O Garimpeiro/XIII
Depois da triste ocorrência da noite de sábado,Lúcia bem quisera mandar a Elias um bilhete, um simples recado mesmo, não para reatar relações culpáveis com seu antigo amante; seu honesto coração repelia semelhante idéia, mas para explicar seu procedimento, pedir-lhe perdão, e dizer-lhe um derradeiro e eterno adeus. Mas como? sempre rodeada de pessoas que a cercavam de cuidados às vezes importunos, não lhe era possível satisfazer esse desejo. Seu pai mesmo, receando que de novo se reavivasse um sentimento que já supunha quase extinto, posto que tivesse toda a confiança na honestidade de sua filha, contudo, à vista do estado de exaltação em que caíra sua imaginação enferma, julgou necessário observa-la com todo o cuidado e vigilância.
Esta contínua obsessão ainda mais lhe irritava o espírito, e aumentava os martírios do coração. Ser odiada, desprezada talvez por Elias sem deparar um meio de justificar-se para com ele e pedir-lhe perdão, era a mais pungente das torturas que a atormentavam. Queria só poder lhe dizer:
— Elias, tens razão de me odiar, de me amaldiçoar mesmo; mas acredita-me, eu não sou culpada; um dia saberás tudo, e estou certa que me perdoarás. Eu te amo ainda, e te amarei sempre; mas o céu não quer que sejamos um do outro. Curvo-me à impiedade de meu destino, esperando que a morte em breve virá pôr termo a meus martírios. Adeus! ...
Seriam estas as últimas palavras, que lhe dirigiria, e depois se devotaria inteira ao sacrifício que lhe era imposto. Mas nem isso, nem esse extremo consolo lhe era dado, e ainda mais penível se tornava sua situação, quando se lembrava que naquela fatal noite Elias apenas lhe relanceara um olhar sinistro e exprobrador.
No dia em que fora preso Leonel, Lúcia inculcando-se restabelecida, levantou-se da cama, em que há dois dias jazia; mas achava-se ainda muito alquebrada para poder sair do quarto.
Logo depois da cena da prisão, o Major dirigiu-se ao quarto de sua filha.
— minha filha, disse ele, reveste-te de paciência e de coragem; tenho mais um triste contratempo a anunciar-te.
— Qual é, meu pai? ... fale! fale! ...
— Não te aflijas, querida Lúcia. O golpe é bem sensível, mas creio que mais para mim, do que para ti. O negócio há de ser sabido imediatamente, e antes que outro te conte, quero que o saibas de minha própria boca.
— Então o que é, meu pai? ... pode falar sem susto. Eu já estou acostumada a ouvir más novas.
— Acabo de assistir a uma cena bem triste. Leonel, o teu noivo, acaba de ser preso aqui à porta de nossa casa!
— Sim, meu pai? ! ... exclamou Lúcia, levantando-se com um brilho estranho nos olhos, que o pai tomou por um novo acesso de delírio, e que não era mais do que um lampejo de uma alegria que quase se parecia com a loucura.
— Sim? continuou ela. O Sr. Leonel preso? e por que, meu pai?
— Não sei ainda; mas sem dúvida pelo crime de moeda falsa, de que o acusava o pobre Elias... E ninguém acreditava! ... meu Deus! ... como são as coisas deste mundo! ...
— E que sina a minha, meu pai! ah! não há nada certo nem seguro neste mundo!
— tranqüiliza-te, minha filha; e dá graças ao céu que nos veio livrar talvez das garras de um embusteiro, de um monstro. Foi para nós uma felicidade.
— Foi mesmo, meu pai; foi uma felicidade muito grande. Aquele homem, não sei por que, fazia-me medo. Uma antipatia invencível me arredava dele... Ah! ... foi como se me tirassem um peso de cima do coração!
— E como te resignavas a casar-te com ele? ...
— Era um sacrifício, meu pai.
— Sacrifício!
— Sim, meu pai, um sacrifício, mas um sacrifício para sua felicidade e de minha irmã; um sacrifício imposto pelo dever. Já não se lembra de assim mo ter declarado?
— Lembro-me, Lúcia; mas se soubesse que tinhas tanta repugnância...
— muita! muita repugnância!
— se eu o soubesse, antes queria sofrer toda a sorte de misérias, do que tornar para sempre desgraçada a minha filha...
— É verdade! eu seria muito, muito desgraçada.
— E por que te não abrias comigo com toda a franqueza?
— À vista do que meu pai me falou, era meu dever calar-me e submeter-me.
— Ó boa e querida filha... e como teu coração adivinhava! e eu, cego e cruel pai que eu era! te ia arrastando sem piedade para tão duro sacrifício! ... perdoa-me, minha Lúcia. Louco e desventurado pai que sou! ...
— meu pai, esqueçamo— nos de tudo isso; agora só devemos nos alegrar e dar graças ao céu que tão a tempo nos veio livrar das mãos daquele homem que só queria a nossa perdição.
— tens razão, minha filha; demos graças ao céu. Adeus; vai descansar. Ainda não estás boa, e tens necessidade de repousar. Adeus.
Apenas o Major saiu, Lúcia foi lançar-se de joelhos aos pés de um crucifixo, que tinha pendurado à cabeceira do catre, e com todo o fervor de seu coração murmurou esta oração de graças:
“Ó meu pai do céu, eu vos rendo infinitas graças pelo imenso benefício que acabais de fazer-me, livrando-me das ciladas e um malfeitor, que me queria arrojar no abismo da perdição e da desgraça. Eu bem sei que não merecia tão assinalado favor, mas vós sois bom, e tivestes piedade de mim. Mas lembrai— vos também do infeliz Elias! ... O pobre Elias! ... tem direito de me querer mal... só me falta o seu perdão. Ah! Elias! quando souberes de tudo, tu me perdoarás... ”
Mal ia Lúcia acabando aquela prece, que do trono do Onipotente ia sensivelmente se desviando para a pessoa de seu amante, quando entrou Joana no quarto.
— Estava rezando, sinhazinha? faz bem; o rezar alivia muito o coração da gente, quando está aflito.
— Estava, sim, Joana; o que me queres?
— Aqui está, disse a escrava apresentando-lhe um bilhete.
Pelo sobrescrito Lúcia logo conheceu que era de Elias. O coração pulou-lhe de alegria; ainda uma vez voltou a Deus seu pensamento agradecido. Sem demora abriu e leu o bilhete. Mas logo à primeira linha sua fronte se anuviou e o brilho de seus olhos se empanou de lágrimas. O bilhete dizia assim:
“Adeus, Lúcia! adeus para sempre! foste bastantemente leviana para me desprezares por um aventureiro desconhecido, só porque tem algum dinheiro e uma bela aparência. Praza ao céu que bem cedo não te arrependas, e que não venha a ser ele mesmo o algoz que me vingará de tua ingratidão! Vou para bem longe procurar esquecer-me de ti; não sei se o conseguirei. Quando esta receberes, já estarei mui longe daqui. Adeus! esquece-te também de mim. ”
Lúcia já esperava que naquela carta não poderiam vir senão queixas e exprobrações. Elias ignorava as circunstâncias fatais que a tinham forçado a dar o — sim — a Leonel; tinha pois sobeja razão para acusa-la e queixar-se amargamente. Mas aquela partida repentina, aquela amarga despedida para todo o sempre, lhe dilaceravam o coração. Ah! nunca mais vê-lo, nunca mais poder-se justificar para com ele, ela, inocente vítima, que ia imolar-se em um sacrifício, que a mão de Deus acabava de afastar de cima de sua cabeça, ser condenada a viver odiada e desprezada pelo ente a quem mais amava no mundo! Este pensamento continuamente a atormentava, e não podia perdoar a Elias a precipitada sofreguidão com que a condenava, e se animava a abandona-la para sempre, sem ter-lhe ouvido uma palavra, agora que o destino parecia querer abrir-lhe de novo o caminho da esperança.
— Oh! exclamava ela chorando, é preciso ter bem pouco amor para proceder assim. Eu não o condenaria tão de leve. Mas decerto que ele não me ama como eu o amo.
Entretanto ainda uma vaga esperança a alentava. Elias talvez chegasse a ter conhecimento, se é que já não tinha, do sucesso que trouxe ou havia de trazer inevitavelmente o rompimento de seu contrato de casamento com Leonel. Se lhe tinha verdadeiro amor, havia por certo de arrepender-se da precipitada resolução que tomara de nunca mais vê-la, e voltaria. Se não fosse o amor, a curiosidade mesmo o faria voltar, e, quem sabe? também desejo a vingança para ter o prazer de vê-la humilhada em razão do triste desfecho da projetada união. Fosse porém qual fosse o motivo que o trouxesse, ela só suspirava por vê-lo na Bagagem; não faltaria ocasião de revelar-lhe tudo o que ocorrera, e o seu perdão era certo.
Como já vimos, Lúcia não se enganara: a resolução desesperada de Elias apenas tinha durado algumas horas. Mas antes que Lúcia o soubesse, teve de passar ainda muitos dias de cruel incerteza e inquietação.
Elias, em conseqüência dos profundos pesares e violentas comoções de espírito por que havia passado durante aqueles dias, sofreu um novo e grave ataque de febre intermitente que tinha apanhado em sua volta do Sincorá, ataque que o prostrou na cama por muitos dias. Não querendo incomodar nenhum dos habitantes da Bagagem, contra os quais estava possuído do mais vivo e justo ressentimento, recolhera-se a um tosco e pobre ranchinho, separado cerca de um quarto de légua do rio acima do grosso da povoação, onde era tratado por uma pobre parda velha, sua conhecida de Uberaba, que como tantos outros tinha mudado para a Bagagem os seus penates.
Elias conhecia e trazia consigo os medicamentos necessários para combater sua moléstia, e portanto, dispensou o médico que a boa velha em vão instava que se chamasse. Graças a esse curativo e aos cuidados da caridosa enfermeira, no fim de oito dias achava-se inteiramente fora de perigo.
Durante essa forçada reclusão, as dores físicas o incomodavam menos do que as inquietações do espírito e as amarguras do coração.
Lúcia não lhe saía do pensamento. Nos sonhos delirosos da febre ela lhe aparecia, ora risonha e feliz ao lado de um esposo, amável e brilhante cavalheiro; e então lhe escapavam bramidos roucos de raiva e desespero, que pareciam despedaçar-lhe o peito. Ora a via pobre e envolta nos andrajos da miséria, mas pura, santa e sempre fiel à lembrança de seu amor; e então lágrimas doridas lhe rebentavam dos olhos; chorava e soluçava como uma criança. Sabia que com a prisão de Leonel achava-se desfeito o casamento de Lúcia, que o Major estava arruinado, e que a miséria em breve prazo o esperava a ele e a toda a família. Esta consideração o enchia de amargura; então mais que nunca maldizia o infame embusteiro que o iludira, praguejava a sorte e blasfemava contra o céu.
Na sua pobre cabana ninguém o vinha ver, porque ninguém o supunha ali, crendo todos, em razão do seu desaparecimento, que tinha saído da Bagagem.
Um dia disse-lhe a velha caseira:
— meu moço, Você. Está aqui tão só, não tem com quem conversar; isto não está bom; não quer que eu chame algum de seus amigos para entreter o tempo?
— Amigos! ... oh! minha velha; pelo amor de Deus! não me fale nos amigos da Bagagem, quisera antes ver o rosto de Satanás.
— Pois como? ... não há por aí nem uma viva alma com quem tenha tomado caipora? ! ...
— Nenhuma, minha velha, nenhuma! ... mas não... minto... havia uma: um velho e pobre camarada. Em vão tenho perguntado por ele... ninguém me dá notícias; nem sei se é vivo ou morto.
— E é só esse?
— Ainda há mais outra pessoa; e essa eu daria a minha vida para vê-la, ainda que fosse um instante; mas essa, ai de mim! ... essa não pode vir aqui.
— Vá vendo, que é alguma moça bonita.
— É verdade! ... muito bonita; bonita como não há nem pode haver nenhuma.
— mas, meu moço, Vmcê. Está muito doente para pensar agora em moças bonitas. Pense na Virgem Santíssima, que é quem lhe há de valer.
— Entretanto se essa de quem falo, me aparecesse agora aqui, estou certo que no mesmo instante eu sararia.
— Então é mágica?
— É mais do que isso; é um anjo.
— Anjo! ... nesse caso não me canso em ir procura-la, porque é coisa que não existe mais neste mundo.
— Não te canses mesmo, minha velha; tu não a encontrarás; nem ela virá cá. Ela é do céu; não pode descer a este inferno em que estou penando.