O Hóspede (Pardal Mallet)/XVIII

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Ao amanhecer do dia seguinte depois de uma noite em que levara a pensar muito sobre o assunto, o Marcondes levantou-se firmemente resolvido a retirar-se imediatamente daquela casa. Não havia mais razão para ficar ali a incomodar os outros, ele mesmo tolhido em seus movimentos, obrigado a sujeitar-se num sistema de vida ao qual não estava habituado! E vestia-se apressadamente, tratando logo de acomodar nas malas, ainda não completamente desarrumadas, os objetos e roupas que pusera da banda de fora. Apenas parecia-lhe um pouco difícil arranjar um pretexto para tão brusca reviravolta no seu modo de pensar. o Pedro se lhe mostrara muito amigo e prestadio. Não valia a pena bangá-lo, dar-lhe inquietações, talvez mesmo determinar urna pequena altercação entre marido e mulher por uma coisa tão insignificante. Arranjaria qualquer justificativa, a primeira que lhe viesse à cabeça, e faria a mudança sem mais explicações, contando voltar pouco àquela casa da qual entretanto levava Intimamente umas bem gratas recordações.

Lá embaixo receberam-no muito alegre e benignamente. O Pedroca saltara-lhe ao colo, querendo repetir uma história muito engraçada que sá Jovina acabava de contar. D. Augusta, amenizada, sem os cerimoniosos e reservados da véspera, sorria-lhe benevolamente, informando-se de como tinha passado a noite. Nenê mostrava-lhe uma fisionomia prazenteira, admirada de vê-lo tão madrugador, ainda fresca e rosada do banho de chuva que vinha de tomar, os longos e bastos cabelos a caírem-lhe por sobre as costas ao longo do torso embrulhado numa toalha branca. E o Marcondes atrapalhava-se. Não podia compreender tanta hipocrisia nem sabia como explicar estas aparências de jovialidade com que o recebiam, a ele que andava a incomodá-las, como elas próprias o diziam. Punha-se a refletir sobre o caso. Talvez houvessem mudado de opinião, modificado as impressões do primeiro momento! Em todo caso ele era quem não ficava mais ali! Estava resolvido a mudar-se e havia de falar com o Pedro a este respeito!

Durante o almoço, na boa e franca intimidade das refeições, teve por diversas vezes vontade de encetar o negócio. Para animar-se a si mesmo tentara persuadir-seode que era conveniente preparar o terreno para não esbarrar de encontro aos sobressaltos de uma bruscaria. Mas havia alguma coisa a atrapalhá-lo que não lhe deixava liberdade de expressão. Não sabia bem compreender o que se passava em si! O certo era porém que se sentia já arrependido do pouco que deixara entrever. Agora aquela vida lhe parecia tão boa e tão calma! Comparava-a com os imprevistos e dificultosos da existência em hotel. E vinham-lhe umas vontades de ficar. No final das contas não lhe tinham dito nada, não sentia mais a envolvê-lo esse ar constrangido do primeiro dia, cercavam-no de carinho e de afetos, tratavam-no já como filho da casa e, se a Marocas não lhe tivesse revelado a conversa de Nenê com a mãe, ele se teria deixado ficar ali, compartilhando dessa vida calma e honesta, enquanto não arranjava a promotoria e não seguia para Santa Catarina! E andava assim, nessas irresoluções, já não sabendo mais o que devia fazer, preso e fascinado por umas perspectivas de existência naquele canto alegre de umas felicidades mansas.

No bonde, porém, quando se havia quebrado todo o encanto que o circundava e ele sentia-se mais livre, sem o peso daquela sala de madeiras a se lhe impor, voltaram-lhe as primeiras resoluções. E pôs-se a meditar sobre a forma pela qual havia de dizer ao amigo o súbito desenlace que pretendia dar àquela situação. Seu espírito alternava entre as branduras e as bruscarias, Principalmente importunava-o a escolha do pretexto. Enfim, entrou na matéria, amontoando considerações sobre a vida do solteiro, a falta de hábito em que estava da existência familiar. As palavras vinham-lhe a flux dos lábios desordenadamente, contradizendo-se, numa dificultosa elaboração lógica à qual ele não sabia como pôr o remate desejado. o Pedro escutava-o, meio atônito, adivinhando algum pensamento oculto, forcejando por saber aonde o outro queria chegar. E o Marcondes continuava no mesmo desalinhavado de palavras, até que por uma transição brusca formulou francamente a sua resolução, declarando que de tarde pretendia mudar-se para um hotel do Rio Comprido.

Então o Pedro zangou-se. Insistia para que o amigo lhe explicasse categoricamente a razão de ser de semelhantes idéias. Perguntava-lhe se tinha encontrado falta de alguma coisa, ou se alguém o havia molestado. E, como o Marcondes declarasse que não tinha motivo de queixa de quem quer que fosse e principiasse a entoar louvores à gente da casa, o outro disse-lhe que se deixasse de tolices, que continuasse a residir com e enquanto não arranjasse a promessa da promotoria e que não andasse a importuná-lo com semelhantes escrúpulos. O rapaz ouvia-o calado, sem fazer-lhe mais objeções, já arrependido do que dissera, intimamente gostando da insistência do amigo que lhe dava ensejos de continuar naquela existência apenas entrevista e lhe parecia tão boa. Acabou aceitando novamente os oferecimentos do Pedro, dizendo-lhe que não ficasse zangado com aquilo, que ele tivera como obrigação sua tentar uma saída desde que vira as dificuldades que ia encontrar para obter a promotoria. Mas já que o amigo insistia e queria-o junto a si, ele não se fazia de orgulhoso e guardaria sempre umas gratas recordações das bondades com que o estavam tratando. Mais tarde, se o Pedro quisesse experimentar-lhe o reconhecimento, era só dar-lhe ordens.