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O Garatuja/XVIII

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Enquanto, como o rato no miolo do queijo, o Ivo cocava a menina de seus olhos dentro da própria casa, as impertinências e filostrias dos minorenses, se por um lado faziam-lhe certas cócegas, por outro não deixavam de trazer-lhe seu proveito.

Não era esse atrevimento dos rapazes que fazia a Senhora Miquelina mandar a Marta com recado ao pai a fim de vir pôr cobro a tais demasias, e que portanto lhe dava a ele, Ivo, o contentamento de ver a moça e gozar-se de seu meigo sorriso?

Uma vez porém despedido da casa, e por modo tão duro, imagine-se a gana que tinha o ex-escrevente aos minorenses, sobretudo com a lembrança da vaia que lhe tinham passado e à Marta. Além de que, era o Cláudio um rapaz bem apessoado; e portanto ao enjeitado deviam ferver os ciúmes, vendo-o a requestar a moça com tamanho afinco.

Ia escapando que na semana decorrida depois de sua despedida, tentou o Ivo meios de obter do tabelião que relevasse a primeira falta, e de novo o tomasse ao serviço do cartório. Valeu-se para isso do empenho da Senhora Romana, que já lhe tinha servido de madrinha da primeira vez, a quem para melhor dispor-lhe a vontade levou de mimo um São João Batista pintado por ele.

Desta vez, porém, o Sebastião Ferreira mostrou-se inexorável, e toda a costumada petulância da velha não pôde com ele. Basta que a lembrança do cano de bota recheado de moedas achou-o impenetrável. Nada, que tratava-se da honra do ofício público e decoro de seu cartório.

Reduzido pois, mas não resignado, à antiga e triste condição de pé de muro, vivia o ex-escrevente a rondar as cercanias da casa do Freire, obrigado a se esconder do tabelião, como dos minoristas que não lhe perdoariam as bodocadas.

De tudo, á que mais ralava ao nosso namorado era essa espionagem dos fâmulos do prelado, a qual não só lhe metia sua ponta de ciúme, como impedia-lhe de aproveitar as furtivas ocasiões de falar a Marta.

Um dia faltou-lhe a paciência; e assentou de acabar com aquela penitência, ainda que saísse uma estralada. Levou a cogitar a noite; e pela manhã cedo, foi à ribeira do Rossio do Carmo, e lá arranjou de um camarada pescador um anzol de garoupa com uma guita capaz de agüentar um tubarão.

Como era uso naquela época, a entrada da casa do Sebastião Ferreira tinha, além da grossa porta inteiriça, uma rótula com seus postigos. Mas esta em vez de se conservar fechada, como sucedia no geral das moradas, andava sempre escancarada por causa da passagem freqüente das partes e moços do cartório que iam e vinham na constante labutação forense.

Esquivou-se o Ivo pelo corredor e agachou-se atrás da porta, à espreita.

Não esperou muito tempo. Apenas soou meio-dia ouviu-se um vozeio na rua, entremeado de risadinhas abafadas. Eram os minorenses que vinham na forma do costume bulir com a Miquelina e a filha, e se apinhavam junto à rótula.

Desde certo tempo a mulher do tabelião, para defender-se da apoquentação dos formigões, fechava uma das janelas, e abrigava-se com Marta nesse canto da sala, onde não a podiam bispar os peraltas por mais que enfiassem os olhos entre as gretas.

Mas os diabretes desconcertaram-lhe o plano. Em achando fechada a janela metiam-se no corredor, a espiar pelo buraco da fechadura. Era aí que os esperava o Ivo, a quem desde o princípio não escapara a manobra.

Nesse dia, pois, quando o Cláudio e mais três companheiros estavam mais entretidos em espiar, revezando cada um sua vez de pôr o olho à fechadura, o enjeitado reunindo sutilmente as fraldas das sotainas, prendeu-as com o anzol, cujo cordel tivera antes o cuidado de atar com segurança ao trinco da porta.

Executada a empresa, escapuliu-se o Ivo sem que o pressentissem, e chegando à rótula do cartório, fronteira do tabelião, colou a boca na fresta para gritar com disfarce na voz:

— Uhl uhl velho urubu!

Ergueu-se furioso o tabelião, que brandiu o espadim e precipitou-se para a porta, mas depois de revestir-se de solenidade precisa, encasquetando o grande tricórnio. Seguiram-no os escreventes, armados, como de costume, de vassouras, réguas e tamboretes.

Ao ranger da chave na fechadura, os minorenses advertidos escamaram-se para não serem apanhados em flagrante. No meio da rua, porém, esticada a guita do anzol, esbarrou-os de repente na carreira, dando com eles de trambolhão em terra.

Nesse momento chegava à porta o tabelião que vendo prostado o inimigo, o apostrofou com extrema veemência:

— Corja de biltres!... Malandros!... Sevandijas!... O que vocês mereciam era que eu lhes tonsurasse as orelhas, para dar-lhes juízo, brejeiros!

Entretanto arremetiam os escreventes, de réguas e vassouras em punho, bem dispostos a sacudir a poeira do costado dos rapazes, e aplicar-lhes uma sova mestra. Sentindo fervilhar-lhes o lombo, além de lhes arder as orelhas, afinal levantaram-se os minorenses disparando novamente a correr; mas outra vez a cambulhada dos rapazes, empencados ao anzol, estrebuchou no chão.

Nesse momento, além, na rua, soou uma surriada formidável:

— Formigão!... Uh!... Formigão!...

— Fiau!... Fiau!.

— Basculho de igreja!...

— Morrão de tocheiro!...

— Minhoca de sacristia!

— Rabadilha de frade!...

E todo este berredo cortado de assobios estridentes, e acompanhado pela matinada infernal de umas matracas improvisadas com taquara rachada, e pelo ronco de um imenso caramujo.

Era autor dessa grazinada de ensurdecer, um bando de estudantes leigos, a quem o Ivo tivera o cuidado de avisar, prometendo-lhes um fartão de riso, sem contudo explicar-lhes a peça que ia pregar. Sempre houve, e ainda subsiste uma birra dos estudantes leigos com os seminaristas ou meninos do coro, a quem apelidam de formigão por achar-lhes certa semelhança com a saúva, uma das espécies desse térmita. Com que prazer pois não aceitaram os rapazes o convite do Ivo, e não se esconderam na vizinhança por detrás de uma cerca, à espera do momento?

Surpreendidos com o aparecimento dos estudantes, e vendo-se na presença de testemunhas, os escreventes que sabiam o valor da prova, desistiram da sova que se dispunham a dar. Além de que, percebendo-se afinal a causa dos repetidos trambolhões dos minorenses, dispararam todos em uma estrepitosa gargalhada.

Fustigados por esse riso implacável, Cláudio e os companheiros arrancaram tão furioso sacalão, que afinal escaparam-se deixando no anzol um farrapo da sotaina.