O Hóspede (Pardal Mallet)/XII

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Ali pelo meio-dia, na grande força do sol a crestar lá fora as folhas das plantas, a sala de jantar tinha umas frescuras úmidas debaixo de ramagem mais semelhadas ainda com o escuro dos enrodamentos. E era bom de se passar aí a sesta, por entre aquelas ostentações de um luxo asseado e burguês. Sempre a essas horas, depois do abatimento determinado pelas ligeiras febres sibaríticas seqüentes ao almoço, mãe e filha gostavam de se reunir nesse aposento tão cômodo e onde se permitem as pequenas sem cerimônias de uma sala comum de vapor. Nessas ocasiões, quando as duas estavam bem sozinhas, sem que o Pedro, retido na repartição, viesse perturbar-lhes os colóquios, elas gostavam de discutir os acontecimentos do dia e de comunicar-se reciprocamente os pensamentos, as frases a saírem-lhe em grandes intervalos durante os quais iam-se distraindo com seus ligeiros trabalhos de agulha, cada qual no seu lugar favorito, tendo entre si todo o comprimento da mesa elástica e a vastidão escura da sala que as obrigavam a levantar um pouco a voz.

E elas lá estavam, d. Augusta na sua cadeira baixinha de costura, Nenê molemente reclinada na de balanço que se movia preguiçosamente, naquele dia mais animadas do que nunca nas suas conversas, quando se fez ouvir a voz argentina do Pedroca, que brincava no jardim, vibrando fortemente o nome de sá Jovina. A moça chegam à janela para gritar com o menino. Já lhe havia proibido por diversas vezes o andar exposto ao sol! Dessa forma ele bem podia apanhar uma febre que o prendesse na cama por muito tempo! E teimava com a criança para que entrasse imediatamente. Mas o rapaz fingia não ouvi-la, encaminhava-se em grandes alegrias para o portão.

D. Augusta também não achava muito bom o procedimento do neto, mas desculpava-o. Eram coisas próprias da idade! Demais, um bocadinho de sol não fazia mal! E voltara-se para o interior da casa, chamando pelo Valentim, mandando que alguém fosse correndo para abrir o portão.

Poucos instantes depois sá Jovina fazia sua entrada na sala de jantar, sempre acompanhada pelo Pedroca, que se lhe segurava à saia, saudada jovialmente por d. Augusta e pela filha que lhe correram ao encontro. Era uma velha de idade indeterminável, muito baixinha, o corpo envergado em forma de s, o torso para trás e a cabeça para adiante a repousar por sobre o peito. Sua pele de um amarelo pergaminhento enrugava-se fortemente nas comissuras dos lábios e dos olhos, formando uns leves de profundos sulcos. Ao rir-se, por sobre as gengivas nuas, mostrava os restos legendários de um dente que existira em outros tempos. Nas têmporas umas mechas desastradas de cabelos brancos saíam de debaixo dos bandós negros, revelando uma cabeleira com que pretendia ocultar a calvície. Mas apesar deste conjunto estrambótico, evocando imagens tétricas de sibilas priscas, circundava-lhe o todo uma atmosfera de bondades e de mansidões, talvez gestada por seus olhos de um escuro russo continuamente a remexerem-se nas órbitas à flor do rosto.

Apreciavam-na muito por causa da sua constante alegria e do modo pachorrento com que ia aturando todas as maçadas e debiques - espécie de retribuição exigida pelos benefícios que lhe prestavam. Em outras épocas, quando ainda podia trabalhar e não tinha a vista estragada, fora uma excelente costureira a andar de casa em casa para aprontar vestidos e até mesmo enxovais. Datavam daí as suas relações e, habituada a este gênero erradio de vida, continuava em sua peregrinação, passando uma semana em um lugar, outra noutro, sem residência fixa, velha boêmia através do mundo ao qual entretanto não se fazia pesada porque, nessas longas visitas, encarregava-se de costuras ligeiras ou pelo menos ocupava-se em remendar alguns trapos velhos. Desejando viver sobre si, sem os grandes vexames dessas hospedagens, tentara ao princípio fazer-se lavadeira quando os seus olhos cansados não se prestaram mais a acompanhar a agulha nas rápidas e complicadas evoluções do pesponto. Mas este serviço tomara-se-lhe muito penoso e vira-se obrigada a largá-lo apesar do imenso prazer que encontrava na vida independente.

Desde então andava assim, de porta em porta, a visitar as suas antigas freguesas, hoje já velhas e mães de filhas casadas. Em toda parte era sempre muito bem recebida, e apesar das caçoadas as vezes um tanto pesadas que lhe dirigiam, gozava de uma certa consideração e respeito por parte de todo esse mundo novo, que carregara ao colo, que acompanhara nas lentas evoluções através da sociedade. Tinha um lugar reservado em todos os enterros, em todos os casamentos e em todos os batizados. Mas o seu verdadeiro trono, onde ela gostava de se mostrar aos seus, era ali à noite, depois do chá, rodeada pelas crianças que lhe pediam histórias Então a boa velha procurava endireitar o corpo e ia, uma a uma, desfiando todas as Mil e Uma Noites peneiradas através de uma corrupção popular. E outras ocasiões entrava pelo seu passado adentro, um passado honesto e chão de virgem macróbia, sem incidentes, que guardara apenas recordações dos tempos agitados de Pedro I e da Regência, que conservara até umas vagas e incertas reminiscências da chegada de d. João VI, naturalmente adquiridas pela tradição.