O Garatuja/II
Em outro ponto do rossio, para o lado da Misericórdia, tinha-se formado novo motim de gente, que se apinhava para ouvir os pormenores do caso.
Quem falava era uma velha, de trunfa bem riçada em topete, com a mantilha trançada acima do ombro e repuxada por baixo do braço direito, o qual gesticulava de uma maneira desabrida.
Tinha a regateira uns olhos tão pequenos que pareciam dois caroços de feijão-preto embutidos na testa; as pestanas, as comera a sapiranga que lhe arroxeava as pálpebras. A boca, de bom tamanho, desdentada na frente, em falando, o que era o seu estado habitual, mostrava uma língua fina e ligeira, que espevitava os beiços delgados, como o ferrão de uma vespa devorando por dentro a casca de uma goiaba.
Essa linguinha afiada, que tinha fama de cortar como nenhuma outra na pele do próximo, pertencia à Sra. Pôncia da Encarnação, que fazia vida de regateira; mas não se ocupava de outra cousa senão de espreitar por detrás da rótula o que ia pela rua, para enredar os vizinhos e falar mal da vida alheia.
Fronteiro a ela, e seu atento ouvinte, aparecia o Belmiro, sujeito esgrouvinhado e macilento, com um corpo desengonçado sobre duas pernas de taquari.
As pastas de alvaiade que tinha pelo cabelo ruivo e assanhado, bem como as dedadas de oca e zarcão, apalpadas nas mangas e peitos do gibão de cor indescritível, estavam-lhe denunciando o ofício de pintor.
— Ninguém me tira de que tudo isto não passa de artes daquele capeta, Deus me perdoe, do Garatuja... Sabem? O cujo da Rosalina, que ela chama de enjeitado!... Nanja eu, que engula essa! Ai, a sujeita é matreira! Lá isso é, não tenham dúvida! Como ela arranjou o tal enjeitadinho tão a ponto, que foi mesmo um trás, zás; saiu por uma porta, entrou por outra, e manda El-Rei meu senhor que me conte novas. E o maganão do alferes, que ainda anda na corte requerendo licença para meter-se em matrimônio, e já o filho... Olhem que não sou eu quem diz, a cidade anda cheia... e já o filho quer passar-lhe a perna. Pois não verão frango com gogo? O peralvilho do enjeitado a se derrengar com a filha do tabelião, a Marta! ... Sonsa como ela só! É rapariguinha para dar sota e basto a um seminário inteiro de minoristas, e ainda sobra! De olho só, gentes, não estejam aí a maldar; só de piscar o olho e namorar de janela é que eu falo, que lá do mais não sei!... Enfim eu cá não meto minha mão no fogo por ninguém! Deus me defenda!... Tomara eu poder com os meus pecados, quanto mais ainda por cima carregar lá com a culpa do que os outros fazem!
Ao cabo desta lengalenga, que zunia como uma matraca tangida em ofício de trevas por garoto formigão, tomou a Pôncia respiração, mas para despedir-se em nova parlice.
— A tal rapariguinha... Não digam que foi a Pôncia quem contou. Menos essa, que não quero enredos comigo! A sonsa da Marta anda desinquietando os familiares do prelado. Os minoristas, já se sabe... isso de rapazes perto da cachopa, é como algodão que em lhe tocando fogo, fica logo em labareda!... Mas o Garatuja, como não lhe cheirasse a cousa, lá fez das suas trampolinas, e pregou algum mono à clerezia, a qual se engrilou com o Sebastião Ferreira, e então arrumou-lhe a assuada! Pudera não! Os formigões!... Escrevam, e verão se eu lhes engano. A tramóia toda foi arranjada pelo demônio do Garatuja... Cruzes, filho de Belzebu, engrimanço do porco sujo!... O tabelião e o prelado andam aí vendidos!... Sou capaz de jurar!... Agora se o Almada também está enfeitiçado pela rapariga, e teve algum bate-barba com o tabelião, pelo que assanhou a clerezia contra ele... pode bem ser; não digo que não; mas com certeza o Garatuja andou metido em toda essa embrulhada.
— Ele pode ser, disse o Sr. Belmiro. Aquele rapaz é das Arábias!... Dizem...
Levou o pintor a mão esquerda espalmada ao canto direito da boca, á guisa de empanada, e sombreando a voz concluiu:
— Dizem que tem partes com o demo!...
— E o senhor anda metido com ele, acudiu a Pôncia.
— Pela razão do ofício, que o diabo do rapaz tem jeito para a cousa.
— Vá-se fiando na Virgem e não corra. Um dia, quando estiver desprecatado, ele é capaz de embrulhálo nas barafundas do inferno, e pum!... Lá vai! Carrega-o direitinho para as caldeiras do Botelho!... Eu cá, gentes, como por mal de meus pecados moro defronte da arrenegada da mãe, vivo me benzendo! ... A rótula, todo o santo dia que Deus manda, não me fica sem um raminho d'arruda, que é para arredar o mofino, se lhe der na veneta de vir tentar-me!... Credo!... Que só de pensar nisto, estou tremelicando toda por dentro e por fora, que nem passarinha de carneiro!... e um pucarinho d'água benta com seu raminho de alecrim, que todos os domingos trago do colégio, que me dão os bons padres. Santos homens, agarradinhos, é verdade, que nem escorropichado sai daí um tostão!...
Ia continuar a Pôncia, tosando um tanto a pele aos jesuítas, com quem aliás tinha suas privanças; mas agitaram-se outra vez as turmas de gente que cercavam a casa da Câmara por não poderem penetrar no interior, e foi a beguina enrolada em um remoinho, produzido pelo retrocesso da multidão.
Dera causa a esse novo rebuliço a entrada no rossio de um ajuntamento de pessoas, que se encaminhavam em forma de cortejo para o senado fluminense. Traziam todas as roupas talares, de estofo preto, como então usava a gente de justiça; e se não eram rigorosamente conformes aos preceitos da pragmática, não davam escândalo, como acontecia na ocasião de festas e até mesmo em visitas do quotidiano.
O da frente era o ouvidor, e os outros, oficiais da justiça d'El-Rei, por ele postos naquela capitania, que vinham todos unidos em corpo protestar contra a violência inaudita que tinham recebido na pessoa de seu cabeça, o primeiro ministro togado, e presidente da comarca.
Ali ia também o tabelião Sebastião Ferreira Freire, a causa primeira da mitrada que desfechara o prelado sobre a toga do ouvidor, e que ameaçava de grandes calamidades a cidade de São Sebastião.
Enquanto os juizes, vereadores e homens bons assentam em conselho no melhor meio de salvar a república, remontemos nós o curso dos acontecimentos para conhecer as causas do imprevisto sucesso, que pôs em alvoroto a população fluminense.