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O Hóspede (Pardal Mallet)/III

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O jantar corria mansa e sossegadamente. D. Augusta, à cabeceira, continuava com os seus modos glaciais, sem dirigir palavra ao genro e ao amigo, descarregando-se de toda a bílis no Valentim, que não sabia servir a mesa, e na cozinheira, que deixara a fumaça entrar nas panelas. E nem queria ouvir explicações a respeito. Azedava-se quando lhe diziam que tudo isto devia ser atribuído à demora inesperada. No final das contas essas desculpas avivavam-lhe mais no pensamento aquilo que ela forcejava exatamente em esquecer. Também que idéia extravagante tivera o genro de trazer para casa um companheiro de colégio que ele não vira mais depois da sua formatura no Pedro II, e que não conhecia absolutamente a família da mulher! Se o Pedro a tivesse ao menos previamente consultado! Mas qual! Ele era incapaz dessas pequenas deferências! Supunha-se dono da casa e queria fazer tudo conforme lhe vinha à cabeça! Por isso também andava a meter os pés pelas mãos e a cometer quanta imprudência havia! Ele porém que tomasse tento porque ela não estava disposta a prestar-se a semelhantes desregramentos!

Nenê observava-a. Assistia àquele monólogo tumultuário de idéias que a mãe estava ali a ruminar no seu silêncio esfingético. E retraía-se absorta em uns tristes pensamentos, previa umas grandes atrapalhações a perturbando-lhe o calmo da existência e vinham-lhe umas sensações más de infelicidades. Ela sentia-se tão boa, tão fácil de contentar no seu egoísmo de sossego! Para que procuravam atormentá-la, lançá-la de repente, assim sem mais nem menos, numa questão entre a mãe e o marido? Decididamente estava muito só no mundo, sem uma grande afeição protetora a acolchoar-lhe as asperezas da vida. Revoltava-se. Se ao menos eles pudessem brigar sem envolvê-la na questão! Não contava porém com semelhante coisa, e a imagem dessa desavença evocava-se por si mesma como encarnação pavorosa do futuro próximo, tornando-a apreensiva, cheia de inquietações. Admirava sobretudo a atitude tranqüila do marido que ainda não percebera a catástrofe iminente e continuava muito alegre a encher os intervalos dos pratos, dando ele sozinho vazão às necessidades da conversa.

Ao Marcondes não passava porém desapercebido este ar de constrangimento com que o tratavam. Sentia-se demais. Arrependia-se de ter aceitado o oferecimento do Pedro. Mas ele tinha insistido tanto, mostrado tão veemente desejo de trazê-lo para ali! E recapitulava a cena inteira. Aqueles grandes e cordiais abraços do primeiro encontro, a conversa apressada e genérica que haviam tido no café, a proposta repentina do amigo exatamente quando ele pedia-lhe informações sobre os hotéis da Corte. No final das contas não devia ter acedido a semelhante coisa; sua obrigação em tal caso era examinar bem as circunstâncias que o rodeavam e não entrar assim às tontas por uma família adentro. Se tivesse refletido, este seria o seu procedimento. Mas eles se haviam resolvido tão às pressas! E intimamente parecia-lhe que o outro era o culpado de tudo isto. Desde o colégio, naqueles bons tempos em que os dois saíam juntinhos das aulas para darem os seus passeios, que ele notara no Pedro um certo estouvamento, umas grandes imprudências e irreflexões, que então lhe pareciam muito engraçadas e de que os dois já se tinham habituado em carregar com as conseqüências.

Agora era novamente preciso que ele se metesse pelo negócio e acalmasse os ânimos enquanto não arranjava um pretexto para se retirar. Tinha muita confiança em si. Lembrava-se das dificuldades quase idênticas em que se achara por vezes e que conseguira sempre resolver com a sua brandura e pacatez - inimigo como era desses choques brutais de temperamentos e de individualidades. Para dar princípio às suas resoluções, para entrar imediatamente nesta campanha à conquista de paz, parece-lhe bem conveniente começar pela criança, por aquele menino louro que estava ali a seu lado, na cadeirinha alta, muito sério, sem dizer uma palavra, com modos de gente. Perguntou-lhe o nome. Chamavam-no Pedroca para não confundi-lo com o pai. E desde então rodeou-o de cuidados e atenções, procurando contentá-lo em todos os desejos, prestando-se às suas pequenas exigências e ouvindo com um sorriso benévolo a narração dos seus brinquedos. De mais encontrava nisto um grande prazer. Achava-o muito engraçadinho a gaguejar umas palavras quase ininteligíveis. Oh! Ele gostava tanto de crianças!

E o Pedro continuava muito alegre e satisfeito, banhando-se naquela atmosfera de limpidez fictícia, completamente alheio a tudo quanto se passava, estranho a esse drama da vida caseira que estava se preparando como uma nuvem borrascosa a subir pelo firmamento acima, todo entregue aos vislumbres de felicidade que pareciam rodeá-lo. Achava tão boa essa vida de mansidões que ia a viver pela existência afora, entre a esposa e o filhinho! Vinham acariciar-lhe as faces umas sensações agradáveis de felicidades. Fora até por um requinte de bazófia, um desejo de mostrar ao amigo essas doçuras em que se reclinava como numa rede macia e perfumada, embalando-se molemente às tépidas virações do amor, que ele insistira tanto para que viesse, para que aceitasse aquela hospedagem oferecida com toda a lhaneza de um velho amigo de colégio. E agora queria fazer ostentação de todas as amenidades que o cercavam, dar-lhe a palpar esse mundo inteiramente novo para o Marcondes, que andara sempre nessa boemia das repúblicas - mundo onde pretendia pilotá-lo com a maestria de um consumado conhecedor.