O Garatuja/XXVII

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A casa de residência do governador, ou seu quartel, como diziam então pelo respeito ao elevado posto de capitão-general, ainda estava por aquela época na Rua da Cruz, que depois veio a ser Rua Direita, e ultimamente com o sestro em que deu a nossa vereança passou a Rua de 1º de Março.

Essa mania de mudar os nomes às ruas e pô-los à moda, é nada menos que uma barbaria e degradação igual à que se perpetrava com os antigos monumentos e quadros empastando-os de arrebiques à moderna. Em um caso, profanação da arte; em outro, profanação da história: dois relicários do coração humano.

Nas mudanças sucessivas por que passa o nome de uma parte da grande cidade, escreve o povo fluminense um capítulo da sua história íntima. Assim, folheai essa página de pedra e cal, que se chamava até o ano atrasado Largo do Paço.

Sua primeira designação, nos tempos primitivos, foi campo do Ferreiro da Polé. Subiu depois a Rossio quando as casas o cercaram. Carmo, atesta a edificação do convento dessa Ordem; Terreiro do Governador, a residência da primeira autoridade da capitania; Praça do Palácio, a elevação de cidade a capital de vice-reinado; e finalmente Paço, a corte real que pouco tardou em trocar-se por imperial.

Entretanto que significa Pedro II escrito naquelas esquinas? Simples lisonja de cortesão. O augusto filho do fundador do império não tem particularidade alguma com essa praça, onde estão os paços que, se hoje o hospedam, foram de seu pai e de seu avô; e triste daquele a quem cinge uma coroa, se carecesse de uma esquina de rua para ir à posteridade!

O que dizemos do primeiro cidadão, aplica-se aos patriarcas e aos outros medalhões da política. Erijam-lhes estátuas de ouro, se quiserem; levantem-lhes monumentos de bronze; dediquem-lhes templos e altares; mas não se meta a câmara a tralhona, usurpando essa prerrogativa do povo soberano de criar os nomes e formar as tradições de sua cidade natal.

Se não mente a crônica, era no lugar onde está hoje a Caixa da Amortização e Correio, que se levantava a residência do governador, a qual foi destruída na invasão dos franceses em 1710.

Para aí se dirigiram desde as 7 horas o juiz e oficiais da Câmara, bem como as pessoas gradas e sabedoras pelo senado convocadas; iam todos solícitos de acudir com pronto remédio ao sucesso extraordinário que desde a véspera trazia em alvoroto a cidade.

Esperava-os o Governador Tomé Correia de Alvarenga, não menos sôfrego de pôr termo à agitação do povo. Durante a noite, ciente do que ia pela cidade, mandou ficar sua guarda assim como a gente do terço a postos e de prontidão para o que pudesse acontecer; mas fez-se desentendido, e absteve-se da menor intervenção.

Empenhado em arranjar uma representação da Câmara e povos de São Sebastião pedindo a El-Rei para provê-lo, a ele Tomé Correia, no efetivo governo das capitanias no sul, que estava servindo interinamente, tratava de agradar a todos e pois não lhe convinha tirar razões e ir às mãos com o motim que era lá com a clerezia.

Ao entrar a sessão, ouviu-se na rua grande alarido. Era a troça dos estudantes que voltava, trazendo no centro o tabelião e à frente o moleque lambreado de vermelho, e montado em um cabrito. Atrás vinha uma súcia de meninos que seguravam a cauda do diabrete, como se fosse a amarra de uma âncora.

— Senhor juiz e oficiais em Câmara, gritou o Ivo, aqui trazemos a Vossas Mercês este exímio teólogo para consultar sobre o caso intrincado. É grande sabedor de excomunhões, bruxarias e demonices.

Gargalhada estrondosa, seguida de formidável apupada.

— Salta, capeta!

— Silêncio, que o cabrito vai espirrar!

— Não é espirro. É um latinaço que lhe esguichou pelas ventas.

— Então o cabrum é doutor?

— De borla e capelo.

— Quiá!... Quiá!... Quiá!...

De véspera esperava-se que a sessão convocada pela câmara fosse das mais importantes de que havia notícia, já pela gravidade das circunstâncias e já pelos grandes luzeiros da ciência que tinham de dar seu voto.

Nessa conformidade se tinham preparado os teólogos e juristas, recheando-se de latim, abarrotando-se de citações abstrusas, para desbancar os argumentos ex-adverso. Dir-se-iam os improvisadores do atual parlamento em véspera de um debate solene.

Bom é saber-se que dos teólogos, só os jesuítas propendiam para o ouvidor, por espírito de oposição à mitra; e dos juristas apenas o licenciado Figueiredo, por ser patrono do tabelião, encostava-se ao parecer daqueles.

Os mais, ou pelo anexim popular de que "lobo não come lobo", ou pelo receio de jogar as cristas com a Igreja, eram todos pelo prelado, e se dispunham a sustentar em Câmara, com uma torrente de doutores, que a excomunhão fora decretada conforme o direito e leis da Igreja e do Reino, não podendo suspender-se pela interposição do recurso, que só tinha o efeito devolutivo.

Durante a noite, porém, operou-se grande mudança no espírito dos sábios teólogos e juristas; parece que o livro do povo ali, à rua, aberto em todas as páginas, ensinou-lhes mais em uma hora, do que haviam aprendido toda a vida em comentários e tratados de praxistas.

Assim, logo cedo compareceram, não mais para arrazoados jurídicos, senão para tomar uma deliberação, com que o povo se acomodasse. Do prurido de disputações, se algum ainda tinha resquícios, a vaia dos estudantes acabara de aplacá-lo de todo.

Decidiram em Câmara por unanimidade que a apelação interposta suspendia a excomunhão como entre outros doutores sustentavam Farinácio Scácia e o Senador Temudo; e pois continuava o ouvidor no exercício de sua jurisdição, devendo aguardar-se a decisão superior e representar se a El-Rei sobre a necessidade de uma providência que de futuro evitasse tão graves conflitos entre a autoridade eclesiástica e secular.

Neste sentido, diz o Dr. Baltasar da Silva Lisboa escreveu se ao prelado intimando que suspendesse a censura até determinação de Sua Majestade.

Assim terminou aquela refrega do povo fluminense cujo último ato foi conduzir em triunfo à sua casa o cabeça do motim.

O velho e pacato Sebastião Ferreira Freire ia um tanto amarrotado das bolandas em que andara; porém satisfeito a mais não poder com a desforra que tomara do prelado e sua gente.