O Garatuja/VI
É para notar que passando a Companhia de Jesus por tio solícita em aproveitar as várias aptidões da infância, cuja instrução tinha a seu carrego, expulsasse o Colégio de seu pátio ao rapaz que tão decidida vocação revelava para a pintura.
Mas esse zelo e perspicácia era estimulado pelo espírito de corporação e interesse no engrandecimento da ordem. Assim nada o excedia quando se tratava de adquirir para o Instituto um engenho superior ou mesmo uma aptidão artística.
Pela mesma razão, se lhes escapava a consciência do menino em quem lobrigavam a centelha do gênio, e pressentiam nele os assomos da independência, seu desvelo era sufocar essa alma na sua nascença, crestá-la como ao botão de flor sem água nem sol. Assim conseguiam muita vez um aleijão moral, que servia para beato, se não dava para mendigo.
O Ivo cedo mostrara a ojeriza que tinha pela roupeta. Desde as primeiras rabiscadelas, não lambuzava uma figura de raposa sem o trajo de rigor. Os padres arrenegavam-se; o rodeiro andava constantemente de brocha em punho para apagar aquelas artes do demo; mas ainda havia esperanças de torcer o pepino.
Até que perdeu o reitor a paciência; e o caso não era para menos.
Havia em São Sebastião uma velha ricaça, chamada D. Ana Carneiro, que morava lá para as bandas da Quitanda do Marisco, quase no canto, onde se levantou mais tarde a Igreja de São Pedro. A Companhia andava desde muito angariando a gorda herança, quando correu na feira a nova de que a velha fizera testamento e deixava todo o possuído a seus colaterais.
Murchos ficaram os padres com o logro; e pode-se bem imaginar a ira fradesca de que foram acometidos, quando ao outro dia lhes veio dar aviso um irmão, dos de capa curta, de que na taipa da descida do Castelo para o lado do Boqueirão da Carioca, havia um rascunho ou grotesco alusivo ao logro.
Era o Ivo que na véspera, por trindades, ao sair do pátio, pusera o caso ao figurado. Primeiro pintara um bicho que se conhecia bem ser um carneiro, a correr com uma velha trepada nas costas, e a cauda a abanar. Atrás, mas logo atrás, enfiava uma pinha de narizes, de vários tamanhos e feitios, todos a farejarem com olfato de perdigueiro o objeto que lhes estava adiante. Cada qual desses vultos era um retrato; não havia mais que uma roupeta e um nariz, porém tal expressão lhe dera em dois riscos o diabrete do rapaz, que ali estava a Companhia em peso representada pela fiel efígie de suas reverendíssimas ventas.
À vista de tamanho desacato dividiram-se os pareceres; chegou-se a falar no Santo Ofício, e na necessidade de relaxar em carne o relapso; também houve quem lembrasse o exorcismo e o cárcere; prevaleceu todavia o alvitre mais prudente de abafar o negócio e evitar o escândalo.
Os jesuítas eram mestres da vida; e ninguém os excedia nessa arte proveitosa de concertar as pancadas, "dando umas em cheio e outras em vão", o que tornou-se hoje em dia a suma da boa política.
No fim de contas, Ivo não passava de um pobre rapaz, que deixado a si, nada valeria, baldo como era de meios, e sem indústria para os haver. A sua birra com os padres não vinha senão de o constrangerem ao estudo, e do receio também de que mais tarde lhe encaixassem a roupeta de noviço. Uma vez sobre si, e desafrontado da suspeita, não se lembraria mais de embirrar com a Companhia.
Por outro lado, desde que perseguissem o estudante com severo castigo, não era provável que lhe acudissem de românia como protetores, os poderosos inimigos do Instituto? E nas mãos desses, não se tornaria o rapaz perigoso instrumento, de cuja obra ali tinham uma tosca amostra? Estas ponderações, fê-las o Padre Francisco Madeira, o professo que mais voz tinha no capítulo, pelo grande fundo de saber, como pelo tento no manejo das temporalidades. Movido por voto de tanto peso, e também pela voga em que andava o rapazola entre o poviléu, adotou o Padre Antônio Forte, reitor do colégio, o alvitre, e com o melhor êxito; pois ninguém aventou a cousa que passou desapercebida.
Ficou Ivo como queria, vivendo à mangalaça pelas ruas de São Sebastião, e nos arrebaldes, que a pouco e pouco se foram transformando em bairros, e estão agora dentro da cidade.
Tinha naquele tempo a capital um pintor de casas, que se não era o único, passava pelo melhor. A ele, ao Sr. Belmiro Crespo, cabe a honra dos boscagem e frescos que talvez ainda se encontram por aí nalgum teto de sobrado ou retábulo de igreja.
Era artífice de consciência; moía as suas tintas como não faria um moleiro ao trigo; concertava-as na palheta com o brio de uma doceira a anaçar gemas de ovos; e de tento na mão, traçava na madeira, na cal ou no pano, as suas figuras, com escrúpulo de copista e paciência de chim.
O Sr. Belmiro Crespo pintava por molde; e nesse gênero era insigne. Mas fora daí, não havia meio de tirar dele, nem sequer uma casa, o abecê da paisagem. Era incapaz de copiar da natureza, ainda com o auxílio do espelho.
O nosso Ivo sentia desde muito uma atração bem natural para a tenda do pintor, e furtava horas ao recreio para as gastar ali, de pé na porta, a ver as grinaldas e passarinhos que o Belmiro transportava dos recortes de papelão para os seus painéis de lona.
Agora, livre do pátio, podia fazer sua assistência na tenda do oficial, e ali com efeito passava o melhor de seu tempo, a ajudar os vários misteres da pintura, no que se foi tornando perito.
O Belmiro, que a princípio o tratava como um pé-rapado, começou a acamaradar-se, logo que lhe descobriu os préstimos; e por fim tão prendado ficou do diacho do rapaz, que o trazia nas palminhas; e muito se rosnou pela vizinhança acerca de um pacto que o pintor havia feito com o diabo, para este lhe servir de aprendiz em paga da alma que lhe vendeu.
Estes cochichos e dizeres vinham de uns segredos que os dois tinham entre si, e das cachas que usavam passando horas e horas trancados, sem dúvida a fazer bruxarias e outras maldades.
Ao mesmo tempo, aparecia grande novidade em São Sebastião. A cansada grinalda e os pássaros com que o Belmiro invariavelmente ornava as paredes e tetos das casas, foram substituídos por festões de flores graciosas, e trechos de boscagens que pareciam copiados das florestas da Carioca e Tijuca.
Dizia o Belmiro, que tardando-lhe os moldes encomendados para Lisboa, cerca de ano, e estando os antigos já muito vistos, ele se propusera a fazer novos, e pedia indulgência para os seus humildes esboços, filhos só da boa-vontade.