O Garatuja/XXVIII
Três dias depois dos acontecimentos referidos, terminado o jantar, espaciava o tabelião pela cerca, saboreando ainda a ovação que havia recebido, e pavoneando-se em sua importância.
Ao passar junto de um arvoredo embastido, pareceu-lhe ouvir um sussurro de vozes e espreitando por entre a folhagem, descobriu sua filha Marta em requebros e galanteios com o Ivo.
O rapaz instava por aquela beijoca, há tanto tempo pedida e desde então negaceada pela sonsa da menina, que bem desejos tinha de a receber, mas faltava-lhe o ânimo de consentir. Coisas de namorados.
Cansado já de instâncias, queixumes e arrufos, que tudo havia debalde empregado, usou Ivo de esperteza. Disfarçando para apanhar Marta desprevenida, enlaçou-a de repente pela cintura, e prendendo-lhe os braços, conchegou-lhe o talhe ao peito, para colher os lábios vermelhos, que em vão tentavam fugir.
Já o beijo abria as asas arrulando sobre a mimosa boquinha, quando se interpôs como uma cabeça de medusa. o ruivo chinó do tabelião.
— Alto lá!... gritou o Sebastião Ferreira.
Confusos e trêmulos, os dois namorados encolhiam-se como se esperassem esconder-se dentro em si ao sobrolho crespo do pai irritado. Contemplou-os o Sebastião alguns instantes a gozar do seu enleio, e travando a cada um do braço, levou-os de roldão ao cartório.
Ainda lá estava o escrevente juramentado, aproveitando a última réstia de dia. o garatuja 75
— Lavre-me uma escritura de esponsais, visto ser eu suspeito, e competir-lhe a substituição. Sem detença.
— Pronto! respondeu o escrevente com o livro aberto.
— Entre partes, 1º outorgante Maria Sebastiana Ferreira Freire, por um lado, e pelo outro Ivo... — Ivo... Ivo de quê? perguntou ao enjeitado atônito.
— Ivo das Ervas...
— Escreveu?
— Das Ervas, disse o escrevente repetindo a deixa.
O tabelião deu tempo a fazer o cabeçalho da escritura. Marta morria-se de susto e vergonha, não atinando com o que vinha a ser aquela cerimônia. Tão peco não era o rapaz, que estremecia, mas de comoção e júbilo.
— E pela 1ª outorgante foi dito que de sua mui livre e espontânea vontade, sem a menor coação, e com o consentimento de seu pai e mãe, promete casar-se com o 2º outorgante na forma do Sagrado Concilio Tridentino, levando-lhe em dote o direito de sucessão deste oficio de tabelião e a quinta parte do que render o contado, em vida do atual serventuário, pai dela outorgante. Mas declara que é isto sob a condição de nunca mais trabalhar o dito 2º outorgante como artífice de pincel, ou cousa que se pareça, deixando para todo o sempre o baixo mister da pintura, e ocupando-se tão-somente do serviço do cartório, o que há de firmar sob juramento, e não o cumprindo, ficarão de nenhum efeito estes esponsais.
— Mas... ia recalcitrando o Ivo.
— Se quiser é assim. Pintor é casta que me não entra cá na família. Marta há de casar-se com um escrevente, para que eu tenha sucessor.
O Ivo coçou a orelha.
— Mas podia vossa mercê esperar pelo neto, que lhe havemos de dar.
— Arranje-se você lá com ele; eu cá preciso segurar-me, que já estou maduro.
Tinha o Ivo amor a seus pincéis e sonhava com a glória; mas os olhos pretos de Marta volviam para ele com um tão mavioso requebro.
— Decida! tornou o tabelião.
— Aceito.
— E pelo 2º outorgante foi dito que de sua parte aceitava e prometia sob juramento, et cetera, et cetera.— Menina, chama tua mãe para assinar.
Enquanto o escrevente punha o fecho da escritura, o Sebastião Ferreira fez o Ivo jurar sobre um missal a condição a que ficava sujeito para obter a mão de Marta.
Concluída a cerimônia, voltou-se o tabelião para os dois noivos:
— Agora podem-se beijar, na conformidade da lei.
Mas esse beijo ob veniam paternam e como sanção do contrato esponsalício, era desenxabido e não tinha o sainete daquele que o velho tio desastradamente perturbara. O Ivo pousou ao de leve os lábios na fronte rubescente de Marta, prometendo-se mais tarde, naquela mesma noite talvez, roubar à boca faceira de sua amada, outro beijo mais saboroso.
O casamento dos noivos efetuou-se um ano depois. Já compenetrado da realidade da vida, o Ivo esquecera os seus pincéis, para tornar-se um escrevente de cartório, ao gosto do futuro sogro, a quem devia suceder. Viveu feliz; e se alguma vez lhe perpassavam pela mente os sonhos de glória, que haviam embalado sua juventude, era nuvem passageira.
A leal cidade de São Sebastião perdera um artista, o primeiro talvez que nasceu em seu seio; mas nem se apercebeu disso, como não se apercebe ainda hoje dos talentos que a sua indiferença vai mirrando, e caem por aí esmagados sob a pata do charlatanismo insolente.