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O Garimpeiro/XIV

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No dia seguinte bem cedo a boa velha veio pressurosa acordar Elias.

— Levante-se, meu moço; o dia amanheceu bonito, e tenho uma bela notícia para lhe dar.

— Boa notícia para mim! ... não é possível! para mim! ... neste mundo já não pode haver notícia nem boa nem má. A única boa notícia que me poderiam dar era que já morri.

— Qual! quem fala agora em morrer! ... dou-lhe parte que temos agora aqui perto uma bela vizinhança: já Vmcê. Não ficará tão sozinho.

— Vizinhança! oh! que bela nova! tomara que me deixem sozinho, e que eu nunca lhes veja a cara. Senão me mudarei ainda para mais longe.

— Sozinho se veja o diabo! ... olhe que uma vizinhança como esta não é para desprezar. É um velho, uma menina muito linda, e uma moça bonita como um sol. Não os conheço, nem me lembro de ter visto essa gente em parte nenhuma.

— mas não me recordo de ter visto casa nenhuma aqui por perto, e pensei que estava livre de toda a vizinhança.

— Pois não viu uma casinha coisa de uns cem passos ali mais adiante?

— De todo não me lembro; também eu estava tão doente...

— também a casa é tão pequena, é como esta mais ou menos, e está tão escondida no mato, que mal se avista.

— Então são tão pobres como nós? ...

— Assim parece, ou talvez mais ainda, coitados; mas parece ser muito boa gente. Quando fui apanhar água fresca numa fonte que há para lá da casa, pediram-me para encher o pote, e estive conversando um pouco com eles. O homem estava para dentro; mas a menina é muito dada e muito meigazinha; a moça é também muito boa e bonita, meu moço, bonita até ali... mas não sei que tem, que anda tão triste! ... comparando mal, parece uma imagem de Nossa Senhora das Dores.

— Pois de todo não sabes quem é essa gente? de onde é? de onde veio? perguntou com sÔfrega curiosidade Elias, a quem um súbito pensamento tinha atravessado o espírito.

— Nada sei de todo.

— Um velho, uma moça e uma menina, não é o que disseste?

— tal e qual.

— Um velho alto e cheio de corpo...

Isso mesmo.

— A menina é morena e terá dez ou onze anos. A moça é clara, bem feita, olhos grandes, cabelos castanhos...

— Justamente! ... pelo que vejo, são seus conhecidos? ...

— Parece-me que sim.

— Um velho, uma moça, uma menina! refletiu consigo Elias, e com estes sinais! não podem ser outros. O Major estava em vésperas de completa ruína! ... infeliz família! ...

— E não tiveste ocasião, continuou Elias, de ouvir o nome de alguma das pessoas da família! ...

— Acho que sim... espere... Ah! agora me lembro... ouvi o velho chamar lá de dentro a moça pelo nome de... de... Lúcia.

— Lúcia! ... que nome divino acabas de pronunciar, minha boa velha! são eles mesmos! é ela! ... ah! desventurada Lúcia! e mais desventurado de mim, que não posso valer-te! ...

— Estou vendo que essa moça é o anjo de que Vmcê. Há pouco falava? ...

— É, minha velha, é ela mesma. E dirás ainda que os anjos não andam cá pela terra? ...

Elias não teve mais sossego, e levantou-se imediatamente. Só a idéia de que ali tão perto dele achava-se Lúcia, dava-lhe vigor e alma nova. Era impetuoso, irresistível o desejo de vê-la; mas ao mesmo tempo a lembrança da pobreza, em que ia encontra-la, o contristava e enchia-lhe de amargura o coração. Vieram-lhe ao espírito todos os tristes transes de sua vida passada, e refletiu amargamente sobre os cruéis e estranhos caprichos da sorte. Ele, que outrora fora quase que despedido da casa do Major, e considerado indigno de pôr os olhos em sua filha, ele que há poucos dias fora tratado desabrida e brutalmente em casa do mesmo Major por amor de um infame aventureiro, ele o via esse mesmo Major, a seu lado, tanto ou mais miserável do que ele próprio. Se tivesse alma maldosa e vingativa, oferecia-lhe então uma bela ocasião de espezinha-lo humilhando— o com a sua visita; a sua presença por si só seria um sarcasmo vivo que devia encher de confusão e vergonha aquele homem outrora tão fátuo e ambicioso. Mas Elias nada tinha de vingativo e rancoroso. Sua alma nobre era incapaz de desrespeitar o infortúnio de quem tanto adorava.

Entretanto crescia-lhe o desejo cada vez mais impaciente de ver Lúcia. Passado o abalo e a comoção violenta dos primeiros dias, e enfraquecido o corpo pela enfermidade, acalmou-se a irritação do espírito do infeliz mancebo, começou a refletir com mais frieza, e uma voz interior como que o advertia de que Lúcia era inocente, e o amava ainda como sempre, e que algum motivo muito poderoso a forçara a condescender com a vontade de seu pai.

Posto que ainda bastante fraco, Elias parecia lesto e disposto como em seus dias de perfeita saúde; uma força interior o reanimava como por encanto. Seu primeiro cuidado foi ir ver, ainda que a certa distância, a casinha em que viera habitar a família do infeliz major. Era uma tosca choupana, a última que se via à orla do caminho que seguia rio acima para o comércio de Mundim. Mas essa choupana aos olhos de Elias tinha mais encantos que um palácio: era o templo que encerrava uma divindade.

Sentado sobre a relva que se estendia pela encosta acima em frente de sua casinha, esteve por largo tempo contemplando— a e examinando— a minuciosamente; mas não viu ninguém. Apenas a fumaça que saía pelo telhado, e algum rumor confuso de vozes atestavam que a choupana era habitada. Depois de estar ali mais de uma hora a contemplar a casa, e embebido em mil pensamentos, ora risonhos e esperançosos, ora amargos e sombrios, a porta se abriu, o Major saiu, e imediatamente a porta se fechou. Envolvido num largo sobretudo, chapéu de pêlo de lebre, carregado sobre os olhos, a cabeça descaída sobre o peito, arrimando-se a uma grossa bengala, lá ia o Major a caminho da povoação.

Ao vê-lo, Elias teve o mais profundo dó e sentiu apertar-lhe o coração. Como estava a certa distância do caminho, o Major passou sem vê-lo.

— Onde irá aquele infeliz pai, pensava Elias; que irá fazer? Irá talvez envidar os últimos esforços para achar algum meio de manter com decência sua pequena família, tão digna de melhor sorte! irá talvez vender alguma jóia que ainda resta a suas filhas, para dar-lhes um pedaço de pão! ... E a que portas vais bater, infeliz Major! ... de uns monstros sem consciência e sem entranhas, que folgam com a desdita alheia, como folga o urubu ao ver expirar o animal em que vai cravar o imundo bico faminto de carniça. Esses mesmos, que ainda ontem regozijavam-se em tua casa, comendo e bebendo à tua custa, hoje apenas se dignarão testemunhar-te um pouco de compaixão. Cega— os a gana do dinheiro; piores que os lobos, são capazes de devorarem-se uns aos outros por um punhado de ouro. Major! Major! eles vos arrancarão até a camisa do corpo, e tomai bem cuidado sobre vossas filhas! eles são capazes de roubar-te esse único tesouro de teu coração, esse último consolo de teu infortúnio! ...

A voz da velha enfermeira o veio despertar daquelas sombrias reflexões.

— Olá, senhor Elias! ... o que está aí a banzar? ... fuja desse sol, que está ficando muito quente; venha tomar seu caldo. Então? perguntou ela depois que Elias se aproximou; então, viu os novos vizinhos?

— Vi somente o velho: é muito meu conhecido.

— Falou com ele?

— Não; ele saiu de casa, e passou por mim sem ver-me; coitado! vai tão cabisbaixo! ainda ontem era rico; hoje, minha velha, talvez lhe possamos dar esmolas!

— Forte pena! ... mas Deus é grande; há de compadecer-se deles. Eu tenho mais dó é das pobres meninas, coitadinhas! tão mimosas, tão bonitinhas! há de custar-lhes bastante acostumarem-se com a pobreza.

— talvez não; foram criadas na roça, e estão acostumadas com o trabalho. O pai não tinha outro defeito senão o de ser muito fanfarrão e todo enfatuado de riqueza e fidalguia. No mais era um homem de bem, e soube dar excelente educação a suas filhas. Mas nem por isso são menos dignas de lástima.

— E por que não vai fazer-lhe uma visita, e oferecer-lhe o nosso préstimo; coitados! ... Não digo hoje, mas amanhã ou depois, quando melhorar...

— Esse é o meu desejo; mas...

— mas o quê? ... há de ir; são nossos vizinhos, e talvez lhe possamos prestar nalguma coisa.

Elias bem ardia em desejos de ir ver Lúcia. Mas, ofendido há tão pouco tempo pelo Major em seu amor— próprio, sentia certa repugnância em ir visita-lo, e demais receava que ele pensasse que sua visita naquela ocasião tinha por fim humilha-lo e mortifica-lo. Visitar Lúcia na ausência do pai, também sua natural delicadeza não permitia, principalmente naquela condição em que ela se achava; era dever duplamente sagrado para ele respeitar-lhe o recato e a reputação.

Elias passou essa manhã a excogitar um meio de ver Lúcia sem encontrar-se com o Major; mas seu cérebro abrasado e debilitado pela moléstia não lhe sugeriu nenhum. À tarde o acesso febril o prostrou na cama, e forçoso lhe foi renunciar por esse dia ao seu desejo.

No dia seguinte amanheceu muito melhor. O Major saiu como na véspera à mesma hora. Elias que não ousava fazer uma visita formal à casa de seus vizinhos, começou a rondá-la em torno, mas em certa distância respeitosa, a ver se por acaso entrevia de longe a sua querida Lúcia, e esperando que o acaso lhes proporcionaria ao menos um momento de entrevista. O sítio era inteiramente ermo. A casa tinha um grande cercado ou quintal quase inteiramente inculto, e contíguo ao quintal da casa de Elias, tendo ambos nos fundos por limites o ribeirão. Elias rodeou primeiramente o cercado pelo lado exterior, passou pela frente da casa e desceu até à margem do ribeirão, enfiando ávidos e perscrutadores olhares por todas as janelas, através das cercas e dos arvoredos. Se alguém o visse, nada poderia suspeitar; ia embuçado em seu capote, arrimado a um bastão, era um pobre enfermo em convalescença, que dava o seu passeio higiênico. Não viu ninguém.

De volta à casa lembrou-se de fazer a mesma excursão pelo lado interior do quintal de sua casa, que ficava contíguo ao dos vizinhos. Aquele também estava coberto de arbustos silvestres e capoeira inculta, de maneira que, por entre as moitas, podia Elias muito a seu sabor e sem ser visto observar por entre paus mal unidos da cerca todo o quintal vizinho, e mesmo divisar algumas vezes o terreiro. Teria dado como uns trinta passos ao longo da cerca que ia morrer à beira do rio, quando ouviu vozes de mulher um pouco mais abaixo. O coração pulou-lhe cheio de alvoroço; cuidou ouvir a voz de Lúcia! Foi-se aproximando com precaução até o ponto donde partiam as vozes, colocou-se à cerca, espreitou e viu...

A pequena distância da cerca um jorro d’água caía por uma bica em um tanque raso alcatifado de cascalhos, no qual Lúcia, com os pés descalços mergulhados n’água, a saia do vestido, presa por um lenço, regaçada quase até os joelhos, o corpo do vestido descido, os róseos seios mal cobertos pela fina e transparente camisa e os compridos cabelos ajuntados atrás por uma fita, caindo-lhe pelas espáduas, estava lavando roupa.

Debruçada sobre o tanque, cujas águas borbulhando-lhe em torno beijavam amorosas as duas colunas de alabastro nelas mergulhadas, dir-se— ia Vênus no momento em que nascia da espuma do mar, ou branca açucena que ali nascera à beira da fonte, e pendia o cálix a mirar-se em seu cristalino regaço. Nunca Elias, nos dias em que ela era rica e feliz, no meio das festas e do esplendor do luxo, nunca a vira tão linda, tão fascinadora assim. O coração batia-lhe com tal violência, que tinha medo que fosse ouvido e traísse a sua presença ali. Entretanto quase se envergonhava de estar ali espreitando às escondidas e profanando com suas vistas o inocente e descuidoso desalinho daquela casta criatura. Queria fugir, mas seus pés pregados à terra, e seus olhos não podiam desviar-se daquela Angélica figura que os fascinava, e se Lúcia nunca dali saísse, Elias também ali ficaria para sempre, ou então de um salto transpondo a cerca, iria se arrojar aos pés dela, se do lado de cima da bica não estivesse em pé uma escrava que com ela conversava. Era a boa e fiel Joana, que acabava de colher nos canteiros destroçados daquela inculta horta um punhado de ervas para o parco jantar da família, enquanto a senhora lavava roupa.

Não é só a morte que nivela as condições; o destino às vezes a antecipa, e se compraz em curvar a cabeça dos ricos e orgulhosos até beijarem o pó da terra, e coloca escravos ao nível do senhor. Mas o destino é cego, e o raio que fulmina sobre a cabeça do culpado também às vezes debruça sobre o lodo o lírio puro da inocência e da virtude.

Quando Elias as avistou, a conversa das duas estava tocando a seu fim.

— tem paciência, sinhazinha, dizia a escrava. Nossa Senhora do Patrocínio há de ter piedade de nós. Querendo Deus, tudo se há de arranjar e nós ainda havemos de voltar para nossa roça. Mas enquanto isso se não arranja, aqui está sua negra velha, que ainda pode trabalhar para Vmcês. Todos...

— mas tu hoje és forra, Joana; deves ir cuidar na tua vida...

— Que me importa lá isso? ... por acaso eu pedi alguma alforria? entreguem-me cá a minha carta, e hão de ver como eu a faço em pedacinhos e atiro tudo no fogo.

— Isso não, Joana! ... tal não farás. Fui eu que pedi a meu pai te forrasse, e sabes por quê? ...

— Eu sei lá! ... de certo foi porque sinhazinha não me quer mais; quer ficar livre de mim...

— pelo contrário, Joana, foi para não ficar sem ti. Se não fosses forra, irias cair nas mãos dos credores de meu pai, como todos os outros escravos da casa.

— Credo! Nossa Senhora me guarde! ... então, não; quero a minha carta; quero ser livre para poder ser escrava de minha sinhazinha. Esses diabos desses homens! Deus me perdoe! ... parece que não são batizados. Meu senhor já valeu a eles todos, e agora não tem um só que tenha piedade dele. Má peste que os persiga! ... Agora vou cuidar na janta... sinhazinha fica aí?

— Fico, Joana; podes ir; vou acabar de enxaguar esta roupa.

— Deixa isso, sinhazinha. Eu logo venho acabar de lavar e estender toda essa roupa; não esteja se matando sem precisão.

— Não gosto de estar à toa, e bem sabes que não é a primeira vez que lavo roupa, e também isto me serve de distração.

— Não tem medo de ficar aqui sozinha?

— medo de quê? ... quem pode vir me fazer mal aqui neste ermo?

— Está bem, disse Joana retirando-se. Assim mesmo eu vou chamar sinhá Júlia para ficar com Vmcê.

— Não é preciso, Joana... Júlia está ocupada com uma costura que é preciso acabar hoje mesmo. Eu também lá vou neste instante.

Nenhum favor melhor podia o céu fazer a Elias naquele instante do que deixar Lúcia ali sozinha; e dir-se— ia que Lúcia adivinhava, e queria ficar só, como se tivesse ajustado uma entrevista. A emoção de Elias subiu de ponto. Não fosse uma excessiva ousadia, uma profanação, teria de um salto transposto a cerca e iria cair a seus pés...

Logo que Joana desapareceu por entre os arbustos do quintal, Lúcia deixou a fonte, e sentou-se sobre a grama do coradouro, pousou a face em uma das mãos, e pôs-se a cismar. Era um modelo perfeito para a estátua de uma náiade. Depois tirou do seio uma carta, e lançou sobre ela um olhar. Seus olhos arrasavam-se de lágrimas.

— Que crueldade, meu Deus, exclamou ela, deixar-me assim arrebatadamente, e abandonar-me tão sozinha e desamparada neste ermo... isto é de quem ama deveras? ... e além de tudo, a pobreza! ... Meu Deus! ... não sei o que será de mim... hei de morrer de tristeza! ... se me dissesse ao menos onde foi! ... eu dera tudo para saber onde ele está! ...

Ouvindo estas palavras, Elias não pôde mais conter-se; pulou a cerca, e em dois saltos estava ao pé de Lúcia.

— Eis-me aqui, Lúcia! ... eis-me aqui a teus pés! exclamou o mancebo.

Lúcia assustada deu um grito, e ergueu-se rapidamente. Num relance desatou da cintura o lenço com que suspendia as saias, e com ele compôs os ombros e os seios que trazia quase nus. Lembrava Vênus, quando do traje de ninfa caçadora, em que estava disfarçada, transfigurou-se subitamente aos olhos de Enéias em verdadeira deusa, deixando tombar-lhe aos pés as vestes roçagantes.

— Perdoa-me, minha Lúcia! perdoa a minha ousadia; ela é filha do muito amor que te consagro. Eu estava ali... eu te ouvia, e eu te amo; vê se era possível conter-me. Se ainda me amas, tu me perdoarás.

O sobressalto de Lúcia não tardou em transformar-se na efusão de uma celeste alegria.

— se ainda te amo! ... exclamou, pois duvida ainda? ...

— Sou tão infeliz, que custo a acreditar em tamanha ventura.

— Compreendo. Pensa que lhe fui infiel; que traí o nosso amor. Tinha razão para pensar assim; mas quando souber o que houve, estou certa que me há de perdoar.

— Não tenho nada que perdoar-te; eu é que devo pedir-te perdão de meu estouvamento e precipitação. Meu coração já adivinhou tudo. Mas entretanto conta-me, minha querida Lúcia, conta-me como tudo isso foi...

Aquela entrevista, que o acaso preparara, durou apenas meia hora; mas meia hora de gozos e efusões d’alma, de delícias inefáveis, meia hora tão cheia de amor e felicidade, que aos olhos de Elias compensou largamente dois anos de agros sofrimentos e ásperos trabalhos, meia hora que ele trocaria de bom grado por um século de viver ordinário.

Entretanto Lúcia contou-lhe rapidamente a história de seu projetado casamento com Leonel, as solicitações de seu pai, e as tristes circunstâncias que a arrastaram àquele sacrifício, que além da felicidade lhe custaria também a vida, mas que ela julgava necessário e de seu dever para felicidade de seu pai e de sua irmã.

— E não te lembravas, disse Elias com um triste sorriso, que nesse sacrifício arrastavas mais uma vítima? ...

— Oh! se me lembrava! ... mas eu nem notícias tinha de ti... e, mesmo que as tivesse, a não estares em circunstâncias de valer a meu pai, levarias a mal esse sacrifício, se infelizmente se consumasse? ...

— Não, minha Lúcia... eu não teria remédio senão admirar-te, embora se me estalasse de dor o coração. Mas a carta que te escrevi do Sincorá, acaso não chegou-te às mãos?

— Chegou, Elias; mas em que momento, meu Deus? Eu acabava de dar o meu consentimento, de comprometer solenemente a minha palavra para com meu pai; já era tarde. Faz idéia de quanto era triste e desesperadora a minha posição.

— Pobre Lúcia! quanto és boa... quanto és adorável e sublime! se antes eu te amava, de hoje em diante eu te admiro, eu te adoro, e não me julgo digno do amor de uma criatura tão superior, de um anjo, de que o mundo não é digno.

— se não te julgasse digno, eu nunca te amaria, e não teria passado por tantas aflições e angústias só por amor de ti. Mas, hoje sou feliz. Deus teve piedade de mim, arredou de meu caminho aquele maldito homem, e restituiu-me o meu Elias...

— Oh! aquele homem parecia enviado ao mundo por Satanás para perturbar a nossa felicidade! Tudo que podia fazer meu prazer, minha glória neste mundo, ele pretendia arrancar-me; parece que o perseguia uma inveja feroz de tudo quanto era meu; queria para si o dinheiro de minha bolsa, o amor de meu coração, o ar de meus pulmões, o sangue de minhas veias. Mas o monstro apenas conseguiu roubar-me o fruto do meu suor, essa pequena fortuna que eu tinha adquirido... mas que importa isso, Lúcia! ... Deus ainda me conserva a mesma inteligência, a mesma atividade e disposição, e eu saberei adquirir outra...

— mas por piedade! ... eu te peço, não me abandones mais; não vás mais procurar fortuna lá tão longe. Não quero mais que saias de perto de mim...

— mas, Lúcia, eu sou pobre... tu também estás tão pobre como eu. Hoje há um motivo ainda mais forte para que eu empregue todos os esforços para adquirir alguma coisa; e se por aqui não for possível, devo...

— Deves amar-me, a mim só, e a mais ninguém. Somos ambos pobres; o destino nivelou nossas condições; e agora não há mais embaraço algum para nossa união! ...

— mas a pobreza, Lúcia... por mim só eu a suportaria como tenho suportado, de coração alegre; mas doer-me— ia horrivelmente ver-te em minha companhia sofrendo as inclemências e privações da indigência sem poder erguer-te a uma condição mais feliz.

— Porventura já não sou tão pobre, Elias? e deixarei de sê-lo, se me abandonares? ... então antes queres me ver sofrendo sozinha os rigores da pobreza, do que em tua companhia!

— mas olha, Lúcia; tu és muito moça, formosa e bem educada... não te faltarão maridos que, mais felizes do que eu, possam dar-te no mundo a posição de que és tão digna...

— Cala-te! ... não digas mais tal blasfêmia, eu te peço pelo nosso amor. Antes miserável contigo do que milionária com um Leonel, ou com quem quer que seja. Mas tu não irás mais para longe; fica por aqui mesmo na nossa terra; eu te peço pelo nosso amor, por tudo quanto mais queres neste mundo ou no outro... pela alma de teu pai e de tua mãe... em toda a parte se ganha com que passar a vida, e que necessidade temos nós de riquezas; o nosso amor será a nossa riqueza, e porventura não basta ele para nos tornar felizes?

— Sossega, minha querida Lúcia; não irei longe. O teu amor, assim como me enche o coração de felicidade, dá-me também toda a coragem e toda a confiança no futuro. É impossível que Deus não abençoe o trabalho de quem se esforça para amparar e fazer a felicidade de um anjo, como tu és. Mas olha, Lúcia, não quero, não devo pedir-te a teu orgulhoso pai, enquanto desta destra que vou oferecer-te, não puder escorregar um pouco de ouro.

— Ah... mas se isso não for possível, me abandonarás? ...

— Nunca, minha Lúcia, nunca! serei teu, sempre teu.

— Basta! ... adeus! já estamos aqui há muito tempo; alguém pode nos ver...

— Um instante ainda: escuta, Lúcia. Da minha malfadada fortuna do Sincorá restam-me ainda alguns destroços. Vou pó-los em jogo. Não sairei destes arredores. Saberás notícias minhas, e eu virei ver-te todas as vezes que puder; não sei que pressentimento me diz que seremos felizes, muito felizes. Adeus.

— Adeus... não te esqueças de mim e não me fujas mais.

— Não; nunca mais: eu te juro... por este beijo... mais este... e mais ainda. Adeus!

E dizendo isto Elias cingiu a moça a seu peito, e lhe deu um beijo em cada uma das faces e o último na boca. Era a primeira vez que tal ousava.