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O Garimpeiro/XVI

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Apareceu daí a um instante, na única janelinha que havia na casa, a cara encarquilhada de uma velhinha de aspecto repulsivo e sinistro: seus olhos grandes e redondos, o olhar frouxo mas lôbrego e carregado, o nariz adunco e largo sobreposto às faces engelhadas, cabelo curto e eriçado em forma de topete davam-lhe a aparência de uma verdadeira coruja, aninhada naquele pardieiro. Elias quase teve medo, e se não fosse dia claro teria acreditado na existência de bruxas.

— O que quer, meu senhor? ... bradou, ou antes guinchou a velha com voz esganiçada.

— Desejava ver a pessoa que está aí dentro a gemer. Parece que sofre bastante; talvez eu lhe possa ser útil, e dar alguns alívios.

— Não se aflija, meu patrão: é um pobre velho que está entrevado ali no fundo de uma cama. Há muito tempo que está assim, sem que ninguém possa lhe dar alívio, coitado! ... dali só para a cova. Se quer dar a ele alguma esmola, pode-me entregar, e Deus Nosso Senhor lhe dará o pago...

— mas eu mesmo desejava vê-lo; também entendo alguma coisa de medicina, e talvez lhe possa ensinar algum curativo com que se dê bem...

— mas o médico que trata dele não quer que receba visita nenhuma, nem fale com ninguém; por isso Vmcê. Não repare, eu não lhe posso abrir a porta...

Não tenha cuidado; eu atalharei toda a conversa, e, se for necessário, não lhe darei mesmo uma só palavra. Quero só vê-lo um instante e saio imediatamente.

— Não, senhor; perdão; não pode ser. Ele é muito palrador, e vendo gente começa a tagarelar de modo que nunca mais tem fim; e fica cada vez a pior, a pior; e eu é que o estou agüentando, e isso não me faz conta.

— mas já lhe disse que se ele falar, me retirarei logo, replicou com vivacidade Elias, a quem já começavam a impacientar as negativas da velha, e que mesmo já começava a desconfiar que havia ali algum mistério que a maldita velha estava com medo que ele fosse descobrir. — Em nome do céu, abra essa porta.

— Não, senhor; já lhe disse; não pode ser.

— Ah! senhor! bradou de dentro a voz rouca e alquebrada do enfermo. Quem quer que está aí, pelo amor de Deus, entre cá dentro.

— Está ouvindo? disse Elias, ele me chama; abra essa porta.

— Não, não pode ser; quantas vezes quer que lhe diga?

E depois voltando-se para dentro e abrindo extraordinariamente os enormes olhos, como rã esbordoada, bradou para o enfermo.

— Ah! velhote de uma figa! não pode calar essa boca? ... é assim que pretende sarar? ... parece uma criancinha! ... pois olhe: se continuar assim, não sei se estarei mais para o aturar... se quer conversar com todo o mundo que passa, mando pôr sua cama lá no meio da estrada, e eles que o agüentem.

— Quem está aí na porta entre cá por caridade; não faça caso do que ela está dizendo; por caridade! ... pelas cinco chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo! entre... entre... quanto antes.

— Ai! ai! ai! ... ululou a velha harpia. Bendito Deus! ainda de mais a mais variado do juízo!

— mulher infernal, bradou Elias com força, abre-me já, se não queres que arrebente a porta.

— Arrebentar! como está bonito o moço! tomara ver isso! ... porventura a casa é sua? ... moço, vá andando seu caminho, e não esteja tentando a Deus! já lhe disse que não abro.

E dizendo isto bateu com a janela, e trancou— ª

Elias entendeu que não devia mais esperdiçar palavras com aquela megera. meteu o ombro à franzina porta que estava apenas trancada por uma fraca tramela, e que cedeu logo ao primeiro empurrão.

— misericórdia! guinchou a velha, este homem tem o diabo no corpo! Misericórdia! aqui d’el— rei!

Elias afastou com um empurrão a velha que se apresentara por diante querendo-lhe estorvar a entrada e fazendo uma berraria dos diabos; e foi-se dirigindo rapidamente para a miserável alcova, antes antro, em que jazia o desgraçado velho. Em um girau de pau roliço, desses cujos pés são forquilhas cravadas no chão, naquela espelunca escura e úmida, sobre um imundo colchão de palha, estava estirado um velho caboclo, esquálido e macilento, arquejando convulsivamente e entregue aos mais dolorosos sofrimentos. Espetada à parede, junto à cabeceira, uma negra candeia de ferro lhe dava sobre o rosto bronzeado um lúgubre clarão amarelento.

— Ah! ... és tu, meu pobre Simão! exclamou o moço com um tom de assombro e de angústia inexprimível, apenas fitou os olhos na fisionomia do velho. És tu, meu bom Simão! continuou sentando-se à beira do pobre leito, e tomando entre as suas as mãos do velho camarada. Perdoa-me, meu Simão; sou eu o culpado de aqui jazeres assim à míngua! ...

— Ah! meu patrão! meu patrão! bradou o velho fazendo um esforço supremo para levantar-se e erguendo ao céu os braços descarnados; bendito seja Deus! ...

— Ah! já eram conhecidos! ... rosnou com voz trêmula a velha que se tinha postado à porta da alcova, e com os olhos esbugalhados e torvos contemplava cheia de furor aquela cena. Tanto melhor para mim! ... Olá, meu moço, já que veio tomar conta da casa com tanta sem— cerimônia, fique-se por aí, e arrume-se lá com seu doente, que eu aqui não ponho mais os meus pés.

— Vai-te com Deus ou com o diabo, mulher infernal; nem nunca mais me apareças, que não fazes falta nenhuma.

— Que eu vou, é sem dúvida; Vmcê. Quando veio aqui tentar a gente, já veio de má tenção... mas olhe, meu senhorzinho, que talvez não leve o bocado à boca. Às vezes a gente vai buscar lã, e sai tosquiado.

Elias mal ouviu estas palavras, que a velha ao retirar-se ia resmungando entre as queixadas.

— Foi Deus, meu amo, disse o velho com voz arquejante, e nos olhos já quase embaciados pelas sombras da morte divisava-se um lampejo de alegria— foi Deus, que o trouxe aqui agora... Eu ia morrer com o coração tão triste... ah! esta velha! ... esta velha é o diabo que me entrou pela casa. Deus me perdoe! ...

— Não te embaraces com ela, Simão; já lá se foi...

— Não creia, patrão, há de andar por aí rondando para nos escutar. Vá ver primeiro, patrão, tenha paciência; e volte depressa. Tenho muito que lhe contar, e não sei se a morte me dará tempo.

Elias, cheio de curiosidade e assombro, saiu sutilmente da alcova e foi rodear a cabana. A velha estava de feito do lado de fora com o ouvido colado à parede do quarto, onde se achava o moribundo. Apenas porém pressentiu Elias, foi-se retirando e resmungando horríveis pragas.

— mau fim tenhas tu, velho feiticeiro, e a teu louco patrão, rosnava a velha. É esse o pago que me dás de te ter agüentado até aqui com toda a paciência! ...

— Cala-te, velha bruxa! ... se te encontrar aqui mais a espreitar e escutar, atiro-te com um pau a vontade de voltar mais cá.

A velha amedrontada com a ameaça de Elias que há pouco tivera razão para crer que não ficaria só em palavras, sem nunca deixar de resmungar pragas e maldições, foi recolher-se à sua casa que ficava a uma centena de passos.

Elias voltou pressuroso ao quarto do enfermo.

— Agora podes falar, Simão, disse sentando-se à beirada do girau. Ninguém nos ouve; estamos completamente sós... mas não... espera. Vou ver os meios de procurar-te algum socorro... coitado do meu Simão! ... aqui tão desamparado! ... e nas garras desta bruxa maldita! ... vou mandar ver um médico.

— Qual médico, patrão! ... não tome esse trabalho... uma a duas horas de vida é o mais que me resta... se tanto...

— É o que pensas, meu pobre Simão; quem sabe? ... Em todo caso não posso deixar-te morrer assim à míngua de socorro... Dize-me, não haverá por aqui algum vizinho que tenha préstimo a não ser essa velha maldita?

— Oh! patrão, por piedade! não cuide nisso... o tempo é pouco... sinto-me morrer...

— morrer! ... não; tem ânimo, meu Simão... eu vou...

— E quando voltar, me achará morto, e o que é pior ainda, roubado!

— Roubado! ... exclamou Elias com um triste sorriso, pensando que aquilo era já o delírio da agonia.

— Sim, patrão; roubado! ... fique aí sossegado... tenho muito que lhe contar, e há de ser já. Depois faça o que quiser.

A curiosidade de Elias era grande, ansiosa, e o estado do velho camarada era com efeito extremo, e ele podia expirar de um momento para outro. Forçoso foi pois ceder à rogativa do pobre camarada que, com a voz sumida entrecortada de gemidos, a custo pôde fazer a seguinte narração:

— Quando Vmcê. Foi-se embora para o Sincorá, meu único cuidado foi andar esgravatando por todo esse rio abaixo e acima a ver se Deus me ajudava e se eu descobria alguma lavra bem rica para meu patrão. Meu patrão velho, coitado, Deus o tenha em sua glória! ... quando ele morreu, deixou Vmcê. Pequenino a meu cuidado. Como é que eu havia de morrer sossegado se deixasse Vmcê. Pobre e desamparado neste mundo! ... Para mim, pobre velho cansado e sozinho no mundo, o que eu quero fazer com diamante? ... era para Vmcê. Com o almocafre no ombro e a bateia na mão andei provando as formações por toda essa beira de rio. Perdi muito tempo, sem achar... mas, Deus louvado, sempre fazia algum vintém para ir passando o resto da vida. A resto Nossa Senhora do Patrocínio me ouviu... sempre achei o que eu e Vmcê. Andávamos procurando há tanto tempo. Que lavra, patrão! ... é uma lavra de estrondo! ... eu ia morrer com tamanho pesar, se não lhe pudesse contar! ... mas Deus foi de misericórdia... agora morro sossegado...

Elias ouvia atônito aquelas palavras do velho camarada e não ousava dar-lhes crédito. Eram seguramente delírios da imaginação de um moribundo, e em sua incredulidade quase se envergonhava de toma-las ao sério.

— Pobre Simão! ... refletiu consigo, a razão já o vai abandonando com a vida! Não podia conceber que à cabeceira de um miserável moribundo a fortuna e a felicidade o esperassem, como por vezes o infortúnio costumava-se ocultar entre as rosas de um festim para nos desfechar um golpe fatal e imprevisto. Todavia não pôde deixar de interromper o velho, e dirigir-lhe com ávida curiosidade esta pergunta:

— Uma lavra! ... tu deliras, meu pobre Simão! ... onde está ela? ...

— Eu já lhe conto... ah! se Vmcê. Não aparecesse tão a tempo! ... Vmcê. está duvidando? ... aqui está o que lhe há de fazer acabar de crer... é o diamante, que eu já tinha tirado... isto é seu... se Vmcê. Não aparecesse, tudo isto ia parar nas mãos daquela malvada mulher, Deus me perdoe a mim e a ela!

Dizendo isto o velho, com a mão trêmula e convulsa, ia tirando do pescoço um pequeno saquitel de couro preso a um cordão, em forma de bentinho, e o entregou nas mãos de Elias, dizendo-lhe:

— Corte e veja para acabar de crer, e não cuidar que já estou treslendo...

Elias puxou a faca que trazia presa à casa do colete, e cortou com cuidado o saquitel. Caiu-lhe na mão um punhado de grossos e lindos diamantes. Um lampejo de alegria raiou nos olhos empanados do moribundo que murmurou com voz surda:

— É seu; é tudo seu, patrão.

— mas, Simão, disse Elias, não deixas no mundo filho, irmão, parente ou amigo, a quem queiras beneficiar? ... posso eu aceitar isto sem prejuízo de ninguém?

— De ninguém, patrão, de ninguém. Eu sou sozinho no mundo. Se o patrão não aparece tão a tempo, minha herdeira era essa velha desalmada... cruz! ... Deus lhe perdoe...

— E quem é esta velha! ... que pretendia ela? conta-me tudo.

— Eu já lhe conto... ah! ... meu Deus! ... que dor! ... parece-me que vou já morrer! Meu Deus! ... daí-me força por mais um instante para poder acabar...

Elias olhou para o céu e repetiu do fundo d’alma a súplica do moribundo. O velho acalmou-se um pouco e continuou:

— Há mais de um mês que caí entrevado e sem poder mover-me, meti-me neste ranchinho onde sempre tenho morado. Achei-me sozinho e sem ter quem me tratasse, morreria aqui à fome e à míngua sem ninguém saber, se não fosse esta velha, única vizinha que há aqui mais perto e que, dando fé de mim que aqui estava abandonado, ofereceu-se para me tratar. Aceitei agradecido a esmola que me fazia e julguei que vinha mandada por Deus. O povo daqui, vendo-me assim andar arredado e sozinho e sempre a garimpar pelos matos, tinha tomado cisma comigo e andava dizendo que eu era feiticeiro, tinha parte com o diabo, e que neste meu ranchinho eu tinha arrobas de diamante enterrado. A velha que dava ouvido a estas coisas, e tentada pelo demônio, veio um dia dar busca em meu pescoço, enquanto eu estava dormindo... eu logo acordei e bem o percebi; mas ela já tinha descoberto o negócio... Foi a minha perdição... Ninguém mais entrou aqui senão ela e uma sua comadre, tão boa como ela, Deus a perdoe! que faz as suas vezes e me fica de sentinela, quando a outra tem precisão de sair. Assim há mais de um mês estou aqui no fundo desta cama... elas não me deixam sozinho um instante e não vejo outras caras senão as delas... O certo é que cada vez vou a pior e desconfio... mas, ah! patrão, por alma do defunto patrão velho, não vá dizer a ninguém nem faça mal a essas desgraçadas.

— mas desconfias o quê? ... fala, fala, Simão.

— Desconfio que estão me preparando para ir mais depressa. Nestes dias, vendo que estava mesmo às portas da morte, disse a elas que tinha que fazer certas declarações e pedi-lhes que me chamassem um homem para escrever o que eu queria e algumas pessoas para testemunhas... Tempo perdido! ... nunca mais acharam o tal homem. Por fim pedi que me chamassem um padre: o mesmo; nunca acharam padre para me confessar. Eu ia morrer sem confissão nas garras daquelas duas bruxas, Deus me perdoe! que estavam aflitas por me verem morto para me roubarem e deitarem meu corpo aos urubus... Mas nesta hora não devo lembrar-me das ofensas, senão para perdoar. Deus louvado! Vmcê. apareceu, e eu lhes perdôo de todo o coração.

— Ah! em que mãos estavas, meu pobre Simão! ... mas a lavra, Simão? ainda não me disseste onde está a lavra? ...

— Ah! ... sim... a lavra é... ai! meu Deus! ...

Deu um grito, estrebuchou, seus olhos se estalaram, escapou-lhe do peito um soluço rouquenho, e ficou imóvel.

— Simão! Simão! gritou Elias agitando-lhe o braço. Vendo porém que não dava indício algum de vida:

— morto! morto! exclamou com angústia, morto e levando consigo para a sepultura o segredo de minha felicidade!

Elias, tendo— o já por morto, já se dispunha a retirar-se e a ir dar ordens para o enterro de seu velho camarada, quando um fraco gemido veio anunciar-lhe que ele ainda não estava morto. O moribundo tinha feito apenas o primeiro termo, que durou cerca de dez minutos. Elias foi examina-lo, e viu que respirava, e começava a mover os olhos.

— Patrão? patrão! ... que é dele? foram as primeiras palavras que proferiu com voz quase imperceptível. Ah! está aí! ... quase que não enxergo nada... A lavra é lá... rio abaixo... quase uma légua abaixo de Joaquim Antônio... passando três córregos, o terceiro do lado de cá do rio... Há lá uma cruz de cedro que eu mesmo finquei... e cinco pedras grandes em cruz... e...

Não pôde dizer mais... Estas últimas palavras mesmo eram ditas com voz tão sumida, que Elias precisava quase encostar o ouvido à boca do moribundo para poder ouvi-las. De novo estalou os olhos, inteiriçou-se na cama, e exalou um suspiro convulsivo: era o derradeiro.

Elias cerrou-lhe os olhos, e, ajoelhando-se ao pé do mísero leito com piedoso recolhimento, rezou pela alma do finado. Depois deu ao céu fervorosas graças pelo inestimável e quase miraculoso benefício que acabava de fazer-lhe por intermédio de um velho e miserável camarada.

Fechou cuidadosamente as portas e janelas da casa, montou a cavalo e partiu a galope para o Comércio da Cachoeira a dar ordens para que se fizesse um enterro decente a seu fiel e infeliz camarada.