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O Gaúcho/III/XIII

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Voltou Canho afinal com uma haste de ferro, arqueada na ponta à maneira de uma torquês: foi tudo quanto pôde obter de um ferreiro cuja especialidade era fazer pregos e arcos de barril. Quando entre uma fresta do mato, descobriu longe o grupo que formavam Morena, Catita e Juca, foi terrível a impressão.

— Morta? disse ele precipitando-se.

— Não! balbuciou Catita, mas tão timidamente que Manuel a compreendeu mais pelo gesto do que pela fala.

Os olhos do gaúcho encontrando os da rapariga, não se desviaram, como outrora. Quem eles viram não era mais a mulher bonita e sedutora, e sim um coração que entendia e partilhava sua dor; uma alma que naquele momento solene entrava na santa comunhão de suas afeições.

Ajoelhando em frente da moça, curvou-se quase sobre o seu regaço para observar a Morena; e com um gesto de angústia mostrou-se a lividez que se derramava pelo cristalino dos olhos do animal. Catita pressentira esse gesto, e duas lágrimas correram-lhe pela face.

— Enquanto a bala estiver dentro, o sangue não estanca e...

Um soluço abafou a voz do gaúcho, que preparou-se para tentar a operação. Só então abraçou o alazão, a quem na véspera julgara morto. O Juca estendeu o focinho para o horizonte, meneou a cabeça, olhou a mãe, e gesticulou. O que pretendia ele exprimir com isso? Manuel entendeu que o alazão perseguido correra toda a noite em sentido contrário, para fazer que o inimigo perdesse a pista da Morena.

Depois dos maiores esforços para extrair a bala, o Canho descoroçoado derrubara a cabeça aos peitos, ajoelhado ao lado do corpo da Morena, quando uma voz formidável reboou entre as árvores.

— Cá está o cujo.

Era o Lucas Fernandes, que rompendo o mato, se apresentou impávido ante os olhos da filha e do gaúcho. Lançando uma vista rápida à cena, própria para surpreender outro homem que não fosse o furriel, travou ele do braço do Canho.

— Há uma hora que andamos à sua procura, Manuel; aqui estão os amigos.

O Canho afastou-se para evitar que os estranhos penetrassem naquele sítio. À beira do mato encontrou Verdum, Ortis, Rolin e outros. Os orientais, sabendo da volta do bombeiro, tinham improvisado um ataque ao acampamento do Silva Tavares; Neto, de partida para Pelotas com o grossa da força, lhes cedera uns trinta peões e com esse punhado de gente pretendiam os caudilhos levar ao cabo a temerária empresa; sem o Canho porém sentiam que nada poderiam fazer.

Lucas aplaudira com entusiasmo o plano, e se incumbira de procurar Manuel que fora visto na vila ao romper da alvorada. Os caudilhos impacientes o tinham acompanhado em sua pesquisa.

Manuel ouviu três discursos, um de Ortis, outro de Verdum, e o último do furriel; cada um dos oradores expôs com veemência o plano de ataque e exaltou os resultados do esplêndido triunfo, que decidira da sorte da revolução, abatendo de uma vez o poder imperial.

— Em 1832 eram trinta e três; agora seremos trinta e sete, quatro de mais! exclamou Verdum, batendo no ombro do Canho. Que diz, amigo?

— Eu não posso! respondeu Manuel pausadamente.

Foi geral o espanto.

— Que é isso, homem?

— Acha que somos poucos!

Manuel encolheu os ombros.

— Os senhores são trinta e sete; ontem quando lá estive, eu era um só.

— Mas por que razão não quer você vir conosco, Manuel?

O gaúcho calou-se; o que ele sentia, os outros não poderiam compreendê-lo.

— Algum dos senhores abandonaria seu irmão e seu amigo quando ele está a expirar?

— Acima de tudo a pátria!

— Minha pátria é a campanha onde corre meu cavalo.

— Se fosse João Canho que me ouvisse neste momento, já ele estaria na sela.

A invocação do nome do pai abalou o coração do gaúcho, pois recordou-lhe a abnegação do antigo soldado quando se tratava de cumprir um dever. Nesse momento sentiu na mão o atrito de uns dedos sôfregos e a impressão de objeto frio e pesado. Era uma bala. Catita com o tato admirável da mulher a extraíra da ferida, e viera mostrá-la timidamente a Manuel. Ali estava ela com os olhos baixos, trêmula, como se tivesse cometida uma falta.

O gaúcho cerrou-lhe a ponta dos dedos com força. A essa interrogação impetuosa respondeu o olhar ardente da rapariga.

— Sigam que eu já os alcanço.

Pronunciando estas palavras rapidamente, o gaúcho arredou com um gesto os companheiros, e correu ao lugar onde estava a Morena. O sangue estancara; e o animal babujava, ainda sem força para mastigar um molho de tenra grama.

A esperança iluminou o torvo semblante do gaúcho. Com um movimento convulso apertou ele ao seio o corpo trêmulo de Catita, e saltando no Juca desapareceu.

Teriam decorrido duas horas depois da partida de Manuel, quando o mesmo cãozinho que o alazão afugentara apareceu na orla do mato, e soltou um latido, a que respondeu perto um surdo regougo.

Catita estremeceu, vendo que estava cercada por uma matilha de cães chimarrões. Esses animais, criados nas charqueadas, às vezes se multiplicam prodigiosamente, e vagam em bandos pelos campos, como lobos carniceiros; naquela época andavam eles famintos, porque a revolução fizera abandonar a carneação das reses.

Compreendeu a moça o perigo da Morena e o seu próprio se não desamparasse o animal ferido à voracidade dos cães. Os molossos farejavam o sangue arregaçando as belfas e escancarando as fauces erriçadas de longos dentes acicalados. Longe ressoou o latido furioso de outra matilha que se aproximava.

Nem um momento a idéia de abandonar a Morena para salvar-se, passou pelo espírito da corajosa moça. Ajoelhando-se ao lado da baia, cingiu-a com seus braços, e encomendou a alma a Deus.

Nesse momento supremo, ante a morte horrível que a ameaçava, ela sentiu um grande consolo, lembrando-se que morria por Manuel.