O Garimpeiro/VI
No dia seguinte ao desta conversa, o Major foi bem cedo ter ao quarto de sua filha.
— Então, minha Lúcia— foi logo dizendo sem mais preâmbulo— que tal parece esse belo moço baiano, que ultimamente tem freqüentado a nossa casa? ...
— Que tal me parece? ... — disse Lúcia com embaraço-tão cedo, uma tal pergunta? — acrescentou sorrindo. — Palavra, que não sei lhe responder, meu pai.
— Deixa-te de visagens; responde-me. Que tal te parece o senhor Leonel? ...
— O que parecem todos, um moço bem parecido, de muito boas maneiras, e que talvez seja muito boa pessoa.
—talvez, não; é mesmo um excelente moço e, além de tudo, muito rico.
—mas, a que vem tudo isso, meu pai?
— A que vem? ainda me perguntas? pois sabe que esse excelente moço, esse belo e rico baiano, foi a tua boa fortuna que o trouxe aqui para teu marido.
— Já esperava por isso-murmurou Lúcia dentro d’alma; é mais um pretendente! Que praga que nunca se extingue! Para meu marido! — exclamou ela— ah! meu pai, por piedade, não me fale nisso.
— Sim, para teu marido— replicou o Major com enfado— rejeitarás ainda este?
—meu pai não lhe tenho dito tantas vezes que não quero, que não devo me casar por ora?
—mas com este, minha filha! ... olha bem o que fazes. rejeita-lo é dar um coice na fortuna.
— E aceitar este ou outro qualquer, meu pai, é cravar-me um punhal no coração. Tenho pressentimentos de que, se me casar, serei muito desgraçada.
— Criança! ... deixa-te dessas loucas apreensões; essa repugnância há de passar com o tempo.
— Nunca, meu pai, nunca passará.
— Está bem, Lúcia, és uma criança sem juízo. Vai pensar bem no que te proponho e deixa-te de hesitações. Os anos voam e a beleza foge-lhe nas asas. Mais tarde quando quiseres te casar, não acharás mais marido que te queira. Anda, vai refletir um pouco sobre o caso e, se és uma menina de juízo, certamente mudarás de acordo. Fortunas destas não se encontram duas vezes na vida. pensa bem no que te digo, e amanhã espero achar-te convertida.
O Major saiu, e Lúcia ficou sozinha por muito tempo encerrada em seu quarto a refletir deveras, não sobre as vantagens do casamento, que seu pai lhe propunha, mas sobre as dificuldades de sua penosa situação, e sobre a luta que se ia travar entre ela e o Major, visto o modo por que este se mostrava empenhado na realização deste último enlace projetado. A respeito dos outros pretendentes o Major cedera quase sem insistência alguma às primeiras palavras de Lúcia. Mas, a respeito deste último, não parecia resolvido a desistir, retirar-se sem se dar por vencido. E o pior era que parecia estar coberto de razão, pois Leonel era em verdade um mancebo que parecia próprio, a todos os respeitos, para fazer a felicidade de uma moça, e as mais ricas e formosas donzelas da Bagagem teriam tido inveja da sorte de Lúcia. Encerrada em seu quarto Lúcia refletiu muito e amargamente sobre a cruel situação em que se achava, e, depois de ter chorado e rezado muito, pedindo auxílio ao céu, saiu do quarto resolvida a lutar até o último transe, e disposta a aceitar antes o véu de freira do que a grinalda de noiva.
Leonel, todo confiado em sua bela presença e seus dotes pessoais apesar da fria reserva de Lúcia, não hesitava um momento que por fim ela acabaria por se lhe render.
O Major nessa mesma tarde foi sondar de novo o coração de sua filha. redobrou de instâncias, multiplicou os argumentos, entre os quais envolveu ameaças mal disfarçadas: nada a abalou. Por fim desceu até a súplica; Lúcia respondeu mergulhando a cabeça entre as colchas do leito, em que estava assentada, e desatou em prantos e soluços. O velho comovido por um momento nada ousou responder a esta explosão de lágrimas e soluços, e retirou-se triste e desconcertado, mas não desanimado.
Como de costume, o jovem baiano apareceu à noite em casa do Major. Lúcia, que até ali só sentira por Leonel a mesma indiferença que para com os anteriores pretendentes, agora experimentava também um certo afastamento, uma repugnância que mal podia dissimular. Já não via nesse homem um simples pretendente: era um ameaço vivo da sua felicidade, era a morte de suas esperanças, porque no fundo da alma Lúcia ainda nutria uma esperança, tímida, vacilante sim, mas era sempre uma esperança, e era ela que ainda lhe alimentava o coração, e dava-lhe coragem para viver. E talvez, quem sabe? com esse instinto admirável de que são dotadas certas mulheres, através das mais brilhantes exterioridades ela sabia penetrar no fundo dos corações, e achava em Leonel alguma coisa que lhe repugnava.
Quando Leonel entrou na sala, Lúcia descorou e estremeceu de modo que teria atraído a atenção de todos, se não fosse a fraca claridade que reinava na sala, iluminada então por uma só vela. Não escapou, porém, a Leonel aquele estremecimento de Lúcia; mas graças à sua vaidade o interpretou como efeito do alvoroço que lhe causava a sua presença, e o tomou como bom presságio. Se pudesse ver melhor o semblante da moça, teria notado nele a extrema palidez e uma expressão de angústia e de horror que o tiraria de seu engano.
Passados alguns minutos da conversação banal, Lúcia retirou-se para acalmar, ou antes para ocultar a agitação de seu espírito. Sua agitação era das mais penosas. Criada na singeleza da roça, habituada apenas à convivência de uma sociedade de costumes chãos e sem etiquetas, não estava acostumada a dissimular seus pesares e inquietações. Mas o instinto delicado de seu espírito advertia-lhe que era mister mascarar sua dor com as exterioridades do contentamento e da tranqüilidade.
A companhia ainda era pouco numerosa: com um gesto o Major convidou Leonel para a mesma janela em que os vimos conversar pela primeira vez. O Major começou o diálogo.
—senhor Leonel, tenho esperanças de que Lúcia aceitará com prazer a mão de esposo que o senhor lhe oferece. Mas, quando ontem conversamos, esqueci-me de tocar em um ponto que entretanto não devo lhe ocultar. O prazer que senti ao ouvir sua proposta provavelmente me fez passar pela idéia esse objeto. Enfim, para encurtar razões, talvez o senhor Leonel, como outros muitos, esteja em engano a respeito de minha posição pecuniária, e...
— Basta, senhor major; peço-lhe que não toque em tal assunto, se não quer ofender-me. Eu nunca indaguei, e nem indago quais são os seus haveres. Mercê de Deus, possuo alguma coisa para não precisar...
— Não se enfade, senhor Leonel; não é nesse sentido que falo; bem conheço o seu desinteresse. Mas todavia ficaria com um escrúpulo n’alma, se não lhe fizesse essa revelação e não lhe declarasse que estou arruinado.
— Deveras, senhor Major? ...
— É a pura verdade; completamente arruinado. Este maldito garimpo, que seduz e cega o homem mais do que a mesa do jogo ou a meretriz artificiosa, tem-me devorado em pouco tempo todos os meus haveres, uma sofrível fortuna adquirida à custa de longos anos de trabalho na lavoura e no comércio, sem a mínima compensação. Minha fazenda, meus escravos estão hipotecados quase até o último, e em breve a miséria virá bater-me à porta. Desculpe-me esta franqueza; eu não devia ocultar-lhe as minhas circunstâncias, porque não me ficaria airoso dar-lhe a minha filha em casamento, sem que o senhor soubesse que casava-se com a filha de um miserável.
— miserável... não diga tal, senhor major! isso nunca! mas, ainda que fosse um mendicante, mesmo assim eu teria orgulho de ser esposo de sua filha.
— mas a desonra... bem sabe que o público é implacável para com o negociante ou especulador infeliz.
— Qual desonra, senhor Major! o mau sucesso de uma especulação, contanto que seja lícita, não desonra a ninguém. Não se acovarde por essa forma... não faltarão meios de reabilitar-se. Tranqüilize-se; o público e o comércio não serão tão desapiedados como pensa. Pode-se fazer com seus credores um convênio que salvará tudo. Eu me entenderei com eles, e, graças a Deus, estou em circunstâncias de lhe poder ser útil sem sacrifício meu.
Dir-se—ia que o Major mui de propósito fazia aquela confidência a seu futuro genro para sondar sua generosidade e provocar o seu oferecimento. Mas não era assim; o major fazia-lhe aquela revelação porque entendia que era de seu dever, e procedia por um impulso de franqueza que lhe era natural. A princípio, portanto, o generoso oferecimento do jovem baiano o perturbou e desconcertou algum tanto; mas depois penetrou-lhe na alma como o raiar de uma dupla esperança. nesse enlace estava a felicidade da filha e a salvação de sua fortuna.
— Não, senhor! perdão! nem falemos nisso— replicou o Major algum tanto enfiado; longe de mim a idéia de lhe ser pesado; e o que diria o povo? ...
— E que tem o povo com os nossos negócios, e nós com o que ele dirá?
— Dirá, e com aparências de verdade, que contratando este casamento especulei com a sua generosidade.
— Não tem direito a dizer tal. Sabia eu por acaso do estado dos seus negócios quando lhe pedi a filha em casamento? e entretanto, desde que aqui cheguei, as pirei a ser seu genro. E há nada mais natural do que o genro socorrer ao sogro, ou o sogro ao genro? Sois demasiadamente escrupuloso, senhor major.
— Pode ser; mas...
— mas... nem falemos mais nisso, caro Major; são horas de nos divertirmos.
Algumas pessoas, que chegaram e vieram cumprimentar o Major, acabaram de pôr termo àquela conversação.
Leonel foi sentar-se ao pé de Lúcia, que já tinha voltado à sala. A coitada parecia que estava assentada em uma cadeira de ferro em brasa. Seu olhar era incerto, mudava de cor a cada momento, mal respondia às perguntas que Leonel lhe dirigia, e às vezes parecia querer levantar-se bruscamente, e deitar-se a correr pela casa a dentro. Mas aos olhos de Leonel tudo isto tinha uma explicação, aliás plausível para quem não conhecia o estado do coração de Lúcia. Era o acanhamento que resulta da emoção que sente toda a moça ao ver perto de si um homem apenas conhecido, e que tem de ser seu marido.
O Major por sua parte, pouco conversava, e andava pensativo, ocupado em refletir nos meios que empregaria em um novo assalto que projetava dirigir contra o coração da filha, para reduzi-la a dar o sim. Agora, que nesse casamento via também a reabilitação da sua fortuna, é fácil conceber com que novo ardor e encarniçamento estava disposto a ataca-la.
Lúcia, por sua parte, só esperava com a maior impaciência pelo momento de recolher-se para dar livre curso a seus pensamentos e a suas lágrimas.