O Garimpeiro/IV
Tinham-se passado de seis meses, depois que Elias se retirara da fazenda do Major.
As vastas e profundas selvas, no seio das quais corre ruidoso e turbulento o ribeirão da Bagagem, tinham tombado aos golpes do machado, deixando descortinada uma larga zona em uma e outra margem. No meio dos destroços da floresta viam-se dispersas em desordem as frágeis e provisórias habitações dos garimpeiros, cobertas das compridas palmas do coqueiro baguaçu. Por aquele terreno branco e selvático, onde só se esperaria encontrar o tosco sertanejo, ou o africano semi— nu, girava uma população polida e bem trajada, composta de pessoas de todas as procedências, que de remotas paragens acudiam a explorar o novo descoberto, cuja fama se espalhava muito ao longe, e ali reinava movimentação e animação como em uma grande praça comercial.
Enquanto a alavanca e o almocafre retiniam pelas grupiaras extraindo o cascalho precioso, os golpes do machado reboavam pelas florestas e de espaço a espaço um baque, estrugindo ao longo das costas, anunciava a queda de mais um tronco robusto e secular. O ronco das catadupas servia como de acompanhamento às cantigas e algazarras dos garimpeiros, que ao longo da beira do rio lavavam alegremente o esperançoso cascalho.
Era uma tarde de novembro, pura, calma e cheia de esplendores. Já todos abandonavam o trabalho, patrões e trabalhadores, e se recolhiam a seus ranchos. Começava a acalmar-se o rumor e agitação do dia, e ouvia-se já a voz do sertanejo, que assentado à porta do rancho entoava ao som da viola seus toscos cantares, cujas notas prolongadas e melancólicas iam escoando ao longe pelas ribanceiras.
Um moço de alta estatura, de olhos e barbas negras, com os braços cruzados, e o chapéu de lebre enterrado nos olhos, estava em pé junto à margem do rio, encostado a um rochedo, inspecionando com ar sombrio e preocupado o serviço de três ou quatro trabalhadores, que lavavam as últimas bateadas.
— Então, Simão? Nada ainda? — disse ele a um velho camarada, que acabava de deitar fora o cascalho de uma bateada.
— Nada por ora, meu patrão— respondeu o camarada— isto aqui não pinta; amanhã havemos de abrir outra grupiara ali mais embaixo...
— Entretanto, tu bem vês: há aqui as melhores formações: ferragem, olho— de— pomba, palha— de— arroz, cativo, nada falta; e entretanto há mais de dois meses que aqui estamos trabalhando e nos devemos dar por felizes se o serviço tem dado para salvar a metade das despesas. O diabo que as leve as tais formações ou informações; não as entendo; isto é uma burla. Acho que se fossemos plantar batatas faríamos melhor negócio. Anda, Simão; quebra essas bateias, atira ao rio esses almocafres, e vamo— nos embora para nosso país. É escusado andar procurando no seio da terra o que lá não guardamos.
—tenha paciência, meu patrão— respondeu o camarada. — Dê— nos ainda um pequeno serviço amanhã... ali, ali mais embaixo, patrão, e eu que não me chame Simão, se a coisa ali não pintar. Tenha fé e reza a Nossa Senhora, e verá se amanhã ou depois o diamante graúdo não vem aluminar no fundo da bateia.
— Histórias! Meu Simão; todos os dias me dizes isso e o resultado é sempre o que estamos vendo.
—mais dois dias só, patrão; e eu que seja enforcado, se não acharmos coisa que sirva.
— Não creias nisso, Simão; a sorte me persegue; tenho de ser pobre e desgraçado toda a minha vida-murmurou o moço no tom do mais profundo desalento.
— Não desanime assim, patrão; não se lembra mais da cigana, que leu a sua sina, e disse que a sua estrela é de pedra...
— Sim, e é de pedra mesmo, ou mais dura do que pedra. O diabo leve quanta cigana há neste mundo, e todas as suas predições.
Nisto os trabalhadores puseram tristemente os seus almocafres ao ombro, pegaram em suas bateias, e se retiraram. Elias e Simão ficaram ainda.
Simão era um velho e magro, mas robusto e bem constituído, de cor bronzeada, e que parecia ser de raça mista de índio e africano. Desde menino fora camarada do pai de Elias, ao qual sempre servira com a maior dedicação e lealdade. O pai de Elias também o estimava e queria como a um verdadeiro amigo, e tendo falecido há quatro ou cinco anos sem poder deixar àquele seu único filho outra herança mais do que uma excelente educação, que infelizmente não pôde concluir, em seus últimos momentos rogou ao velho caboclo, que acompanhasse sempre, que nunca abandonasse a seu filho, que ficava com 17 a 18 anos de idade.
Não era preciso que o velho o rogasse; Simão nunca abandonaria o jovem patrão, a quem na infância carregara nos braços e a quem votava afeição de pai.
Simão era garimpeiro mestre, muito conhecedor de terrenos diamantinos, de que tinha adquirido grande prática na Diamantina, de onde seu defunto patrão e ele mesmo eram naturais, e onde tinham residido nos primeiros tempos de sua vida.
Simão era verdadeiramente um habilíssimo garimpeiro, e parecia que farejava o diamante; mas, infelizmente para o seu jovem amo, para quem somente trabalhava, e para quem desejaria descobrir um tesouro, a sua grande habilidade tinha ficado sempre em falta, o que sumamente o afligia; mas nem assim desesperava.
— É aqui mesmo na Bagagem, meu amo, dizia-lhe ele às vezes, é neste chão mesmo que está enterrada a sua estrela de pedra.
Quando Elias foi para o Patrocínio correr cavalhadas, Simão que vinha com ele, quis ficar na Bagagem.
— Já que estou aqui, patrão, vou ver se acho a sua estrela de pedra. Também o patrão não vai para longe; se precisar de mim, é um pulo. Compre um pedacinho de grupiara, e deixe-me trabalhar,
— Ah! Meu velho Simão— exclamou o moço, logo que os outros se retiraram— estou perdido! estou desesperado! não sei o que faça.
— Garimpar, patrão, garimpar! não desanime tão depressa; joguemos a última cartada.
—mas, Simão, se isto continuar assim, e continua, estou certo, em breve não terei mais com que pagar as poucas praças que tenho no serviço.
— Não importa, patrão; pode mandá-los embora; eu sozinho trabalharei. Quando se tem de ser feliz, tanto vale ter uma como dez ou cem praças; e não sei porque é, tenho mais fé quando trabalho sozinho.
—trabalha para ti, meu pobre Simão; estás velho, precisas guardar alguma coisa para quando não puderes mais trabalhar. Eu mesmo, infeliz de mim! não sei se te poderei valer em tempo algum. Deixa-me entregue à minha má ventura; é loucura lutar contra o destino... ah! Lúcia... Lúcia... nunca mais te verei!
E o moço pendeu a cabeça e tapou os olhos com as mãos, mergulhado em profunda tristeza.
— Pobre de meu patrão! ... o que é isso! ... tenha ânimo! quem porfia mata caça... o patrão há de ser rico, e há de casar com essa Lúcia, em que está sempre a falar. Há uma voz que sempre me diz cá dentro que o patrão há de ser rico, e há mesmo. Já fiz uma promessa a Nossa Senhora do Patrocínio, e ela nos há de valer.
— Assim te ouça ela, Simão. E eu não queria lá grandes riquezas. bastava achar neste chão uma soma qualquer para me servir de princípio; cinco contos, quatro, dois mesmo já me chegavam para servir de base a excelentes especulações. Com atividade e o pouco de inteligência que Deus me deu, eu os faria multiplicarem-se em minhas mãos em pouco tempo. A não me cair do céu, só do seio da terra eu poderia arrancar esse começo; os homens não mo dariam, e nem jamais lho iria pedir. mas este chão ingrato é como o céu, surdo a meus rogos.
— E eu, patrão, tenho fé que deste chão mesmo é que havemos de arrancar, com o favor de Deus e Maria Santíssima, não digo um princípio de riqueza, mas uma riqueza inteira.
— E entretanto há seis meses que trabalho sem descanso, e em vez de princípio, aqui vim encontrar o meu fim, a morte de todas as minhas esperanças; aqui acabei, completei a minha miséria e minha desgraça.
—meu amo hoje está muito abatido! ... vá passear, vá girar o comércio. vamos ter uma bonita noite. Vá divertir-se.
— Não, Simão; estou muito aborrecido, não tenho desejos de ver a cara de ninguém. Se queres, podes retirar-te.
— E o patrão o que fica fazendo aqui sozinho?
— Fico a tomar fresco por um instante, estou com a cabeça a arder-me.
Já era quase noite. Elias assentou-se numa pedra, e com a cabeça entre as mãos e os cotovelos sobre os joelhos, apenas se achou só, começou a desafogar suas mágoas, falando consigo mesmo e quase chorando de desespero.
— Já lá vão seis meses, e até hoje nada! nada absolutamente. Eu teria feito melhor, sem dúvida, se tivesse aventurado o pouco que possuía em uma mesa de lansquenê. Ao menos teria ganhado ou perdido depressa e sem trabalho esse pouco que tinha, e eu seria o único trabalhador... E que me importariam diamantes e todas as riquezas do mundo, se não fosses tu, Lúcia, que me acendeste no peito uma sede de riquezas, que eu nunca sentiria se não te conhecesse! Mas tu não tens a culpa, tu, a mais bela, a mais ingênua e a mais nobre das criaturas. A culpa é de teu avaro e ignóbil pai, que põe a preço de ouro a posse de tua mão. E assim se profana vilmente, assim se vilipendia a sorte de um anjo sobre a terra. Estás calculada em ouro, e eu, desgraçado de mim! por mais que rogue ao céu, por mais que cave a terra, não posso achar esse ouro! Eu em vez de acha-lo, tenho cavado mais fundo ainda o abismo de minha miséria. Não importa! prosseguirei ainda. Já agora consome-se até às últimas a minha má sina. Já bem pouco me resta. venderei meu cavalo, meus arreios, minha faca de prata, e darei tudo ainda a devorar a este maldito garimpo, que até aqui tão desapiedadamente me tem tratado. E quando evaporar-se a última esperança... as cachoeiras deste ribeirão são fundas e escabrosas, e minhas pistolas não negam fogo...
Elias ia talvez continuar aquele triste monólogo, inspirado pelo desespero, quando um som de passadas que se avizinhavam o fizeram levantar subitamente o rosto. Era um homem algum tanto idoso e bem trajado e de agradável presença, que a passos vagarosos se encaminhava para ele.
— Perdão— disse o desconhecido cumprimentando— º— Perdão, se o vim indiscretamente perturbar em suas tristes reflexões, e se, sem o querer, entrei no segredo de sua desgraça...
— Ah! o senhor ouvia-me? ...
— Sim, senhor; mas sem o querer; espero que me desculpará...
—sem dúvida; nem posso levar a mal o acaso que aqui o trouxe a ponto de ouvir as minhas loucuras. Demais a minha infelicidade, ainda que eu o queira, daqui em diante não poderá ser um segredo.
—todavia não deixei de ser por demais curioso, eu o confesso. Eu estava ali entre aquelas burras apanhando algumas formações do cascalho e examinando— as, e ouvi tudo. Devia-me retirar, é verdade, mas o que ia ouvindo começou a interessar-me por tal sorte, que como a pesar meu fiquei pregado a escuta-lo. Mas pode ficar certo que o interesse que me inspirou, e não uma vã curiosidade, aqui me traz para junto do senhor, e que suas palavras caíram em ouvidos de quem sabe respeitar segredos e as mágoas alheias.
— Não tenho disso a menor dúvida, e muito folgo de ter esta ocasião de travar conhecimento com um homem que, segundo todas as aparências, é digno de toda a estima e respeito. Só lhe peço que não dê importância alguma às loucuras que eu estava dizendo: estava desabafando minhas mágoas com estes rochedos; são delírios da imaginação de um homem a quem a fortuna persegue.
— Perdão: eu sou mais velho, tenho também sofrido muito, e portanto me desculpará se lhe falo com uma franqueza algum tanto rude. É uma vergonha para um moço, como o senhor, ainda na flor dos anos, e que, ao que parece, tem bastante inteligência e atividade, deixar-se assim abater covardemente ao primeiro golpe da adversidade...
—mas ah! Se o senhor soubesse as circunstâncias fatais em que me acho! Não é a falta de fortuna que eu lamento...
— Já sei; desculpe-me interrompe-lo; eu ouvi tudo, e nem assim acho justificação ao seu desalento. O senhor ama uma rapariga, não é assim? e é por amor dela que deseja adquirir alguma fortuna. É mais um motivo para querer viver e prosseguir em novos e perseverantes esforços para adquirir uma posição brilhante em que possa fazer a felicidade sua e dela. Deve ser bem fraco esse amor que sucumbe logo diante da primeira dificuldade, que não sabe lutar contra a adversidade e ao primeiro contratempo, julgando tudo perdido, só acha refúgio no suicídio, sem se lembrar que com esse procedimento pusilânime vai encher de luto e desesperação o coração de sua amante. Se todos assim procedessem, recuando, logo desde as primeiras tentativas, quase ninguém no mundo lograria seus intentos, quase ninguém alcançaria as riquezas, as honras e a felicidade.
—mas que posso eu fazer? ... atirei-me num abismo sem saída, e no qual devo ficar para sempre sepultado.
— Pois a sua inteligência, servida por dois braços juvenis e vigorosos, não lhe poderá abrir um caminho para sair desse abismo, que eu creio que só existe na sua imaginação? Admira que um homem, na sua idade e com tão boas disposições, tenha tão pouca fé no seu futuro, e tão pouca confiança nos homens!
Elias nada tinha que replicar às justas e severas reflexões daquele desconhecido, cujo exterior e cujas palavras sisudas logo à primeira vista inspiravam a um tempo respeito e simpatia, e esperava com ansiosa curiosidade o resultado daquela singular entrevista, que o acaso lhe preparava em tal ocasião com um homem que nunca tinha visto.
— Saiba, porém— continuou o desconhecido— que não vim aqui só no intuito de anima-lo e dar-lhe conselhos. Quero abrir-lhe, se puder ser, o caminho para desvia-lo desse abismo em que ainda não caiu, como supõe, mas em que o desespero o ia precipitar. venho fazer-lhe uma proposta; estará disposto a aceita-la?
— Fale, senhor; qual é ela? estou bem certo que não me proporá nada que não seja para meu benefício.
— E é sem dúvida alguma. Em primeiro lugar entendo que este descoberto da Bagagem não pode oferecer vantagem nenhuma a quem com pequenos capitais quer tentar um começo de fortuna. É um garimpo falaz e traiçoeiro. Sou da Bahia, e garimpeiro também; vim aqui examinar este novo descoberto, de que se me contavam maravilhas; vejo o contrário, e posso falar com pleno conhecimento de causa. Há, aqui, na verdade, e têm-se extraído grandes e magníficos diamantes, como não há em outros garimpos. Mas esses não chegam a todos e o seu aparecimento mesmo é um engodo perigoso, que só serve para arruinar milhares de garimpeiros, e somente felicita a um ou outro filho predileto da fortuna. Pode-se dizer que esta terra, e o senhor é um exemplo, vinga-se cruelmente daqueles que lhe rasgam o seio. Não acontece o mesmo no Sincorá; ali o diamante é negócio que pode chegar a todos, e qualquer moço ativo e inteligente acha ali meios seguros de fazer em pouco tempo alguma fortuna.
—tudo isso pode ser, observou Elias; mas para subir a grandes alturas, é preciso pôr o pé nos primeiros degraus e esses me faltam.
— Isto lá é verdade; mas tenha paciência; escute-me ainda um instante. Tenho lá no Sincorá muitas lavras que comprei por baixo preço, mas que informam muito bem; estão em abandono por me faltar uma pessoa de confiança que possa pôr à testa do serviço, e meus negócios não me deixam tempo para ficar ali preso à cola dos bateeiros, como é indispensável. O senhor inspirou-me confiança e simpatia desde a primeira vez que o vi; pois saiba que não é esta a primeira, e tenho ouvido fazerem-lhe por toda parte ausências as mais honrosas. A sua infelicidade, de cujo segredo por um singular acaso agora estou de posse, acabou de inspirar-me um decidido interesse pela sua sorte. Se quiser, pois, ir administrar o serviço dessas lavras, lhe darei sociedade com lucro razoável no produto delas, e fora disso também sempre me achará pronto a valer-lhe com o meu pequeno préstimo. Creia que não tenho interesse nenhum em engana-lo; posso ser-lhe útil e desejo sinceramente dar-lhe a mão. Por estes dias tenho de voltar para o Sincorá. Agora resolva-se. Aceita os meus oferecimentos? quer ir comigo? ...
O partido é excelente, pensou consigo Elias. Mas para o Sincorá! ... para tão longe de minha Lúcia! ... não sei se terei ânimo.
— A sua proposta é a mais vantajosa possível— respondeu Elias depois de um breve silêncio— e não tenho palavras para exprimir a minha gratidão por esse seu generoso procedimento para com um estranho, que mal conhece, fundado apenas em uma vaga simpatia e em uma reputação, que bem podia não ser merecida. Todavia o acaso merece que se reflita um pouco, e não posso já e de pronto resolver-me. Amanhã, se lhe aprouver, lhe darei a resposta. Onde e a que horas o poderei encontrar?
— Amanhã ao meio— dia, naquele rancho de telha, que lá se avista do outro lado do rio entre dois baguaçus... está vendo? ...
— Estou... já sei; amanhã ao meio— dia lá estarei.
— Pois bem! ... vá dormir sobre o caso; boa— noite.
— Boa— noite.
Já ia escurecendo. Elias encaminhou-se vagarosamente para o seu rancho, onde foi, não dormir, mas velar sobre o caso.
Elias não teve muito que pensar pata tomar resolução definitiva. O inesperado d proposta e a idéia da distância que o ia separar de sua querida Lúcia o espantaram a princípio. Mas entre a possibilidade de uma fortuna e a situação desesperada em que se via na Bagagem, não havia que hesitar. Quanto à distância, por ventura ali mesmo a algumas léguas apenas da fazenda do Major, não estava ele tão separado dela, como se estivesse no fim do mundo? e porventura não o separava dela também um abismo pior que todas as distâncias, a pobreza? e não era esse abismo, que ia procurar encher e superar, indo para bem longe? amá-lo— ia mais, ser-lhe— ia ela mais fiel, estando ele perto?
Tendo-se, pois, resolvido definitivamente, comunicou sua intenção e contou a ventura da tarde a seu velho camarada, que assentado ao pé do fogo aceso no meio do rancho, fumava tranqüilamente o seu cachimbo.
— Então Vmcê vai-me deixar, patrão? — disse o velho, fitando em Elias olhos lastimosos.
— Como assim? pois tu não me acompanhas?
— Eu! ... para tão longe? ... ah! meu patrão! pudesse eu... mas já estou velho e mofino; essas viagens já não são para mim... que necessidade tenho eu de ir largar os ossos lá tão longe?
—mas nesse caso, meu bom Simão, também não vou.
— E por que não, meu patrão?
— Como hei de deixar-te aqui sozinho e desamparado!
— Não lhe dê isso cuidado. Ainda sei trabalhar. Deus é de misericórdia, e nunca há de faltar a este pobre velho um prato de feijão e um ranchinho em que durma. Já que é para seu bem, vá, meu patrão; Vmcê não deve perder um lance de fortuna, que vem mesmo agora a talho de foice, por amor de um velho camarada, que já não é tão criança que não possa sair sozinho pelo mundo, e eu, a dizer a verdade, mais lhe iria servir de peso que de outra coisa.
— Contudo, Simão, não tenho ânimo de deixar-te assim. Se adoeceres...
— Não banze com isso. tenho por aqui muito conhecimento, e muito patrão bom, que há de ter dó de mim. Vá, patrão, e N. S. do Patrocínio permita que seja para bem. No entanto, cá para mim, a minha fé é mesmo com este garimpo daqui. É deste chão que nós havemos de um dia arrancar a sua estrela de pedra.
— Não creias tal, Simão, deste chão só podem brotar espinhos para mim e urtigas, lágrimas e misérias.
— Está bem! ... um dia Vmcê se há de desenganar; bote sentido no que estou dizendo. Vá para o seu Sincorá, e N. S. da Guia que lhe acompanhe. Vá procurar sua estrela de pedra lá por esse mundo de meu Deus, e deixe-me cá ficar procurando ela por aqui mesmo. Havemos de ver quem acha primeiro.
Elias nenhuma importância ligava àqueles pressentimentos do pobre Simão. Era simplicidade ou caduquice de seu velho camarada. Depois de conversarem mais algum tempo sobre sua próxima separação, ambos adormeceram: o camarada sobre um couro ao pé do fogo, e o patrão sobre sua pobre cama estendida sobre um girau a um canto do rancho.
Daí a alguns dias Elias abraçou chorando seu velho camarada, era o único amigo que deixava na Bagagem! deu-lhe todo o dinheiro que inda lhe restava, e, tirando uma carta da algibeira, entregou-lhe dizendo:
— Esta carta é para Lúcia, Simão; tu mesmo a irás levar em sua casa na fazenda do Major; é um último favor que quero te merecer. Ninguém lá te conhece, pedirás pousada, e é impossível que despertes a menor suspeita. Lá procurarás entrega-la ocultamente a uma velha escrava por nome Joana, que a levará fielmente às mãos de Lúcia.
— Vá sossegado, patrão; a carta há de ser entregue.
A carta de Elias era assim:
“Já lá vão seis meses que nos separamos e que me acho aqui na Bagagem, onde a fortuna me não sorriu. Manda-me agora destino que eu vá tenta-la bem longe daqui, porém com muito melhores esperanças. Parto hoje para o Sincorá. Não te assustes, minha querida, com a distância que vai separar— nos. Em qualquer parte que eu vá, te amarei sempre com o mesmo ardor e lealdade. Falta-me ainda ano e meio para cumprir o meu fadário. mas não esmoreçamos; conserva-me fiel e puro o teu amor, tua confiança no futuro e na Providência, e o céu nos protegerá. Adeus, até o prazo marcado. ”
Daí a um instante Elias, em companhia de seu protetor, partia para o Sincorá.