O Garatuja/V
A sogra do nosso tabelião, a Sr.a Romana Mência, era apontada entre as pessoas de maior devoção da cidade.
Além do terço que se rezava todas as semanas em sua casa, gostava a devota de fazer o presépio de Natal, e suas novenas pelo correr do ano.
Uma novena naquele tempo fazia as vezes da partida familiar em nossos dias. Emprazavam-se umas tantas famílias do trato e conversa íntima da Sra. Romana com o fim de festejar algum santo por tenção especial.
Armava-se o oratório, tirava-se para a frente a imagem do santo em cuja tenção era a novena, e durante oito dias, e à boca da noite, rezava-se a ladainha. Afinal chegava o dia da festa, em que havia luminárias e outras frandulagens.
Depois da reza, os velhos franceavam contando histórias do bom tempo que não volta, e recordando as rapazias que tinham feito. As devotas de respeito destrinçavam na vida alheia, mas sempre arrenegando dos mexericos dos noveleiros; as meninas fingindo escutar as mães, acompanhavam com o canto do olho os folguedos dos rapazes que saltavam no quintal, atacando foguetes ou fazendo sortes.
Afinal vinha a ceia, forte e suculenta, como precisavam para conciliar o sono os estômagos de nossos avoengos. Em vez do sorvete, chupava-se o excelente ananás e a laranja, e por volta das nove horas estavam todos recolhidos.
Uma das vizinhas da Sra. Romana Mência tinha um enjeitado, que era estudante. Chamava-se o rapaz Ivo do Val, e fora achado uma noite à porta da casa, onde morava então com sua família, como donzela recatada, a Sra. Rosalinda das Neves, que veio a servir-lhe de protetora e mãe de criação.
Boquejou-se, embuste de praguentos, que o enjeitado não era outro senão o fruto dos amores da donzela com um alferes do terço da infantaria, vindo do reino. O oficial prometera casamento; mas para desempenhar-se de sua palavra honrada, esperava a licença de El-Rei, da qual aliás não carecera para o mais que adiantara por conta da futura boda.
Assim não chegando a pedida vênia, impetrada para Lisboa, e avultando à Rosalinda umas esperanças, que já lhe não cabiam no justilho, enquanto lhe minguavam as outras, que dantes lhe enchiam de abundâncias o coração, tomou a mãe da moça as devidas cautelas para tapar a boca aos praguentos.
A moça adoeceu de ruim achaque; e ao cabo de umas tantas semanas, lá em certa noite apareceu na soleira da porta a resmelengar, uma trouxa que não se soube donde vinha. Disse a gente de casa que a trouxera um rebuçado embaixo do ferragoulo, e mal ali pousou, logo deitou a correr.
Quem isso afirmava era a velha, que estava passando o seu rosário bem descansada, quando ouvira um grunhido na porta; e abrindo a rótula depois dos indispensáveis exorcismos e benzimentos, logo pôs em alvoroço a vizinhança, gritando:
— Abrenuntio! Abrenuntio!... Cruzes! Te esconjuro!
— O que é, comadre? perguntou-lhe a vizinha do lado.
— O porco sujo que me está fossando na porta, senhora!
— T'arrenego!
— E foi um maldito cigano que o trouxe! Eu bem o vi pelo buraco da rótula quando passou cosido num couro de bode, e então deitava uma catinga de enxofre.
— Que me conta, comadre?
— É como lhe estou dizendo.
— Espere, vizinha, que já lhe levo o meu coto bento de Jesusalém. Se for o cão tinhoso, há de ver como espirra, por mais artes que tenha. Aquilo é uma vela milagrosa!.
Saíram as vizinhas com os maridos, e toda a casta de relíquia e esconjuros, e afinal conheceram que a causa do barulho era um enjeitado, e de gente pobre, pois estava embrulhado em uma esteira velha.
No meio das exclamações de espanto e observações das comadres, ouviu-se um risinho de mofa. Era a vizinha defronte, a Pôncia, uma língua de lanceta, que se divertia cantarolando num falsete de tirar couro e cabelo:
Ele sai pelo quintal,
Porém entra pela rua,
Ora, etcetra e tal;
Tudo o mais é falcatrua!
Seu alferes, al não al.
— Que é isto, vizinha, cantando a esta hora da noite?
— Ai! ai! gente; quem canta, seus males espanta.
— Enredeira do inferno! resmungou a mãe da Rosalinda.
Criou-se o menino; e chegando à idade, o mandaram à escola aprender as humanidades, para depois lhe arranjarem algum modo de vida. O rapaz era esperto; até demais; porém não dava para clérigo, como dizia então o povo, dos que não mostravam aptidão literária.
A razão desse dito é que nesse tempo a instrução no Brasil era um privilégio das ordens regulares, especialmente dos jesuítas. O estudante confundia-se facilmente com o minorista que se preparava para o sacerdócio.
Ivo era assíduo no pátio do colégio, mas no tempo em que devia prestar atenção ao mestre, distraía-se em ver os painéis que pendiam das paredes, e as imagens das capelas. Ficava assim horas e horas com os olhos pregados nessas figuras, como se as quisesse embutir dentro d'alma.
Ao sair da aula, armava-se de um carvão, e lá se ia a despejar pelos muros cio convento caretas e engrimanços de toda a sorte, pelo que estava constantemente a levar carolo do padre-reitor, quando não era a penitência de joelhos ou em cruz, e o jejum a pão e água.
Mas apesar de todo esse rigor, era preciso de tempos em tempos caiar as paredes do dormitório, pois pareciam um pano de rás, com as figuras e novidades de que as enchia o endiabrado rapaz.
Afinal, cansados os padres de aturar aquele eterno pinta-monos, e convencidos de que era um borrador impenitente e relapso, despediram-no do pátio, onde pouco aproveitava, pois além de ler e escrever, o mais que sabia era de outiva, e não passava de uma tintura de cada cousa.
Assim ficou o Ivo senhor de seu tempo, para trocar as pernas pelas ruas de São Sebastião, e riscar toda a parede que lhe caia debaixo do carvão; donde veio chamar-lhe a gente o "Garatuja".
Com isto davam-se a perros os donos das casas, que as tinham de caiar amiúde; mas o povo divertia-se a ver as diabruras do rapaz, como hoje em dia nos pasmatórios da Rua do Ouvidor, aprecia as caricaturas expostas nas vidraças.
Os malignos achavam nos bonecos algumas parecenças com certos grandes da cidade, e descobriam umas alusões aos boatos e mexericos do tempo.