O Ganso das Neves/O Ganso das Neves

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O Ganso das Neves


O Grande Pântano fica na costa de Essex, entre a vila de Chelmbury e o antigo vilarejo saxônico de coletores de ostras de Wickaeldroth. Este é um dos últimos lugares selvagens da Inglaterra, composto de uma baixa e longa extensão de grama, juncos e pastagens meio-submersas que terminam em grandes marismas[1], lamaçais e piscinas formadas pelas marés próximas ao mar turbulento. Riachos formados pelas marés, estuários e também os segmentos desuniformes de vários pequenos rios cujas embocaduras remontam até as bordas do oceano correm através das terras encharcadas que parecem crescer, decair e respirar com o retorno das marés diárias. É um local desolado e totalmente deserto, e que se torna ainda mais solitário com os chamados e lamentos de aves selvagens que fazem seus ninhos nos grandes pântanos — os gansos e as gaivotas selvagens, as cercetas e os marrecos, os cacongos[2] e maçaricos que trilham seus caminhos através das piscinas criadas pelas marés. Habitantes humanos não há nenhum, nem são vistos frequentando o local, com a ocasional exceção de caçadores de pássaros e coletores de ostras que ainda fazem um tipo de comércio que já era antigo quando os normandos vieram a Hastings.

As cores do Grande Pântano são cinzas, azuis e verde-claras, enquanto os céus são escuros nos longos invernos, quando as abundantes águas das praias e pântanos refletem sua sóbria e fria coloração. Mas, às vezes, com o nascer e pôr do sol, céu e terra são preenchidos com a cor avermelhada do fogo.

Próxima a um dos sinuosos braços do pequeno Rio Aelder, estende-se a ribanceira de uma antiga parede marítima, lisa e sólida, sem nenhuma fissura, uma proteção terrena contra o mar invasor. Ela se estende até um marisma distante uns cinco quilômetros do Canal da Mancha[3], e então se vira para o norte. Nessa parte, tem a aparência rachada e despedaçada. Já foi rompida pelas águas do mar bravio, que penetraram e tomaram para si tudo que havia ali.

Sobre águas baixas, as pedras escurecidas e partidas das ruínas de um farol abandonado surgem acima da superfície, formando — tais como marcadores feitos com boias no mar — uma espécie de cerca vergada. Antigamente, este farol bordejava o mar e iluminava a costa de Essex, mas o tempo alterou as condições da terra e da água e sua utilidade acabou tendo um fim.

Posteriormente, o farol serviu novamente como habitação humana. Dentro dele, viveu um homem solitário. Seu corpo era deformado, mas seu coração era repleto de amor por coisas e animais selvagens. Quem o olhasse o acharia muito feio, mas ele foi capaz de criar uma grande beleza para o mundo. É a ele, e à uma criança que veio a conhecê-lo e que enxergava o que havia além de sua aparência grotesca, que esta história se refere.

Esta não é uma história que segue calma e suavemente uma sequência, uma vez que ela foi coletada de muitas fontes e por meio de muitas pessoas. Inclusive, algumas destas vem na forma de relatos fragmentados de homens que presenciaram cenas estranhas e violentas. Pois acontece que o mar reivindicou para si o local onde a história ocorreu e cobriu-o de ondas, e o grande pássaro branco de penas levemente escurecidas, que presenciou tudo do começo ao fim, já retornou para as frias e silenciosas terras nórdicas de veio.

No final da primavera de 1930, Philip Rhayader veio para o farol abandonado na embocadura do Rio Aelder. Ele comprou o farol e os muitos acres de terras pantanosas e marismas ao redor.

Ele vivia e trabalhava lá sozinho o ano inteiro. Era um pintor de aves e da natureza, que por certos motivos, retirou-se completamente do convívio com a sociedade humana. Alguns destes motivos ficavam aparentes nas suas visitas quinzenais ao pequeno vilarejo de Chelmbury, onde ia adquirir mantimentos. Os nativos observavam desconfiadamente seu corpo disforme e seu rosto sombrio — ele era corcunda e seu braço esquerdo era aleijado, fino e curvado no pulso, como a garra de uma ave.

Com o tempo, os habitantes do vilarejo acostumaram-se com sua aparência estranha, pequena mas chamativa, com sua massiva cabeça morena e barbada, alojada um pouco abaixo da misteriosa protuberância em suas costas, seus olhos brilhantes e seu braço em formato de garra, referindo-se a ele como "aquele pintor esquisito que vive lá no farol."

As deformidades físicas muitas vezes geram ódio da humanidade em homens que as possuem. No entanto, Rhayader não sentia ódio — muito pelo contrário — ele amava profundamente as pessoas, o reino animal e a natureza. Seu coração era repleto de compaixão e compreensão. Ele sabia conviver bastante bem com suas deficiências físicas, mas não conseguia lidar com as discriminações que sofria por causa de sua aparência. O que o levou a mergulhar no isolamento foi sua incapacidade de encontrar em algum lugar reciprocidade à cordialidade que transbordava dele. Ele repelia mulheres. Os homens até se aproximariam se o conhecessem. Mas o mero esforço em nome da sociabilidade machucava profundamente Rhayader e o levava a evitar a pessoa que o fizesse.

Ele tinha vinte e sete anos quando veio para o Grande Pântano. Ele viajara muito e lutara bravamente antes de tomar a decisão de retirar-se de um mundo do qual não poderia fazer parte como outro homem qualquer. Apesar de sua sensibilidade artística e da ternura feminina enclausuradas em seu peito abaulado, ele era, sem dúvida alguma, um homem.

No seu retiro, ele tinha seus pássaros, suas pinturas e seu barco. Possuía um barco dezesseis-rodapés, o qual pilotava com uma habilidade maravilhosa. Sozinho, sem ninguém para o guiar, dirigia muito bem usando sua mão deformada, e frequentemente usava seus fortes dentes para controlar com maestria as escotas das velas onduladas de seu barco.

Ele navegava pelos pequenos riachos e estuários, indo até o mar, e às vezes ficava fora por dias, procurando novas espécies de pássaros para fotografar ou desenhar; tinha também o hábito de capturá-los com uma rede, para juntá-los à sua coleção de aves, presas num cercado próximo ao seu ateliê, o qual formava o núcleo de um santuário.

Ele nunca atirava em pássaros, e caçadores de aves não eram bem-vindos próximos à sua casa. Ele era amigo de todas as criaturas selvagens, e elas retribuíam com a sua amizade.

Em seu santuário, haviam aves domesticadas que vinham da Islândia e de Spitzbergen todo outubro, voando em grandes grupos que escureciam o céu e enchiam o ar com o estrépito de sua passagem — os flamingos de corpo escurecido, os carcarás de peito esbranquiçado, com seus pescoços negros e máscaras de palhaço, formadas pelas cores das penas de suas faces, e muitas espécies de patos selvagens — marrecos, patos-reais e cercetas.

Algumas possuíam as penas das asas cortadas, ficando estacionadas lá como um sinal para as aves selvagens que vinham no início do inverno, dizendo-as que ali havia comida e abrigo.

Muitas centenas vinham e permaneciam com Rhayader por toda a temporada fria de outubro até o início da primavera, e então migravam novamente para o norte, voltando aos seus locais de reprodução.

Rhayader ficava contente em saber que quando caiam tempestades, ou estava muito frio e a comida era escassa, ou havia uma grande horda de caçadores de pássaros nas redondezas, suas aves estavam seguras; que ele havia dado a proteção de seus braços e o abrigo de seu coração a todas estas belas e selvagens criaturas que o conheciam e nele confiavam.

Elas iriam responder ao chamado para o norte na primavera, mas depois retornariam, gralhando e berrando no céu do outono, vindo circular a região do velho farol e pousar próximo para serem suas hóspedes novamente — aves das quais ele lembrava bem e reconhecia do ano anterior.

E isto fazia Rhayader feliz, porque ele percebia que estes animais sabiam de sua existência e de seu santuário, que este conhecimento havia se tornado parte destas aves, e que o advento dos céus acinzentados e dos ventos do norte mandaria elas de volta para ele.

Quanto ao mais, seu coração e sua alma dedicavam-se à pintura da região em que vivia e de suas criaturas. Não há muitas pinturas suas ainda existentes. Ele as armazenava ciosamente, empilhando-as às centenas em salas dedicadas a isto. Nunca estava satisfeito com elas, pois como artista era intransigente.

Mas as poucas de suas telas que chegaram ao mercado das artes são consideradas obras-primas, repletas com o brilho e as cores da luz refletida nos pântanos, com a sensação de voo, com o premir de aves enfrentando o vento matinal que flexiona os grandes juncos. Ele pintava a solidão e o cheiro do frio salgado, a eternidade e perenidade dos pântanos, as criaturas selvagens, os voos no amanhecer e as sombras aladas na noite escondendo-se da lua.

Em uma tarde de novembro, três anos após Rhayader vir para o Grande Pântano, uma menina aproximou-se do ateliê do farol, vindo pela parede marítima. Em seus braços ela carregava um volume.

Ela não tinha mais do que doze anos de idade; magra, suja, nervosa e tímida como uma ave, mas por baixo da sujeira ela era tão misteriosamente bela como uma fada dos pântanos. Era uma saxã pura, de ossos largos, com a cabeça maior que o corpo e olhos de um violeta profundo.

Ela estava aterrorizada com o homem feio que estava indo encontrar, pois já se criara uma lenda em torno de Rhayader, e os caçadores de aves selvagens da região o odiavam, visto que ele interferia em seu esporte.

Mas maior que seu medo era o problema que ela precisava solucionar. Pois no seu coração de criança havia o conhecimento, aprendido em algum lugar da região pantanosa, de que este ogro que vivia no farol possuía uma mágica que curava coisas machucadas.

Ela nunca havia visto Rhayader antes e estava quase fugindo em pânico com a aparição sombria que surgiu na porta do ateliê, atraída por seus passos — o rosto com barba escura, a corcunda sinistra e a garra torta.

Ela ficou ali olhando, aprumada como uma ave do pântano atiçada e pronta para voar.

Mas a voz dele era profunda e simpática quando ele falou com ela:


— “O que você quer, menina?”


Ela se manteve firme e, então, deu um passo tímido à frente. O que ela carregava em seus braços era uma grande ave branca, que estava completamente inerte.

Haviam manchas de sangue nas penas brancas da ave, e também na roupa que a menina vestia.

A garota entregou a ave aos braços de Rhayader:


— “Eu achei ela, senhor. Ela está muito machucada. Ainda está viva?”

— “Sim. Sim, eu acho que sim. Entre criança, entre”, respondeu Rhayader.

Rhayader foi para dentro segurando a ave, que foi colocada sobre uma mesa, onde ela revolveu-se debilmente. A curiosidade superou o medo. A menina foi atrás e se encontrou em uma sala aquecida pelo fogo do carvão, reluzindo com pinturas coloridas que cobriam as paredes e repleta de um estranha mas agradável fragrância.

A ave agitou-se. Com sua mão boa, Rhayader abriu uma de suas imensas penas brancas. Seu final possuía uma tonalidade belamente escura.

Rhayader olhou, surpreendeu-se e disse:


— "Menina, onde você achou ela?"

— "No pântano, senhor, onde os caçadores de pássaros estavam. O que o que é que aconteceu com ela, senhor?"

— "Este é um ganso-das-neves do Canadá. Mas, por céus, como ele veio parar aqui?"


Este nome parecia não ter significado algum para a pequena menina. Seus profundos olhos violetas, brilhando sob a sujeira de seu fino rosto, fixaram-se preocupadamente no pássaro machucado. Ela disse:


— "Nós podemos curá-la, senhor?"

— "Sim, sim", disse Rhayader. "Nós tentaremos. Venha, você pode me ajudar."


Ele disse: — "Ah, ela tomou um tiro, pobrezinha. Sua pata está quebrada, assim como a ponta da asa! Mas não está tão mal. Vejamos, nós vamos primeiro aparar suas penas, assim nós poderemos enfaixá-la, mas na primavera as penas crescerão e ela poderá voar novamente. Nós vamos enfaixar sua asa rente ao corpo, de modo que ela não possa se mover até o momento em que esteja apta e, em seguida, faremos uma tala para a pobre pata."

Com seus medos esquecidos, a menina observou, fascinada, como ele trabalhava, ainda mais porque enquanto ajustava uma tala fina para a pata quebrada, ele contou-lhe uma história fascinante.

A ave era bem jovem, com não mais que um ano de idade. Nascera em uma longínqua terra nórdica, do outro lado dos mares, em uma terra pertencente à Inglaterra. Enquanto voava para o sul afim de escapar da neve, do gelo e do frio intenso, uma forte tempestade a apanhou, fazendo-a rodopiar e machucando-a. Foi realmente uma tempestade terrível, mais forte que suas asas, mais forte que qualquer coisa. Por dias e noites ela ficou à mercê da tormenta e não havia nada a fazer senão seguir seu fluxo. Quando finalmente a tempestade acabou e seus instintos fizeram-na voar para o sul novamente, ela estava em uma terra muito distante e cercada por aves estranhas que nunca tinha visto. Por fim, exaurida por causa das dificuldades pelas quais passou, ela pousou para descansar neste verde pântano amigável, mas acabou levando um tiro de um caçador.


— "Uma amarga recepção para uma princesa visitante", concluiu Rhayader. "Nós vamos chamá-la de A Princesa Perdida[4]. E em alguns dias ela estará se sentindo muito melhor!" Ele dirigiu-se até um saco no canto da sala e trouxe um punhado de grãos. O ganso-das-neves, abrindo seus olhos redondos e amarelados, mordiscou a refeição.

A menina riu com deleite e então, subitamente, se deu conta do lugar onde estava com certa pressão sobre si mesma e, sem pronunciar palavra, virou-se e fugiu pela porta. — "Espere, espere!", clamou Rhayader, que foi em direção à entrada, onde parou, a porta enquadrando sua corpulência obscura. A menina já estava descendo a parede marítima, mas pausou ao ouvir Rhayader e olhou para trás.


— "Qual o seu nome, criança?", perguntou Rhayader.

— "Frith."

— "Como?", disse Rhayader. "Fritha, eu suponho. Onde você mora?"

— "No vilarejo de pescadores em Wickaeldroth." Ela se referiu ao local com a antiga pronúncia saxônica.

— "Você voltará aqui amanhã, ou no dia seguinte, para ver como a Princesa está se recuperando?"


Ela pausou, e novamente Rhayader deve ter pensado nas aves selvagens pegas desprevenidas naquele breve segundo antes de tomarem voo. Mas a voz fina da menina respondeu para ele: — "Sim!" E ela se foi, com seus cabelos loiros esvoaçando atrás de si.

O ganso-das-neves recuperou-se rapidamente e lá pela metade do inverno já estava mancando dentro do cercado para aves juntamente com os gansos-bravos[5], com os quais se dera — diferentemente dos carcarás — e aprendera a ser alimentado com o chamado de Rhayader. E a menina, Fritha (ou Frith), era uma visitante assídua. Ela havia deixado para trás seu medo de Rhayader. Sua imaginação encantara-se com a presença desta estranha princesa branca de uma distante terra além-mar, uma terra que era toda rosa, como ela havia observado no mapa que Rhayader a mostrara e no qual eles haviam traçado o caminho tempestuoso que a ave perdida fizera de seu lar no Canadá até o Grande Pântano em Essex.

Então, em uma manhã de junho, um grupo retardatário de gansos-bravos, rechonchudos e bem alimentados depois de sua estadia no farol durante o inverno, atendeu ao chamado imperativo da migração e da reprodução e alçou voo lentamente, ascendendo ao céu numa espiral. Juntamente com ele, estava o ganso-das-neves, com seu corpo branco e sua plumagem escurecida brilhando sob o sol da primavera. Tudo isto aconteceu enquanto Frith estava no farol. Seu clamor fez Rhayader vir correndo do ateliê.


— "Olhe! Olhe! A Princesa! Ela está indo embora?"


Rhayader contemplou no céu as manchas criadas pelo grupo de gansos que se espalhava. — "Sim[6]", ele disse, inconscientemente adaptando sua pronúncia ao sotaque da menina. — "A Princesa está voltando para casa. Escute! Ela está se despedindo de nós."

Do céu límpido, veio o crocitar plangente dos gansos selvagens, e mais ao alto ouvia-se o gorjeio agudo e claro do ganso-das-neves. A mancha formada pelo grupo de aves adejava para o norte no formato de um fino V, diminuindo progressivamente, até sumir completamente no horizonte.

Com a partida do ganso-das-neves terminaram as visitas de Frith ao farol. Rhayader compreendeu novamente o significado da palavra "solidão".

Naquele verão, a partir de suas memórias, ele pintou a tela de uma criança magra e coberta de sujeira, seus cabelos loiros alvoroçados pelo vento de novembro, carregando em seus braços uma ave branca machucada.

Em meados de outubro, um milagre aconteceu. Rhayader estava em seu cercado, alimentando os pássaros. Soprava um vento cinzento vindo do noroeste, e a terra gemia sob a maré que vinha chegando. Acima do mar e dos sons do vento, ele ouviu claramente um canto agudo. Virou seus olhos para o céu vespertino a tempo de ver primeiro uma mancha infinita de pássaros e, então, uma figura vaga de penas pretas-e-brancas que deu uma volta no farol e que finalmente tomou forma quando pousou no terreno dentro do cercado, aproximando-se num bamboleio e pedindo para ser alimentada, como se nunca tivesse ido embora. Era o ganso-das-neves. Não haviam dúvidas de que era a Princesa. Lágrimas começaram a escorrer dos olhos de Rhayader. Onde ela esteve? Certamente, não voltou para o Canadá. Não, ela deve ter veraneado na Groenlândia ou em Spitzbergen, junto com os gansos selvagens. Ela lembrou do farol e retornou até ele.

Na próxima vez em que Rhayader foi ao vilarejo de Chelmbury comprar mantimentos, ele deixou uma mensagem com a funcionária dos correios — mensagem essa que deve ter causado nela muito espanto. Ele disse: — "Avise Frith, que vive na colônia de pescadores em Wickaeldroth, que a Princesa Perdida retornou."

Três dias depois, Frith, mais alta, porém ainda despenteada e descuidada, veio timidamente ao farol para visitar a Princesa Perdida[7].

E o tempo passou. No Grande Pântano, ele era marcado pela altura das marés, a marcha lenta das estações, a passagem das aves e, para Rhayader, pelas chegadas e partidas do ganso-das-neves.

O mundo exterior fervia e se agitava com a erupção que em breve se lançaria sobre ele e quase causaria sua destruição. Mas ela ainda não havia afetado Rhayader, muito menos Frith. Eles estavam imersos em um curioso ciclo natural, mesmo com a menina crescendo. Quando o ganso-das-neves vinha ao farol, ela também comparecia, para visitá-lo e também aprender muitas coisas com Rhayader. Eles viajavam juntos em seu veloz barco, que ele manejava com tanta habilidade. Eles também capturaram mais aves selvagens para integrar ao santuário que crescia mais e mais, e construíram novos cercados para elas. Com ele, ela aprendeu sobre cada ave selvagem que sobrevoava os pântanos, da gaivota ao falcão ártico. Ela cozinhava para ele às vezes, e aprendeu até mesmo a misturar as tinturas que Rhayader utilizava em seus quadros.

Mas quando o ganso-das-neves retornava para seu lar no verão, era como se uma barreira fosse colocada entre eles, e ela não vinha mais ao farol. Um ano o ganso-das-neves não retornou, e Rhayader ficou com o coração partido. Tudo parecia ter terminado para ele. Ele pintou furiosamente ao longo do inverno e do próximo verão e não viu a menina uma única vez. Mas o som de um clamor familiar novamente soou no céu, e uma imensa ave branca, agora completamente crescida, desceu dos céus da mesma forma misteriosa com que havia partido. Alegremente, Rhayader navegou com seu bote até Chelmbury e deixou sua mensagem com a funcionária dos correios.

Curiosamente, já fazia mais de um mês que ele havia deixado a mensagem quando Frith reapareceu no farol, e Rhayader, em choque, percebeu que ela não era mais uma criança.

Após o ano no qual o pássaro permaneceu fora, seus períodos de ausência tornaram-se cada vez mais curtos, domesticando-se a tal ponto que passou a seguir Rhayader e até mesmo a entrar no ateliê enquanto ele trabalhava.

Na primavera de 1940, os pássaros migraram cedo do Grande Pântano. O mundo estava em chamas[8]. O rugido dos bombardeios e o ruído surdo das explosões os assustaram. No primeiro dia de maio, Frith e Rhayader ficaram um ao lado do outro na parede marítima observando os últimos dos gansos selvagens e carcarás alçarem voo de seu santuário; ela, alta, esbelta, leve como o ar e assombrosamente bela; ele, sombrio, grotesco, com seu massivo rosto barbado virado para o céu, seus olhos rubros observando os gansos traçarem sua rota de voo.


— "Olhe, Philip!", disse Frith.


Rhayader acompanhou os olhos dela. O ganso-das-neves levantara voo, abrindo suas enormes asas, mas voava baixo e acabou vindo para perto deles, de forma que eles puderam sentir a velocidade de seu voo rasante. A Princesa circulou o farol algumas vezes, e então pousou novamente no cercado, junto com os outros gansos, e começou a comer.


– "Ela não vai partir", disse Frith, com entusiasmo na voz. A ave, em seu voo rasante, parecia ter lançado algum tipo de mágica sobre ela. — "A Princesa vai ficar".

— "Sim", disse Rhayader, com a voz também emocionada. — "Ela vai ficar, e nunca mais vai partir. A Princesa Perdida não está mais perdida. Este é seu lar agora — que ela escolheu por sua livre vontade."


O feitiço que a ave havia lançado sobre a garota foi quebrado, e Frith ficou subitamente consciente do fato de que estava assustada, e o que a assustava eram os olhos de Rhayader — as ardentes, profundas e solitárias palavras não ditas que se refletiam neles quando ele voltou o olhar para ela.

Suas últimas palavras ficaram ecoando na cabeça dela como no momento em que ele as pronunciou: "Este é seu lar agora — que ela escolheu por sua livre vontade". Os delicados fios dos instintos dela alongaram-se até chegar nele, e trouxeram de volta à ela a mensagem das coisas de que ele não poderia falar em razão da visão que tinha de si — deformado e grotesco. E justo quando ouvi-lo falar a tranquilizaria, seu medo aumentou pelo silêncio dele e o poder das coisas não ditas entre eles. Uma mulher busca distanciar-se de propostas cujo teor ainda não é capaz de compreender.


Frith disse: — "Eu — eu tenho que que ir! Adeus. Fico feliz que a Princesa vai ficar. Você não ficará tão sozinho agora."

Ela se virou e foi embora a passos rápidos, e a triste resposta de Rhayader — "Adeus, Frith" — ela mal ouviu, como se fosse um som fantasma que surgisse em seus ouvidos para além dos murmúrios das plantas do pântano.

Ela já estava bem longe quando conseguiu criar coragem para rapidamente espiar o que ficara para trás. Ele ainda permanecia junto à parede marítima, uma mancha escura em contraste com o céu.

Seu medo havia cessado. Ele foi substituído por alguma outra coisa, uma estranha sensação de perda que fez ela ficar parada por um tempo, de tão forte que era. Então, de forma mais lenta, ela continuou seu caminho, para longe do farol que apontava para o céu e do homem aos pés dele.

Passaram-se mais de três semanas até que Frith retornasse ao farol. Maio já ia terminando e o dia também, em um longo crepúsculo dourado que cedia lugar à lua prateada que já surgia na parte leste do céu.

Ela convenceu a si mesma, enquanto seus passos levavam-na adiante, de que ela precisava saber se o ganso-das-neves havia realmente ficado, como Rhayader prometera. No final das contas, ele poderia ter ido embora. Mas seu passo firme ao longo da parede marítima era repleto de ansiedade e algumas vezes ela percebeu que se encontrava inconscientemente apressada.

Frith viu a luz amarela da lanterna de Rhayader sobre seu pequeno píer, e lá ela o encontrou. Seu bote estava balançando suavemente com a maré que transbordava, e ele estava carregando-o com suprimentos — água, comida, garrafas de conhaque, ferramentas e velas para reposição. No que ele se virou para ver quem chegava, ela viu que ele estava pálido, mas seus olhos escuros, normalmente tão amigáveis e plácidos, brilhavam de excitação, e sua respiração estava pesada devido aos esforços que fazia.

Uma súbita preocupação apoderou-se de Frith. Ela havia inclusive esquecido do ganso-das-neves naquele momento. Disse: — "Philip! Você está indo embora?"

Rhayader pausou seu trabalho para cumprimentá-la, e havia alguma coisa em sua face, um brilho e um olhar que ela não tinha visto anteriormente.

— "Frith! Fico feliz de você ter vindo. Sim, eu preciso partir e fazer uma pequena viagem. Mas eu voltarei." Sua voz normalmente suave estava rouca devido àquilo que reprimia dentro de si.


Frith perguntou: — "Aonde você precisa ir?"


As palavras saíram da boca de Rhayader de uma só vez. Ele precisava ir a Dunkirk, a algumas centenas de quilômetros dali, do outro lado do Canal da Mancha. Uma tropa britânica estava presa próxima ao mar, à mercê do exército alemão que avançava. O porto estava em chamas, a posição era irrecuperável. Ele ouvira isto no vilarejo quando foi comprar mantimentos. Homens estavam partindo de Chelmbury em resposta ao chamado do governo, cada barco de pesca ou lancha que poderia se impulsionar no mar deveria atravessar o Canal para resgatar os homens das praias e levá-los até os navios de carga e contratorpedeiros[9] que não conseguiam chegar até a beira, afim de salvar tantos homens quanto possível dos ataques dos alemães.

Frith escutou e sentiu seu coração morrendo dentro de si. Ele estava dizendo que iria cruzar o Canal em seu pequeno bote. Poderia trazer até seis homens por vez, em caso extremo, sete. Ele poderia fazer várias viagens das praias até os cargueiros.

A garota era jovem, rudimentar, inarticulada. Ela não compreendia o que era a guerra, ou o que havia acontecido na França, ou o que significava um exército estar encurralado, mas seu sangue lhe dizia que aquilo era perigoso.


— "Philip! Você precisa mesmo ir? Você não vai voltar. Por que isto tem que ser assim?"


A tensão pareceu ter se dissipado da alma de Rhayader com o primeiro soar das palavras dela, e ele explicou a situação de uma forma que ela compreendesse.


Ele disse: — "Os homens estão encurralados nas praias como pássaros sendo caçados, Frith, iguais às aves caçadas e machucadas que nós costumávamos procurar e trazer ao santuário. Sobre eles voam falcões e águias de aço e eles não tem nenhuma proteção contra estas aves caçadoras metálicas. Eles estão perdidos e atormentados, como se estivessem à mercê de uma forte tempestade, do mesmo jeito que estava a Princesa Perdida[10] que você achou e trouxe para mim, tirando-a dos pântanos há muitos anos atrás, e nós curamos ela. Eles necessitam de ajuda, minha querida, da mesma forma que nossas queridas aves selvagens precisavam, e é por isso que eu devo ir. Isto é algo que eu posso fazer. Sim, eu realmente posso. De uma vez por todas eu serei um homem e cumprirei com o meu dever.

Frith fixou o olhar em Rhayader. Ele mudara muito. Pela primeira vez ela viu que ele não era mais feio, deformado ou grotesco, mas sim muito belo. Certas coisas estavam perturbando sua cabeça, clamando para serem ditas, e ela não sabia como dizê-las.


— "Eu irei com você, Philip."


Rhayader sacudiu a cabeça. "Seu lugar no barco iria deixar um soldado para trás, e depois outro, e depois ainda outro. Eu preciso ir sozinho."

Ele vestiu sua capa de chuva e suas botas e entrou no bote. Virou-se e, acenando, exclamou para Frith: — "Adeus! Você pode cuidar dos pássaros até eu retornar, Frith?"

A mão de Frith se levantou, mas apenas um pouco, para se despedir. — "Vá com Deus[11]", ela disse, mas pronunciando da forma saxônica, — "Eu tomarei conta das aves. Vá com Deus, Philip."

Já caira a noite, iluminada por um fragmento da lua, pelas estrelas e pela luz nórdica. Frith permaneceu na parede marítima, observando o bote deslizando pelo estuário pantanoso. Subitamente, da escuridão atrás dela veio o soar de asas, e alguma coisa passou voando rapidamente por ela. Na luz noturna ela viu o brilho de asas brancas com tons escuros e a cabeça impelida do ganso-das-neves.

A ave ganhou altitude, passou por cima do farol em direção ao riacho — onde o bote de Rhayader estava descendo impulsionado pela brisa — e ficou sobrevoando-o devagar em círculos largos.

O bote e a ave, brancos os dois, permaneceram visíveis por um longo período.


— "Cuide dele. Cuide dele", Frith sussurrou. Quando ambos já haviam sumido de vista, ela virou-se e caminhou lentamente, com a cabeça inclinada, de volta para o farol vazio.


Neste ponto, a história começa a ficar fragmentada, e um destes fragmentos está nas palavras de uns soldados de licença, que as proferiram no Crown & Arrow, um pub localizado na East Chapel.


— "Um ganso, um enorme ganso, que veio nos ajudar", disse o soldado Potton, integrante da Rifes Londrinos de Sua Majestade.[12]

— "Não acredito!", disse um coxo da artilharia.

— "Era um ganso mesmo. O Jock aqui viu assim como eu vi. Ele veio voando por cima da imundície e fedor e fumaça de Dunkirk. Ele era branco, com um tom escuro nas asas, e ficou nos circulando igual a um bombardeiro de mergulho. Jock me disse: — 'É o nosso fim! Este é o anjo da morte vindo nos buscar.""

— "Blasfêmia!", eu disse, "é um ganso, que veio voando de casa até aqui com uma mensagem de Churchill[13], perguntando se estamos aproveitando o banho de mar aqui. É um presságio, isto sim, um poderoso presságio. Nós ainda vamos sair daqui, meu rapaz!"

— "Estávamos estacionados na praia entre Dunkirk e Lapanny, iguais a pombas em Victoria Embankment[14], esperando os alemães. E eles chegaram atirando. Vieram por trás, pelos lados e por cima. Era metralhada, bombardeio e balas de Jittersmith vindo até do céu".

— "E em alto mar estava o Kentish Maid, a barcaça que eu já havia pego em várias viagens saindo de Margate no verão, por dois e seis, esperando para nos buscar a cerca de meio quilômetro de onde estávamos.

— "Enquanto nós estávamos lá na praia, praguejando porque não havia modo de nós chegarmos até o barco, começaram a cair bombas por todos os lados dele, e as explosões fizeram jorrar água igual às malditas fontes dos jardins do palácio; esta já era uma cena comum."

— "Então um navio de guerra veio e disse 'Não!' para o bombardeiro[15] com uma arma antiaérea, mas outro alemão atacou o navio, acertando-o em cheio. Ele queimou antes de afundar, e a fumaça e o fedor chegaram até a praia, toda amarela e preta, e no meio dela surgiu este ganso, que ficou nos circulando enquanto estávamos presos lá."

— "E então, fazendo a curva, lá veio ele em um pequeno barco, navegando da forma mais habilidosa que vocês possam imaginar, como um dândi dando uma volta prazerosa em um final de tarde em Henley[16]. "

— "Veio quem?", perguntou um civil.

— "Ele! Ele, o que salvou vários de nós. Ele navegou tranquilamente debaixo de uma chuva de balas de um alemão que disparava de um Jittersmith — um barco motorizado de Ramsgate que havia tentado nos buscar havia afundado meia hora atrás — a água estava repleta de restos de cartuchos e de munições e, mesmo assim, ele não se importava. Ele não teve medo de ser fuzilado ou explodir e navegou entre os destroços."

— "Ele chegou na água rasa, vindo através da fumaça do navio de guerra em chamas, um pequeno homem moreno com barba, uma estranha garra em uma das mãos e uma corcova em suas costas."

— "Ele segurava uma corda com os dentes, que brilhava branca, em contraste com sua barba escura; seu braço bom segurava o leme e o torto acenava para nós virmos. E acima dele, circulando continuamente, voava o ganso."

— "O Jock aqui me disse: 'Olha, está tudo acabado. É o maldito diabo que veio em pessoa nos buscar. Eu devo ter sido baleado e nem percebi.'"

— "'Besteira!', eu disse, 'para mim ele se parece mais com o Senhor do que com qualquer maldito diabo.' E ele surgiu, como nas pinturas de livros escolares, com sua face branca e olhos negros, sua barba e o barco."

— "'Eu posso carregar sete pessoas por vez', bradou quando estava próximo."

— "Nosso oficial gritou: 'Bom homem!... Vocês sete que estão mais próximos, entrem logo.'"

— "Nós avançamos com dificuldade até onde ele estava. Eu estava tão desgastado que não conseguia subir a bordo, mas ele me puxou pela gola da minha túnica e me alçou, falando 'Pronto, meu rapaz. Que venha o próximo homem.'"

— "E eu estava a bordo. Deus, ele era realmente forte. E então ele zarpou, com a embarcação já marcada por balas, bradou 'Mantenham-se abaixados no fundo do bote, rapazes, no caso de sermos atingidos' e estávamos no mar, com ele sentado na popa com uma corda nos dentes, outra em sua garra e com o braço bom no leme, navegando através do rastro de cartuchos jogados por uma bateria de tiros em algum lugar na costa. E o ganso continuava voando ao redor, grasnando acima do vento e da barulheira dos alemães, como um maldito Morris[17] em uma rodovia de Winchester.

— "'Eu disse que este ganso era um presságio', falei para o Jock. 'Olhe para ele lá, o anjo da piedade.'"

— "O sujeito do leme apenas olhava para o ganso, com a corda em seus dentes, e sorria para ele como se o conhecesse há uma vida."

— "Ele nos levou até o Kentish Maid e voltou para buscar mais gente. Ele fez viagens por toda a tarde e noite adentro também, já que a luz de Dunkirk em chamas era suficiente para poder enxergar. Eu não sei quantas viagens ele fez, mas ele, mais um elegante bote com motor do Thames Yacht Club e um grande barco salva-vidas de Poole, que se juntaram a ele, resgataram todos nós daquele maldito pedaço do inferno, sem perder nenhum homem."

— "Partimos assim que o último homem embarcou, e havia mais de setecentos de nós a bordo de um bote construído para no máximo duzentas pessoas. Ele ainda estava lá quando nós partimos, e ele acenou em despedida e partiu em direção a Dunkirk, com a ave junto com ele. Nossa! Era muito estranho ver aquele gigantesco ganso voando ao redor do barco, sobrevoando as chamas como um anjo branco contra a fumaça."

— "Outro avião bombardeiro foi atrás de nós e estava na metade do caminho, mas ele acabou nos perdendo na escuridão. Pela manhã, estávamos salvos em casa."

— "Nunca descobri o que aconteceu com ele, ou quem ele era — o corcunda e seu pequeno barco. Um homem bom de verdade, aquele camarada."

— "Interessante!", disse o homem da artilharia. Um ganso gigante. O que não se vê por aí?"


Em um clube de oficiais na Rua Brook, um oficial naval aposentado, de sessenta e cinco anos de idade, Comandante Keith Brill-Oudener, estava contando a experiência que teve ao longo da evacuação de Dunkirk. Chamado da cama às quatro horas da manhã, ele havia capitaneado um rebocador de Limehouse através do Canal da Mancha, rebocando barcaças do Tâmisa, as quais retornaram, quatro vezes, carregadas de soldados. Em sua última viagem, seu barco teve a chaminé destruída e uma das laterais rompida por disparos. Mas, mesmo assim, conseguiu voltar para Dover.

Um oficial naval reservista, que teve dois barcos rebocadores de Brixham e um barco pesqueiro de Yarmouth destruídos sob seu comando nos quatro dias de evacuação, disse: "Você chegou a ouvir aquela lenda bizarra sobre um ganso selvagem? Falavam muito disso nas praias. Você sabe como estas coisas se espalham. Alguns dos homens que eu trouxe para cá estavam comentando a respeito. Supostamente, ele apareceu em intervalos nos últimos dias entre Dunkirk e La Panne. Se você o visse, provavelmente seria salvo. Este tipo de coisa."


— "Hmmm", disse Brill-Oudener, "um ganso selvagem. Eu vi um domesticado. Uma experiência realmente estranha. De certa forma trágica, também. Mas uma sorte para nós. Você me diz a sua opinião. Estávamos na terceira viagem de volta. Eram em torno de seis horas quando nós avistamos um pequeno barco abandonado. Parecia haver um corpo dentro dele. E um pássaro estava empoleirado no parapeito."

— "Nós mudamos nosso curso quando chegamos perto e fomos ver o que havia nele. Por Deus, era um camarada. Ou havia sido, pobre amigo. Todo fuzilado, com o rosto dentro da água. O pássaro era um ganso, um domesticado. "

— "Nós chegamos mais perto do bote, mas quando um de nossos companheiros foi até ele, o pássaro sibilou e o golpeou com as asas. Ele não conseguia afastar a ave. Subitamente, o jovem Kettering, que estava comigo, apontou para estibordo. Uma grande mina explosiva flutuava nas proximidades. Uma das maravilhas dos alemães. Se nós tivéssemos mantido nosso curso, teríamos nos chocado com ela. Afastamo-nos bastante, e então os homens destruíram a mina com um tiro de rifle."

— "Quando voltamos nossa atenção novamente para o bote abandonado, ele havia sumido. Afundou, com o camarada dentro. O pássaro ficou sobrevoando o lugar em círculos. Três vezes, como uma espécie de saudação. Isto transmitia uma sensação muito estranha. E então, a ave voou para oeste. Sorte nossa que nós fomos dar uma olhada lá, hein? Estranho você ter mencionado um ganso."


Fritha permaneceu sozinha no pequeno farol do Grande Pântano, cuidando das aves, aguardando por algo que ela não sabia exatamente o que era. Nos primeiros dias ela ficou ao lado da parede marítima, apenas observando, embora soubesse que isto não fazia sentido algum. Depois, ela vagou pelos depósitos do farol, cheios de pilhas de telas, nas quais Rhayader capturara todo o espírito e a luz do pântano desolado e as incríveis, graciosas aves que nele habitavam.

No meio delas, Fritha encontrou a pintura de memória que Rhayader fizera dela muitos anos atrás, quando ela ainda era uma criança, e aparecera, toda tímida, no marco da porta, segurando uma ave ferida.

A pintura e as coisas que ela viu retratadas nela mexeram com ela de uma maneira inédita. Muito da alma de Rhayader estava ali. Curiosamente, esta foi a única vez que ele pintou o ganso-das-neves, a criatura selvagem perdida, arrastada pela tempestade para uma terra distante, criatura que levou Frith a fazer um amigo e que, no final das contas, retornou para ela com a mensagem de que nunca mais o veria novamente.

Muito antes do ganso-das-neves retornar, descendo de um céu escarlate para circular o farol em uma última despedida, Fritha, através dos poderes antigos do sangue que nela circulava, sabia que Rhayader não iria retornar.

E então, quando durante um certo pôr-do-sol ela ouviu o canto agudo e que lhe era tão familiar soando nos céus, não surgiu em momento algum uma falsa esperança em seu coração. Este momento, lhe parecia, ela já havia vivido muitas vezes.

Ela foi correndo para a parede marítima, olhando não em direção ao Canal da Mancha — de onde um barco poderia surgir —, mas sim para o céu onde, brilhando como chama, surgia o ganso-das-neves. Aquela visão, o som e a solidão dos arredores quebraram a fortaleza que existia dentro dela, libertando a intensa veracidade de seu amor na forma de muitas lágrimas.

Como um espírito selvagem chamando outro igual, ela parecia estar voando junto com a grande ave, elevando-se com ela no céu vespertino e escutando a mensagem de Rhayader.

Terra e céu tremiam, e a mensagem a impactava de forma inexprimível: — "Frith! Fritha! Frith, meu amor. Adeus, meu amor." As penas brancas de pontas escuras conduziam a mensagem para dentro de seu coração, que respondia: — "Philip, eu te amo!"

Por um momento, Frith pensou que o ganso-das-neves ia pousar dentro do antigo cercado, visto que os gansos de penas aparadas estavam grasnando boas-vindas. Mas ele somente planou baixo, e então subiu novamente, voando em um largo e gracioso espiral em torno do velho farol, para ascender de vez aos céus.

Observando a cena, Frith não viu mais o ganso-das-neves, mas sim a alma de Rhayader despedindo-se dela para sempre.

Ela já não estava mais voando junto com a ave! Então, estendeu seus braços para o céu e clamou: — "Vá com Deus, vá com Deus, Philip!"

As lágrimas de Frith cessaram. Ela ficou por um tempo contemplando em silêncio o horizonte depois que o ganso-das-neves se foi. Então, ela entrou no farol e segurou a pintura que Rhayader fizera dela. Abraçando-a junto ao peito, ela trilhou seu caminho para casa, ao longo da velha parede marítima.

Toda noite, ao longo de muitas semanas, Frith foi ao farol alimentar as aves. Mas, num amanhecer, um piloto alemão em um ataque matinal enganou-se e tomou o velho farol abandonado por alvo militar, mergulhando sobre ele como um falcão de aço, destruindo-o e lançando tudo que havia nele ao esquecimento.

Naquela noite, quando Fritha foi ao farol, o mar havia invadido-o através das paredes destruídas e alagado tudo. Nada permaneceu para quebrar a desolação total, com exceção das gaivotas assustadas, que sobrevoavam o local e, guinchando, lamentavam sua perda.

Fim do conto

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  1. Áreas de solo rebaixado frequentemente inundadas pela água salgada. [NT]
  2. Ave de penas vermelhas comumente encontrada na Europa, África e Ásia. [NT]
  3. Faixa marítima que separa o sul da Inglaterra do norte da França. [NT]
  4. La Princesse Perdue é o termo original que Rhayader pronuncia em francês. [NT
  5. O texto refere-se aos "gansos de patas rosas" (wild pink-footed geese), que vivem nas regiões pantanosas de quase toda a Europa. [NT]
  6. O termo original no texto é "Ay", uma forma antiga e coloquial de concordância dos idiomas proto germânicos. [NT]
  7. Novamente, nesta parte do texto é empregada a expressão em francês La Princesse Perdue. [NT]
  8. Referência à II Guerra Mundial, que ocorreu entre 1939 e 1945. [NT]
  9. O termo original em inglês é destroyers, que eram navios de guerra equipados com proteções contra torpedos de submarinos e bombardeios aéreos. [NT]
  10. Princesse Perdue [NT]
  11. A expressão original no texto é "God speed you" [NT]
  12. His Majesty's London Rifles", parte do regimento real de fuzileiros da Inglaterra. [NT]
  13. Winston Churchill foi primeiro-ministro inglês durante a II Guerra Mundial. [NT]
  14. Região ao norte do Rio Tâmisa, em Londres. [NT]
  15. O termo original no texto é Stuka, referindo-se ao Sturzkampfflugzeug, um bombardeiro de mergulho alemão da II Guerra Mundial. [NT]
  16. Henley-on-Thames é uma pequena cidade inglesa situada às margens do Rio Tâmisa, no sul de Oxfordshire. [NT]
  17. Antigo carro produzido na Grã-Bretanha. [NT]