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O Garimpeiro/XV

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O garimpeiro é como o jogador; sua esperança está sempre no seio da grupiara, como a do jogador nas cartas do baralho, nos dados ou no tabuleiro verde do bilhar; isto é, sua felicidade dorme na urna do acaso, de onde as mais das vezes nunca sai. Por mais que sejam os reveses com que a fortuna os maltrate, por mais que repila e os calque aos pés, esses cegos e pertinazes amantes estão sempre de rojo a mendigar favores aos pés daquela cruel e caprichosa amásia.

Elias possuía ainda algum dinheiro e objetos de valor, restos que tinham escapado à depredação de seu execrável protetor do Sincorá, e que podiam servir de princípio a novas especulações. Elias, que já tinha garimpado muito, tinha certo pendor natural para este gênero de vida; e apesar de ter dissipado o melhor de seu tempo e de seu dinheiro em explorar minas de diamantes, sem outro resultado mais do que contínuas perdas, nem assim perdera a fé em que estava de que do chão havia de lhe brotar a riqueza e a felicidade. Esta era a crença firme do seu velho camarada, crença que por muito repetida não deixava de fazer profunda impressão na imaginação algum tanto fatalista e supersticiosa de seu jovem amo.

Elias costumava também ter sonhos matizados de rubis e diamantes, e além disso, como já ouvimos da boca do velho Simão, uma cigana lhe predissera que sua estrela era de pedra. O amor não contribuía menos poderosamente para inspirar-lhe aquela resolução; suspirava impaciente pelo momento em que pudesse ver-se para sempre unido a Lúcia, e para esse fim só é que desejava enriquecer, e enriquecer depressa. Ora, a não cair do céu, só do seio da terra poderia ver surgir de um dia para outro uma fortuna. Demais a questão era de pouco tempo; em poucos meses, em poucos dias, em algumas horas mesmo poderia ficar resolvido o problema de seu destino. Elias era audaz e resoluto; com o primeiro sorriso de Lúcia voltara-lhe toda a sua coragem e seguridade, toda a sua confiança no futuro.

Comprou datas, engajou praças, e começou a trabalhar com atividade e ardor inconcebível. Mas ah! aquela terra da Bagagem para ele parecia ser amaldiçoada; parecia que o diamante sumia-se do lugar onde tocavam suas plantas!

Tinha-se escoado um mês, e com ele grande parte dos recursos de Elias sem o menor resultado. Montões de cascalho bruto aglomerado em torno das grupiaras, eis o fruto único que se via do trabalho do infeliz moço.

Durante esse tempo duas vezes viu Lúcia, mas com o coração pesaroso e cheio de tristes presságios não ousou comunicar-lhe o mau êxito de suas explorações, e embalou — a com vagas esperanças, que ele mesmo não alimentava. Mas nem assim desistiu ainda. Coragem! ... dizia ele consigo. Mais um pouco de paciência! ... mais quinze dias; mais um mês! às vezes a sorte do jogo está na última cartada.

E mais quinze dias, mais um mês se foram de insano trabalho, e de ansioso esperar, sem que a ingrata grupiara lhe entreabrisse nem mesmo um leve sorriso de esperança.

Elias já tinha o coração curtido de decepções; mas nem por isso este último insucesso deixou de lhe amargar cruelmente. Depois de tantas tentativas malogradas, depois de tantos e tão cruéis reveses, esbarrava enfim na muralha impenetrável do impossível. Cansou de lutar, e o desalento calou-lhe fundo pela alma adentro.

— Pobre ainda, meu Deus! exclamava o infeliz; pobre sempre, e cada vez mais pobre! e não poder dar a Lúcia, pobre ainda mais do que eu, senão a miséria em troca de seu amor! Ah! céu de bronze, que deixas exposta aos mais duros rigores da sorte a mais pura e a mais bela de tuas criaturas! ah! terra maldita, que escondes tesouros em teu seio avaro e deixas perecer à míngua o mais lindo dos seres, a mais formosa flor que te adorna a face! ...

Elias por si só bem pouco se importaria com a pobreza; estava afeito a suporta-la desde longo tempo. Mas cortava-lhe o coração ver a sua querida Lúcia, nascida e educada sempre no meio da abastança, sofrendo privações e quase reduzida à miséria, e condenada a trabalhar com suas próprias mãos para prover à sua subsistência, de seu pai e de sua irmãzinha. Blasfemava contra o céu e maldizia da Providência, que lhe negava sua proteção naquela nobre e santa tarefa em que se empenhava para arrancar à miséria aquela criatura digna do céu.

Desejava morrer, e a idéia do suicídio como um fantasma lúgubre lhe esvoaçava de contínuo pela mente. Mas lembrava-se de Lúcia, de Lúcia na miséria, e compreendia que era preciso viver para ela. Quem lhe poderia valer, se ele lhe faltasse? ... arrancar-se a existência naquela ocasião era talvez roubar a Lúcia o último, se bem que fraco arrimo, que lhe restava neste mundo. Naquelas circunstâncias já não era somente o simples amante de Lúcia; considerava-se um irmão, um pai.

Elias, completamente desalentado, abandonou de todo os seus serviços, e estava como que de braços cruzados em frente de seu destino inexorável a contemplar-lhe a sinistra catadura, sem ousar lutar contra ele e esperando que o esmagasse.

Elias tinha-se estabelecido no Comércio de baixo, chamado de Joaquim Antônio, que fica rio abaixo, a perto de uma légua da povoação principal. Há dois dias, desamparado da esperança, tinha abandonado o trabalho, e não fazia mais do que cismar na sua triste sorte, entregue às mais pungentes angústias e à mais cruel perplexidade.

Na tarde do segundo dia, estando à janela da casinha que habitava, envolto em suas cismas ordinárias, um rapaz entregou-lhe uma carta. Abriu — a imediatamente; era de Lúcia e dizia assim:

“Meu querido Elias. A sorte começa a conspirar de novo contra nós. Eu pensava que, caindo em pobreza, ninguém mais poria os olhos em mim, e que poderia amar-te tranqüila e livremente, sem que a turba dos pretendentes, que outrora me importunava, viesse mais perturbar a nossa felicidade, por essa doce compensação que me trazia. Enganava-me, ai de mim! ... Um de meus antigos pretendentes reaparece, e solicita com mil empenhos a minha mão. É um moço não muito rico, mas negociante bem principiado, e dotado, segundo dizem todos, de excelentes qualidades. Meu pai insta comigo com todas as forças para que me decida quanto antes. Tenho esgotado sem resultado algum todas as minhas escusas, e já não sei de que meio lançar mão para me defender. Infelizmente este não é um aventureiro desconhecido, um moedeiro falso, que de um instante para outro pode desaparecer entre as grades de uma cadeia. É do país, e geralmente conhecido e estimado por suas boas qualidades, e promete mil arranjos a meu pai. Não preciso dizer-te mais, meu querido Elias, podes ajuizar em que cruéis apuros me vejo de novo enleada. Nossa pobreza aumenta de dia a dia, e eu quase enlouqueço pensando nestas coisas. Aparece, Elias; só a tua presença me poderá inspirar resolução e coragem para arredar de nossa cabeça mais esta desgraça! Vem; eu te espero com ansiedade. Adeus! ... ”

Acabada esta leitura, Elias entrou em acessos de furor; percorrendo a passos largos e precipitados a pequena sala em que estava, soltava bramidos de desespero, e chorava lágrimas de fogo, e batendo com a cabeça pelas paredes, arrancando os cabelos, vomitava blasfêmias e imprecações horríveis.

— Pois bem! bradava ele, já que o céu me não favorece, já não recompensa o trabalho honesto, condena a virtude às torturas da miséria, e só enriquece os ladrões, tomarei duas pistolas, irei me postar aí em qualquer ponto da estrada, e tomarei à força aos ladrões o que o céu desapiedado nega a um anjo. Que importa! ... estou certo que em cada negociante que matar mandarei para o inferno a alma de um ladrão, e é lá o seu lugar. É um crime! ? não... pelo menos a consciência não me remorde... Não serei mais do que o agente da justiça do céu sobre a terra, já que nela não há nem sombra de justiça. Infames! ... não contentes de enriquecerem-se à custa do suor e das lágrimas dos pobres, ainda querem lhes roubar a felicidade, e julgam-se com direito a isso, porque sabem absorver o fruto do trabalho dos outros! Oh! por Deus, ou pelo diabo, que não há de ser assim!... Este mundo! ... este mundo é o inferno dos bons e o paraíso dos malvados... E portanto o remédio é ou livrar-se dele para sempre, ou alistar-me no número dos malvados... Mas... que estou eu a dizer!... eu endoideço!... Lúcia! minha Lúcia! é pois verdade que devo perder-te!... perder-te para sempre? ! ...

Este estado de exaltação, que quase tocava ao delírio, durou por largo tempo, até que veio a fadiga e a prostração. Por fim atirou-se na cama que tinha ali mesmo na pequena sala; já a noite ia adiantada, e graças ao torpor do cansaço dormiu algumas horas. Com esse repouso acalmou-se um pouco a irritação de seu espírito. Quando acordou, já os galos cantavam. Levantou-se, abriu a janela para refrescar a cabeça abraseada ao sopro das brisas da madrugada. Ainda não era dia. Debruçou-se sobre o peitoril e depois de estar a cismar largo tempo com a cabeça embebida entre as mãos, murmurou consigo:

— Está decidido! ... minha vida tem de ser sempre uma série de provações e martírio. É essa a vontade do céu, e é escusado lutar contra o destino. Portanto ou devo me desfazer dela desde já, ou resignar-me à minha sorte. O meu dever de cristão é curvar-me e aceitar cheio de resignação o cálix da amargura. Lúcia, a sublime Lúcia, já uma vez me deu o exemplo. Ela ia resoluta e corajosa sacrificar a sua felicidade ao bem — estar de seu pai e de sua irmã. Agora o céu me impõe igual sacrifício; saibamos imita-la. Esquece-la, deixar de amá-la, ah! não; isso não cabe no possível. Mas fugirei; irei morrer longe dela, ralado de desgosto e de saudade. Se o céu não me permite possuí-la, saiba eu ao menos ser digno dela.

Elias tinha tomado uma resolução santa e sublime, digna de seu nobre coração. Ia retirar todas as promessas, protestos e juramentos que fizera a Lúcia, ia renunciar a todas as suas esperanças e imolar seu amor e sua felicidade ao bem — estar e ao futuro da família de Lúcia. O sacrifício era duro, mas a nobreza e magnanimidade daquela ação o exaltava aos olhos da própria consciência, e dava-lhe coragem bastante para leva-la a efeito. Iria ele mesmo em pessoa anunciar à sua amada a heróica resolução que tomara? ... nos primeiros momentos foi esse o seu pensamento; iria comunicar-lhe aquele desígnio que, estava certo, lhe fora inspirado pelo céu, e que julgava de seu rigoroso dever levar a efeito. Se ela fraqueasse, se recuasse diante da enormidade do sacrifício, embora! ele não desistiria do seu propósito, lhe faria ver que seria uma ação indigna, um crime da parte dele estar servindo de eterno embaraço ao sossego e felicidade de uma família a quem ele, pobre e desprotegido da fortuna, não podia servir de auxílio algum. Lembrar-lhe — ia que há bem pouco tempo ela, de seu próprio moto, se havia votado a um sacrifício semelhante, porque o julgava de seu dever, e que esse dever reaparecia agora, talvez ainda com mais forte razão; enfim procuraria por todos os modos vigorar-lhe o coração, e com suas palavras e seu exemplo não lhe custaria inspirar à nobre e virtuosa alma de sua amante a necessária coragem e resignação.

Mas Elias, depois de refletir melhor, teve medo de dar este passo e desconfiou da força de seu próprio coração. Julgou que por meio de uma carta conseguiria o mesmo resultado, evitando uma cena dilacerante, a que nem ele nem talvez ela pudessem resistir. Pegou na pena e escreveu a Lúcia a seguinte carta:

“Querida Lúcia: O destino me persegue, o céu me abandona, e eu nunca poderei ser mais que um esforço perene para a tua felicidade e de tua família. O céu votou-me a um perpétuo martírio; forçoso me é aceita-lo e resignar-me, porque é loucura querer lutar contra a onipotência do destino. O mesmo sacrifício, a que não há muito tempo te curvaste em virtude de um dever santo, hoje de novo nos é imposto a nós ambos pelo nosso inexorável destino. Resignemo — nos, minha querida, já que é essa a vontade do céu, e pede a Deus que nos inspire a resolução e coragem necessária para não desfalecermos no cumprimento deste doloroso dever. Cumpre — nos renunciar para sempre a este amor tão puro e tão ardente que era o sonho dourado do nosso porvir, e dizer eterno adeus à esperança e à felicidade. Embora o coração se nos rasgue entre as garras da angústia, a consciência estará pura e serena; e se nos não é possível ser unidos neste mundo pelo amor, ao menos procuraremos ser dignos um do outro pela virtude. Não creias que com esta triste separação vão quebrar-se os protestos e juramentos santos que proferimos nos nossos dias de esperança; não, porque nossas almas nunca se separarão: e sempre se marão, porque o amor é uma chama que o sopro do destino não pode apagar. E, se acaso estão rotos os juramentos de nosso amor, foi a mão de Deus que os desatou, impondo — nos um dever mais alto e mais santo. Adeus, Lúcia! ... Deus me é testemunho que, ao romper estes tão suaves laços, rompem-se-me também uma por uma todas as fibras do coração. Adeus; tem coragem para entregar teu destino a quem pode amparar-te. Quanto a mim, vou para bem longe amar-te ainda e sempre, até que a dor e a saudade venham pôr termo a meus tristes dias... Elias. ”

Quando Elias terminou esta carta, escrita com as lágrimas dos olhos e o fel do coração, sua fronte, coberta de palidez cadavérica, apesar do fresco da manhã que girava pela sala, gotejava bagas de suor frio. Dir-se — ia um condenado que lavrava com a própria mão sua sentença de morte.

Elias mesmo quis ser o portador de sua carta até à casa de sua velha enfermeira, onde encarregaria a esta de faze-la chegar às mãos de Lúcia.

O sol que surgia dardejava seus raios horizontais por entre as copas das árvores seculares, restos da antiga floresta, que aqui e acolá projetavam sombras gigantescas pelas ribanceiras do rio, quando Elias montou a cavalo, e dirigiu-se a seu destino, absorto em seus tristes pensamentos, e procurando fortalecer-se na nobre e generosa resolução que acabava de tomar. Estaria pouco mais ou menos no meio do caminho, ladeado de distância em distância de pequenos ranchos, que costeando a margem do ribeirão seguia para o Comércio da Cachoeira, quando em certa altura ouviu uns gemidos abafados que pareciam sair de dentro de uma miserável choupana, quase escondida entre a capoeira, que se avistava a uns cinqüenta passos da estrada, quase à beira do rio. Parou e escutou por alguns instantes; os gemidos continuaram. Não podia haver dúvida; era algum desgraçado que sofria, e morria talvez à míngua e à fome naquele miserável casebre, ou também quem sabe? ali gemia a vítima de algum horroroso atentado, desses que tão comumente se perpetravam na Bagagem, naquela época. Elias não era homem de ânimo a presenciar o sofrimento de quem quer que fosse, sem procurar socorre-lo de qualquer maneira.

Dirigiu-se à choupana, apeou-se e bateu à porta.