O Gaúcho/IV/XII

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Um ruído surdo reboou pelas grotas e algares que alcantilavam o cerro abrupto. Parecia que a terra arquejava com o estertor de um pesadelo.

Ao mesmo tempo uma exalação ardente como o vapor de uma cratera derramou-se pela solidão. As feras uivavam longe na profundeza das selvas; e as aves espavoridas passaram soltando pios lúgubres. Os dois cavalos, com o pêlo eriçado, resfolgavam aquele bafo ígneo, semelhante ao fumo de uma batalha; eles o conheciam: era o sopro da pátria selvagem; era o fôlego do pampa.

De repente a lua sepultou-se. Céu e terra submergiram-se num oceano de trevas. O aluvião das procelas se arremessara do horizonte e inundara a imensidade do espaço. Houve então um momento de silêncio pavoroso; era a angústia da natureza asfixiada pela tormenta.

Afinal ribombou o trovão na vasta abóbada negra, sobre a qual o relâmpago despejava cataratas de chamas. Não era uma tempestade; mas um turbilhão de tempestades, bacantes em delírio, que tripudiavam no céu. Como os touros acossados pelo gaúcho arremetem com fúria e rompem a selva bramindo, assim o tropel das borrascas disparava pelo espaço.

O pampeiro, varrendo dos cimos dos Andes todas as tempestades que ali tinham condensado os calores do estio, verberava na imensidade as pontas do látego formidável com que ia açoitar o oceano.

Atônitos e mudos de espanto, os animais contemplavam o grande paroxismo da natureza. A voz do trovão, o verbo das grandes cóleras celestes, sopitava todos os gritos e todos os rumores. A terra pávida e estupefata recebia a tremenda flagelação no meio das gargalhadas satânicas do raio que surriava fustigando as escarpas do rochedo.

Únicos, no meio dessa horrível subversão, aquele homem e aquela mulher não se apercebiam dos furores da procela; dentro de suas almas lhes tumultuava outra furiosa tormenta que as devastava com sanha mais terrível que a do raio.

Abraçada aos pés do gaúcho, Catita murmurava:

— Nunca amei senão a ti, Manuel, eu juro. Não digo isto para que me perdoes. Não mereço, não quero perdão. Mas vê o que sofri, e estou sofrendo neste momento. Tu foste traído; e eu que me traí a mim mesma?... Eu que me detesto mais do que tu podes detestar a infeliz que te enganou?... Amar, e sentir-se indigna desse amor, não há maior suplício, Manuel!

A alma do Canho se crispava, semelhante ao mísero que tomado de vertigem à beira do precipício se estorce e contrai para escapar à fascinação do abismo, e debalde estende as mãos convulsas em busca de algum frágil apoio. Com os olhos fitos no semblante da moça, que os relâmpagos cingiam de uma auréola fulmínea, a alma do gaúcho se arrojava de novo nas torturas atrozes por que passara durante os últimos dias, esperando assim subtrair-se à irresistível atração dessa mulher, a quem amava ainda, mas com assomos de furor.

— Manuel, por piedade, Manuel, não me fujas. Ouve! A mulher que tu amaste não existe mais, morreu, ninguém sabe dela. Esta que te fala, nunca a viste, não a conheces; é uma desgraçada que por acaso encontras em teu caminho e que te implora de joelhos a esmola de uma palavra, de um olhar. Não te pede senão compaixão para este desespero com que te ama. Que te custa? Deixa-me seguir-te ao deserto; quando minha presença te aborrecer um dia, atira-me, ou deixa-me no rancho abandonado onde nunca mais voltarás, mas onde eu ficarei te esperando sempre até morrer consumida pela doce esperança.

Durante esta súplica férvida e soluçante, Manuel lutava com a comoção que o invadia. voltado com o impulso do homem que se precipita, ele estacava como suspenso por uma força ingente; entretanto o que o detinha era apenas a mão frágil de uma mulher.

Afinal, cedendo à fascinação, curvou-se lentamente para Catita, que viu ressumbrar-lhe na fisionomia o soçobro d’alma.

— Ah! tu és bom! Tens dó de mim!

— Não! exclamou Canho com veemência.

Repelindo a moça arrebatadamente, ia correr ao lugar onde o esperavam os animais, quando Catita com um ímpeto bravio atalhou-lhe o passo:

— Leva-me contigo ou mata-me! exclamou cerrando convulsivamente as mãos do gaúcho.

O olhar alucinado de Manuel pousou um momento no semblante de Catita e sondou a profundeza do precipício que se abria quase a seus pés, iluminado pelo lívido clarão do relâmpago. Sua mão terrível abarcou na cabeça da moça as longas tranças negras, revoltas pelo sopro da tempestade, e arrastou-a até a borda do abismo.

Rasgou-se nesse momento o céu e a meio do algar, suspenso aos galhos de uma árvore seca, apareceu o cadáver do chileno:

— Olha! Ele te espera! disse Manuel suspendendo a moça para arremessá-la no precipício.

Mas Catita lhe cingira os braços ao pescoço; seu hálito crestou-lhe o rosto. A esse contato desamparou-o toda sua força; os braços lhe caíram inertes e ele afastou-se com o passo trôpego, vacilando como um ébrio. A moça, espavorida do que fizera, seguia Manuel com um olhar pasmo.

Nesse momento um sopro glacial cortou como uma corrente de gelo a atmosfera abrasada.

O peito de Manuel dilatou-se num amplo respiro. Semelhante ao homem que saísse de uma caverna abafada, ele bebia aquele ar frio às golfadas; com os lábios descerrados, os braços abertos, parecia receber um amigo a quem estreitava ao peito.

— O pampeiro!... exclamou.

O filho do deserto, assomando no horizonte, soltou seu primeiro bramido, que sibilou no espaço e fendeu como uma seta o ronco do trovão. Imediatamente as tempestades que trotavam no firmamento fugiram pávidas para os confins da esfera, como um bando de capivaras ouvindo o berro da jibóia.

O pampeiro é a maior cólera da natureza; o raio, a tromba, o incêndio, a inundação, todas essas terríveis convulsões dos elementos não passam de pequenas iras comparadas com a sanha ingente do ciclone que surge das regiões plutônicas como o gigante para escalar o céu.

Ei-lo, o imenso atleta que se perfila. Seu passo estremece a terra até as entranhas; a floresta secular verga-lhe sob a planta como a fina relva sob a pata do tapir; seu braço titânico arranca os penhascos, as nuvens, as tempestades, e arremessa todos esses projéteis contra o firmamento.

Luta pavorosa que lembra as revoltas pujantes do arcanjo das trevas precipitado pela mão do Onipotente nas profundezas do báratro. O maldito, prostrado no seio das chamas eternas, ressurge possesso levantando-se para ascender ao céu; nada lhe resiste; a abóbada do firmamento treme abalada por seu ímpeto violento. Mas que Deus incline a fronte, e Satã cairá fulminado pelo olhar supremo.

O ímpeto do tufão toma todas as formas da ferocidade; sua voz é a gama de todos os furores indômitos. Ao vê-lo, o terrível fenômeno afigura-se uma tremenda explosão da braveza, do rancor e da sanha que povoam a terra.

Aqui o pampeiro surge e arremete como cem touros selvagens escarvando o chão; ali sente-se o convólvulo de mil serpentes que estringem as árvores colossais e as estilhaçam silvando; além uiva a matilha a morder o penhasco donde arranca lascas da rocha, como lanhos da carne palpitante das vítimas; agora são os tigres que tombam de salto sobre a presa com um rugido espantoso. Finalmente ouve-se o ronco medonho da sucuri brandindo nos ares a cauda enorme, e o frêmito das asas do condor que rui com hórrido estrídulo.

E tudo isto, sob um aspecto descomunal e imenso, não é senão a voz e o gesto do gigante dos pampas, concitado das profundezas da terra, para subverter o orbe.

Manuel recobrara o alento respirando o ressolho do tufão, e vendo-se envolto por essa grande alma do deserto. O fracasso dos rochedos arremessados às nuvens e chocando-se no espaço; o estrépito das florestas convulsas que estalavam entre as garras do ciclone; o ruído das casas arrancadas ao chão que se desfaziam no ar trituradas como um torrão de argila; todos esses ecos de ruína e devastação deleitavam aquele coração enganado.

O espírito de Manuel sentia naquele momento a necessidade de cavalgar o tufão como a um corcel bravio, e precipitar-se com ele pelo espaço, arrasando tudo em sua passagem e matando em sua alma a sede horrível que sentia de mortes, desastres e catástrofes.

Quando ia montar na baia, outra vez o prendeu a mão de Catita que se precipitara com veemência e esforçava para retê-lo. Mas repelindo-a com rudeza, saltou ele no lombo da Morena que desapareceu como a folha arrebatada pelo sopro do pampeiro.

Levado pela corrida veloz, Manuel sentiu no peito uma constrição que em seu desvario lhe pareceu de uma tenaz ardente. Catita se lançara na garupa da Morena no momento de partir; era sua mão delicada que lhe esmagava o coração.

Sem forças para desprender-se daquela cadeia, queimando-se ao tépido contato do talhe voluptuoso da moça que estreitava-se com ele, o gaúcho soltou um bramido, como se chamasse em socorro seu o pampeiro, e precipitou-se numa corrida louca e esvairada, cuidando fugir assim ao tormento.

Mas abriu-se diante a fauce escâncara do abismo. O pálido clarão da lua, surgindo dentre as brumas da procela, iluminou o alcantil que sumia-se pelo antro profundo. Agarrado a uma ponta de rochedo, à borda do despenhadeiro, via-se o busto de Félix com a faca nos dentes, lutando com o tufão e devorando com os olhos a distância que ainda o separava do gaúcho.

A Morena ia estacar; Manuel, reclinando-se ao pescoço, gritou-lhe:

— Upa!

Ouviu-se um anseio, um estridor de ramos partidos, o baque de um corpo no fundo do algar, o estrupido de um galope ao longe; e a voz formidável do ciclone cobriu todos esses pequenos rumores. Súbito, porém, como se o filho do pampa só houvesse deixado as estepes nativas para buscar o gaúcho e levá-lo ao deserto, a natureza quedou-se. Cadáver depois da tremenda agonia.

O sol despontava.

A manhã límpida e serena esparziu a doce luz por aquela terra convulsa. No meio dos sobejos da borrasca, entre as estilhas dos troncos seculares, as farpas de rochedo e o solo revolto, o tenro grelo da semente rompia o seio da terra; e a flor azul de uma trepadeira estrelava suas pétalas aveludadas.