertar melhor. Não foi porém a malícia que inspirou a lembrança, embora a aproveitasse. Reconhecendo o alazão, a rapariga acreditou que a chegada repentina do gaúcho significava a aproximação do inimigo; quando acudiu a reflexão, ela quis chamar a mãe e tranqüilizá-la, observando que o perigo ainda estava longe, pois o Canho não se apressava em entrar na vila.

Mas sorriu e continuou a seguir o cavalo, o qual embora levasse um grande avanço, deixava na ramagem os traços de sua passagem e o caminho aberto. Ao cabo de alguns instantes ouviu a rapariga outro relincho, mas este era triste e soturno como um lamento. O alazão estava parado em um raleiro de mato.

Perto via-se, prostrado em uma cama alta de capim, o corpo da Morena; o sangue que lhe corria da ferida encharcava o chão. De instante a instante o generoso animal perdia o alento; já não tinha força de mover a cauda para afugentar as moscas e um reflexo baço e vítreo começava a cobrir-lhe a retina.

Ouvindo o gemido do alazão, os olhos da égua cintilaram, procurando o filho, mas logo amorteceram; a cabeça que só se erguera com um esforço tombou pesadamente, e súbito estertor percorreu-lhe o corpo.

Comovida profundamente com esta cena, Catita correu para o animal, e sentando-se no chão pôs-lhe no regaço a cabeça inerte que estreitou ao seio, cobrindo-a de carinhos e de lágrimas. Entretanto Juca lambia a ferida e o corpo da baia, procurando com a baba cheia de seiva e vitalidade, estancar o sangue e restituir-lhe o calor aos membros entorpecidos.

De vez em quando a rapariga deitava o olhar em torno à procura de Canho; ela adivinhara sua presença recente no cuidado com que estava feita a cama da Morena, e no chapéu suspenso a um ramo seco de árvore. Naturalmente o gaúcho se afastara em busca de algum remédio.

Não se enganava.

Manuel reconhecera que não havia meio de estancar o sangue enquanto a bala estivesse alojada junto ao osso, impedindo a aderência das carnes e ligação dos vasos ofendidos. Tendo preparado a cama dentro do mato, e ajudado a baia a arrastar-se até ali, mal rompeu o dia partira para a vila com intenção de munir-se de um objeto qualquer que lhe servisse de tenta e de pinça.

Nesse momento Juca descobrindo um gozo que saíra do mato e farejava o sangue, o arremessou longe com a pata.

O cãozinho desapareceu.