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O Garatuja/VII

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Certa manhã, andava o Ivo a pautear com o nariz ao vento pelas margens da Lagoa das Marrecas, espantando os irerês e colhendo flores para as copiar à têmpera, lá na tenda do Belmiro.

Cobria a Lagoa das Marrecas a rechã, onde corre hoje a rua do mesmo nome, até as fraldas dos três Outeiros do Desterro, do Carmo e do Castelo, entre os quais se derramava como acolchoado de um divã, cujo recosto formassem as verdes encostas das colinas.

O caminho da cidade cortava pela frente da Ermida, pequena capela da invocação de N. S. da Ajuda, construída no lugar onde faz esquina agora a Rua da Guarda Velha, que não passava então de um carreiro. Serpejando pela falda do Outeiro do Carmo, na direção que ainda hoje tem a Rua dos Barbonos, seguia pela frente do Hospício dos Barbadinhos, e pouco adiante bifurcava-se.

Uma das voltas, cortando pelas abas do Monte do Desterro, era o caminho chamado de Mata-Cavalos, por onde se saia da cidade para o interior. Contornando a quinta das Mangueiras, situada em um espigão do morro, a outra volta subia para a Carioca, encontrando à esquerda com uma vereda que descia para a banda do Outeiro da Glória.

Estava o Ivo na encruzilhada, quando ouviu uns apitos como de sabiá que salta de ramo em ramo, e antes que pudesse imaginar donde saíam, apareceu-lhe em frente uma menina que vinha pelo caminho da Carioca asoquilipe, ora sobre um, ora sobre outro pé, com os cabelos ao vento, e a saia rocegada por causa do orvalho.

Tinha a travessa menina um rostinho de alfenim, com sobrancelhas de til, e lábios de pincel, como não era capaz de tirá-los sobre o marfim, em laivos de nácar, o mais delicado pintor. Embutia-se aquela figura angélica numa como redoma que lhe formavam as ondas bastas dos cabelos cendrados, a borbulharem em cachos dos bordos de uma pequena coifa de seda escarlate.

Esbarrando com o Ivo, soltou a menina um grito de susto, e fazendo sem querer uma pirueta que meteria inveja a um dançarino famoso, desandou a correr pelo caminho em que vinha.

— Que foi, Marta? perguntou uma voz de mulher.

— Senhora mãe, um caipora!

— Ave, Maria! Minha mãe de Deus!...

— Ai, que susto! murmurava a menina estremecendo ainda como uma rola.

— Como há de ser, Sr. Sebastião Freire? Eu aí não passo, nem que me arrastem. Então na encruzilhada!...

— Que partes são estas agora, Sra. Miquelina dos Anjos; não parece mulher de quem é, acudiu a voz de meio bordão do nosso Freire.

— Mas homem, se não está em mim.

— São visagens da pequena.

— Eu vi, senhor pai, acudiu Marta.

— Havia de ser algum macaco; ainda que já eles não andam por estas paragens tornou o tabelião.

— Reparaste no pé, menina? Tinha unha de... daquele bicho?

— Isso não tinha; mas olhava para a gente com uns modos.

— Fez-te uma careta, não foi? É macaco, não tem que ver.

— Sempre era bom esperar mais.

— Faz-se tarde, e já devíamos estar chegados. Ande daí, mulher!

Resolveu-se afinal a Sr.a Miquelina dos Anjos a passar; mas por cautela ia rezando à meia voz a magnificat, e ainda era preciso que o Sebastião lhe desse uma demão, empurrando-a às guinadas com o cotovelo.

A Marta, essa ia adiante, e embora se embiocasse toda, lidando por esconder-se dentro em si mesma a uns olhos que estava entrevendo por toda a parte e em cada folha, contudo não mostrava lá muito medo do caipora.

Ivo, surpreso da encantadora aparição, ia persegui-la com o pensamento já todo cheio de ninfas e dríades, quando a voz grossa do tabelião espancou-lhe as doces ilusões, e arrojou-o da mitologia à realidade.

Escondeu-se atrás do tronco de uma paineira, que ainda as havia nessa altura, e espiou a passagem do tabelião que voltava com a família de uma quinta da Carioca onde fora passar o domingo, e pousara para tornar com a fresca da manhã, pois estavam na força do verão.

Fez-se a passagem do ponto arriscado, que era justamente a encruzilhada, sem o menor contratempo: a viração serenara; nem um ramo farfalhou, nem uma folha estalou no mato. Já a Miquelina respirava, quando ouviu-se ali perto, dois passos atrás, um estrídulo, que aos ouvidos da mulher soou como uma gargalhada de bruxo.

— O caipora! bradou ela, e disparou pelo caminho fora.

O Sebastião Freire, sarapantado e um tanto bambo das pernas, com os olhos gázeos a saltarem desta àquela banda do caminho, lá se foi de recuo, aos trancos, receoso de que lhe surgisse do mato algum mau companheiro, caipora ou bicho, com que se visse abarbado.

A única pessoa da família em quem os guinchos não produziram grande susto foi em Marta. Apesar de seu modo bisonho e tímido, bispara ao passar o vulto do Ivo de espreita por trás da árvore; e atinou logo com a travessura, pela simples razão de que no lugar do rapaz, ela faria o mesmo.

Quando pois o Garatuja arremedou o conhecido regougo do macaco, conheceu logo a pequena donde vinha a artimanha, e em vez de susto, o que teve foi vontade de rir; mas tolheu-a o respeito aos pais, e também o acanhamento de mostrar-se ao rapaz em correspondência de travessura com ele.

Até as abas da cidade, cujo povoado começava na Rua da Ajuda, foram o tabelião e a sua metade em constante sobressalto por causa do maldito macaco, que os perseguia saltando de pau em pau.

— Arrenegado bugio, gritava o Sebastião; vou deste passo encomendar-te ao almotacé, para te filar e torcer-te o gasnete.

— E o senhor a teimar com o macaco! Quando lhe digo que é o caipora, legítimo de Braga! Se inda agorinha lhe bispei os chifres. Não vistes, Marta?

Ante a formal intimação. não havia titubear:

— Creio que vi!... Agora me lembro, vi mui bem!

— Não vistes nada!... berrou o tabelião perdendo a tramontana. É forte embirrância! Declaro eu, Sebastião Ferreira Freire, tabelião do público judicial e notas desta leal cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro por El-Rei, nosso senhor...

Aqui o nosso homem desbarretou-se com as maiores mostras de reverência.

— que Deus guarde...

Novo desbarretamento.

— ... por muitos e dilatados anos, como todos havemos mister a bem do reino e da religião católica apostólica romana, única verdadeira...

Tomou respiração e continuou:

— Declaro que é macaco, do que dou testemunho e porto por fé, e em prova da verdade firmo com meu público sinal...

Estacou de repente o Sebastião, e caindo em si, viu que não estava no cartório a ler o fecho de uma escritura, mas em caminho para a casa. Encapelou o feltro paulistano na cabeça, e deitou-se a pernadas pela Rua da Ajuda.

Ao entrar em casa, Marta disfarçadamente volveu o rosto e viu de esguelha, no canto, o Ivo, que a espreitava.