O Gaúcho/IV/XI

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Pouco falta para a madrugada.

A noite arrasta-se pesada e lúgubre no meio de uma calma assustadora, que estranha a natureza. Nem um sopro de aragem bafeja a terra, encandecida ainda pelo intenso calor do sol. As estrelas rubras e imersas em um limbo escuro, parecem tochas a bruxulear na sombra de um templo forrado de crepe. No horizonte opaco se debuxam as cúpulas das árvores, semelhantes a massas de granito.

Essa estagnação de luz, de ar e vida, imprimia à natureza uma imobilidade medonha; dir-se-ia o orgasmo que precede à convulsão e ao delírio.

Dois vultos passaram. Caminhavam rapidamente ao lado um do outro, e dirigiram-se a um ermo bronco e erriçado de fraguedos que ficava nas abas da vila. Quem os visse de longe a par como camaradas de prazer e ventura, não suspeitaria decerto que iam matar-se.

A algumas braças de distância seguiam dois animais a passo. Eram Juca e a Morena que de longe acompanhavam o senhor; como se pressentissem a desgraça iminente, eles tão altivos sempre e tão impetuosos, caminhavam tristes e cabisbaixos, pisando sutilmente para não despertarem os ecos da noite.

Chegados a uma rechã, que ficava entre uma charneca profunda e uma fraga alcantilada, Manuel parou voltando-se para o companheiro, e enrolando no braço esquerdo o seu poncho.

D. Romero tivera a cautela de armar-se e, bem disposto como estava a acabar de uma vez com essa obsessão que sobre ele exercia o gaúcho desde a primeira vez, resolvera matar esse homem, quebrando sua influência maléfica, ou sucumbir logo, morrendo às suas mãos.

Sem proferir palavra, sem trocar uma injúria ou ameaça, os dois inimigos atacaram-se com a faca em punho e com uma sanha terrível. O chileno não era mais o rapaz enervado pelos prazeres; o rancor percutindo as energias sopitadas dessa organização, tornara o casquilho de ontem um campeão formidável.

Durante algum tempo não se ouviu mais do que o triscar do ferro quando as facas se roçavam, e o resfolgo da respiração. Mas afinal o chileno conhecendo que não podia lutar contra o punho de aço do gaúcho, deu um salto para trás e pôs-se fora do alcance da faca.

Tirando então da cintura as pistolas desfechou os dois tiros sobre o Canho. Uma das balas embebeu-se nas rugas da bota; a outra, queimando os cabelos do gaúcho, bateu contra o rochedo. Romero não teve tempo de ver o efeito dos tiros; antes que se dissipasse a fumaça, Canho se precipitara sobre ele como um tigre, o arremessara ao chão, e lhe calcara o pé sobre o pescoço.

A estrangulação foi rápida. Uma crispação violenta percorreu o corpo do chileno, e deixou-o já cadáver.

Manuel em pé, com os olhos no semblante do morto, teve uma cruel decepção. A vingança terrível, que devorava sua alma, ali estava sem pasto para saciar-se, diante daquele mesquinho despojo. As más paixões humanas têm a mesma natureza das feras. O tigre sedento, que depois de percorrer a selva não acha para mitigar-lhe a calma mais do que o resto de um reptil exangue, deve sentir aquele desespero.

O gaúcho empurrou com a ponta do pé o cadáver, que rolou pelo despenhadeiro; e dirigiu-se ao lugar onde percebia os vultos de Juca e Morena, que tinham assistido imóveis à luta. O silêncio e a espécie de estupor moral que se apoderara do Canho desde o dia fatal da perdição de Catita, se comunicara a seus dois amigos e companheiros. Eles três não formavam mais do que uma alma, uma vontade, cujo foco era o coração do gaúcho.

Se não estivesse tão concentrado em si mesmo e abstraído do mundo exterior, ao aproximar-se Manuel teria percebido uma sombra que se esgueirou por detrás da folhagem de alguns arbustos.

A mão do gaúcho, encontrando os arreios nas costas da Morena, começou automaticamente a apertar a cincha, que é costume afrouxar enquanto o anima descansa. Em meio desse movimento maquinal o espírito foi arrebatado por um turbilhão de pensamentos. A fronte derrubou-se, e um soluço rompeu do peito arquejante. Pela primeira vez em sua vida aquele homem soube o que era o pranto, e chorou como uma criança.

Nesse momento a mesma sombra que sumira-se pouco antes, assomou entre a folhagem, indecisa se devia avançar ou retrair-se.

Entretanto Manuel, com a alma já desafogada daquela ânsia que o sufocava, cingiu nos braços o colo da Morena e do Juca, e estreitou-os fortemente ao peito; a voz que desertara de seus lábios, balbuciou enfim algumas palavras truncadas pelo ofego:

— Aqui estou, meus amigos! Fui ingrato; amei-a mais do que a vocês e ela me traiu, me abandonou! Era mulher; sabia falar; havia de mentir. Oh! eu bem quis fugir-lhe, eu que desde menino aprendi a conhecê-las. Mas a fatalidade me arrastou.

A angústia sufocava-lhe a voz por instantes:

— Há quatro anos que vocês me acompanham e até hoje um só dia não cansou a dedicação que têm por mim; também nunca me prometeram coisa alguma. Ela, jurou-me seu amor e um mês depois era... uma desgraçada!

Manuel esmagou as lágrimas que lhe saltavam dos olhos; e constringiu o seio para sufocar-lhe o arquejo.

— Fujamos deste mundo infame! Vamos ao deserto, onde o homem é fera como o tigre. Lá ninguém há de ser enganado pelo amigo e traído pela mulher. Cada um só conta consigo; se quer um irmão tem o seu cavalo fiel. Noiva, encontra-se no primeiro rancho: de manhã não se conhecia, à noite já esqueceu. Vamos, amigos, vamos aos pampas! Lá, somente lá, naquela imensidade, poderei matar esta sede que eu sinto n’alma, esta sede de espaço, que me sufoca. Correr!... Quero correr! correr sem parar, correr sem fim, até que se abra o inferno para nos devorar!...

A sombra imóvel resvalou. Sentindo que procuravam travar-lhe da mão, o gaúcho voltou-se, e viu um vulto de mulher ajoelhada a seus pés.

— Manuel!

Nesse momento o orbe imenso da lua assomava no horizonte como a boca da forja que exala um fumo ígneo. Seu rúbido clarão, desdobrando-se pelo ermo, debuxou o semblante pálido de Catita com os cabelos desgrenhados e a alucinação na fronte.

Manuel recuou transido de horror, voltando o rosto para subtrair-se à visão que o perseguia.

— Eu te suplico, Manuel! Não me fujas, não me abandones neste desprezo que eu sinto de mim mesma! Mata-me! Esmaga-me a teus pés, como uma coisa vil. Abençoarei a morte, por mais cruel que seja, dada por ti.

Ofegante, despedaçada pela dor, arrastou-se aos pés do gaúcho, rojando a fronte pelo chão, e umedecendo com os soluços o pó que seus cabelos levantavam.