O Garatuja/XVII
Sentado à mesa de cedro, no meio da furna de prateleiras e autos, o Ivo jurou a si mesmo recuperar o tempo vadio, dando conta com a maior presteza da tarefa do edital.
Mas se o corpo ali estava em face da folha de almaço estendida sobre mesa, o espírito lá andava-lhe a correr pelo quintal, fazendo estrepolias por causa da franga, e escondendo-se em um seio palpitante, coberto por um justilho pérfido.
No meio destas cismas, deu o Sebastião Ferreira um tremendo espirro que arrancou o escrevente ao seu enlevo, e o pôs de pena armada, pronta a acometer a abstrusa gíria do edital. Por uma coincidência que mostra quanto é verdade haverem dias caiporas, ou nefastos, como lhe chamaram os romanos, sucedeu que no alto do manuscrito campeava uma letra maiúscula, de golpe bastardo, e essa letra era um M.
Possuído de um repentino fervor, começou Ivo a talhar no ar com o bico da pena os contornos da letra, que afinal se desenhou no papel com um traço finíssimo, como se faz no primeiro esboço da pintura. Satisfeito de sua obra, ficou a contemplá-la com certo enlevo.
Era aquela a inicial do nome querido; e pois não admira que aí se viessem agrupar as doces reminiscências e os fagueiros pensamentos que lhe ei chiam a alma, ainda mais naquela hora tão próxima do primeiro abraço.
Todas estas abundâncias do coração namorado se derramavam no papel, sobre aquele M adorado, mas pelos bicos da pena em cetrarias ou arabescos de toda a sorte e nos mais delicados lavores de paisagens. Aqui, em um dintorno da letra, eram pombinhos arrulando beijos; ali, pelos travados e ligamentos, anjinhos a brincar esvoaçando entre as flores, colibris beliscando as frutas, e por toda a parte emblemas de amor, como corações agrilhoados, molhos de setas, e cupidinhos vendados.
Tudo isto, ia o rapaz penejando sobre o papel com extrema rapidez, e no fogo da inspiração. Passada porém a primeira efusão, depois que verteu a flor de sua imaginação, no desejo de variar os ornatos e compor novas figuras para as cetras e tabões, entrou a banzar.
Nesse ponto, rondando o cartório com um olhar de esguelha, como era seu costume, o Sebastião Ferreira descobriu o Ivo na postura de um cismático, imóvel, com os cotovelos fincados na mesa, a cabeça presa entre as mãos espalmadas e os olhos pasmados para o teto.
— Hum! fez o tabelião sorvendo uma pitada.
Na sua mocidade gostava o Freire de caçar, e tinha seus galgos e perdigueiros. Dai veio achar ele certa analogia entre um escrevente de cartório e um cão de caça. Ensinara-lhe a experiência que o nariz do bom escrevente deve sempre cheirar o papel, como a venta dó bom podengo farisca o chão. Escrevente que anda com o nariz ao vento, perdeu o rumo, e não há que fiar nele.
Em vista desta regra cinegética aplicada ao tabelionato, o Sebastião Ferreira ergueu-se devagarinho e rodeando por detrás das estantes, na ponta dos pés, achegou-se ao Ivo pelas costas; mas recuou espavorido quando viu o grande M historiado que borrava toda a folha de papel destinada a um edital!
Horrível profanação! Escândalo inaudito, e que podia danar um cartório sempre conceituado entre os mais graves! Fazer de um papel forense uma borradela cheia. de poucas-vergonhas! Sem dúvida que era uma inconcebível enormidade, de memória de homem nunca vista.
Atarascado pela indignação, que o impava como a um velho odre, o tabelião bem quis pregar no atrevido a mais tremenda descalçadeira, que é possível imaginar; mas a raiva apertava-lhe o gasnete, e com violento esforço apenas esguichou uma palavra, que levou a rilhar entre os dentes, de tão cerrados que estavam os queixos.
— Birrrrr... bante!...
Essa cascata de erres despenhou-se como um cesto de cacaréus por escada abaixo, e estrondou na sílaba final.
Não teve o Ivo tempo de voltar a si do susto, pois travando-o pela gola do gibão, o Freire levou-o de arrastão até a porta da entrada, e empurrou-o na rua. Depois do que pela janela varejou o chapéu, o tinteiro de chifre, e tudo o mais quanto pertencia ao perverso rapaz.
Restava a folha de papel onde se estavam desvergonhadamente derrengando os horríveis penejados. Mas o Freire não se animou a tocar nessa obscenidade:
— Suma-me daqui esta pouca-vergonha! intimou ao mais velho dos escreventes. Reduza-a a pó que não fique sinal.
Limpo assim o cartório da praga que o infestara, voltou o tabelião ao seu tamborete, mas não à ocupação, que estava ainda muito cheio do desaforo para cuidar em outra cousa. Contudo não esbravejava; apenas resmungava entre si umas cousas que se não entendiam; e lá de vez em quando assentava uma reguada no próximo bacamarte, e acompanhava-a de uma exclamação neste gosto:
— Marau!...
Ou senão:
— Excomungado!...
Foi assim que em um momento viu-se o Ivo transportado dos jardins esplêndidos de seus castelos encantados para o olho da Rua do Aleixo, onde ainda se achava atordoado com o que lhe acontecera.
Mas não era ele rapaz que sucumbisse com um contratempo. Deitou-se a andar para a casa e em pouco voltou armado de um bodoque. Saltando a cerca do tabelião, na esperança de rever Marta e falar-lhe, o estouvado rapaz consolou-se de sua desventura, fuzilando o Cláudio e sua récua com bolotas de barro e coquinhos da praia, de que trazia os bolsos atopetados.
Os minoristas ainda lá estavam na pitômbeira, à espreita de Marta, para a atormentarem com as costumadas pilhérias e requebros. Assaltados de repente pela metralhada do bodoque, tentaram afrontá-la despejando sobre o Ivo um balde de ameaças e insultos; como, porém, a réplica lhes vinha em carolos que doíam, e já lhes começavam a pular os galos na cabeça e os vergões nas costas, tramaram afinal descer para escovar o pêlo ao atrevido, o que percebido pelo assaltante, inspirou-lhe o prudente arbítrio de se pôr fora do alcance da tal súcia de malandros!