O Homem/XV
De todos os seus sonhos este foi até aí o que a deixou mais vencida pela fadiga e pela vergonha. Duas horas depois de acordada, ainda permanecia na cama, a cismar, sem ânimo de se erguer. Aquele incidente da ilha, em que ela se via completamente nua, punha-lhe o espírito em dura revolta, contra a qual a desgraçada antejulgava que não encontraria consolações.
— Mas, pensava, que mal fizera a Deus para ser castigada daquela forma?.... Pois não bastavam já os seus padecimentos físicos, os seus desgostos e os seus tédios?... Porque e para que ia então o Criador descobrir com tamanha falta de coração aquele novo modo de tortura?... Atacá-la no que ela mais encarecia — atacá-la no seu pudor...! Não! antes morrer; antes mil vezes, do que suportar por mais tempo semelhante desvario dos sentidos!
Felizmente veio a reação; deliberou-se a abrir luta contra o sonho. E, para dar logo começo à campanha, resolveu passar a seguinte noite acordada.
— Minh'ama quer o seu chocolate? perguntou Justina pela terceira vez.
Magdá levantou-se afinal.
— Você porque se enfrasca deste modo em perfumes, sabendo que isso me faz mal?
— Eu, minha senhora?
— Então quem há de ser?
— Juro por esta luz que não pus nenhum cheiro no corpo.
— Veja então se há algum frasco de perfumaria por aí desarrolhado! Está rescendendo, não sente?
— Não, minh'ama, não sinto, respondeu a criada a fungar forte, como um animal que procura descobrir alguma coisa pelo faro. — Não sinto nada!...
— Que olfato tem você, benza-a Deus! Estou sufocada! Abra o diabo dessa porta, deixe entrar o ar!
Justina apressou-se a cumprir a ordem da senhora, mas o maldito cheiro continuava. E o mais estranho é que era aquele mesmo perfume agudo da ilha do Segredo; aquele perfume ativo que lhe penetrava no fundo do cérebro como agulhas de gelo.
— Veja se deixaram por aí algumas flores!... Sinto cheiro de magnólia!
Justina percorreu a alcova e os aposentos imediatos, fariscando ruidosamente.
Nada! Não encontrava nada de flores!
— Vá então lá em baixo saber o que é isto! Parece que estou numa fábrica de perfumarias!
A, criada afastou-se, e Magdá ficou a estalar a língua contra o céu da boca. Era ainda o terrível gosto de sangue que não a deixava.
— Oh! Quanta coisa desagradável, meu Deus!
Lembrou-se então da extravagante passagem da ilha, em que ela sugara o sangue do trabalhador. Vieram-lhe engulhos, muita tosse e acabou vomitando o chocolate que tomara nesse instante.
— É o mesmo cheiro, não há dúvida, pensou depois, indo à janela; o mesmo cheiro que eu sentia no sonho!
E respirava alto, com insistência. — Sim, sim, é o mesmo perfume! Ora esta! Parece que tudo tresandava a magnólia! Será muito bonito se eu, de agora em diante, não puder livrar-me, nem acordada, de semelhante perseguição!...
Todo esse dia, entretanto, se passou assim: o cheiro de magnólia e o gosto de sangue não a deixaram um segundo. Nunca estivera tão nervosa, tão excitada; achando em tudo um pretexto para implicar, chorando sem causa aparente, irrequieta, a passarinhar pela casa, com um desassossêgo de ave quando está para fazer o ninho. O Dir. Lobão conversou com o Conselheiro e os olhos deste se encheram dágua.
— Acha então que ela está pior, Doutor?... Acha que está muito mal?.,..
— Está entrando já no terceiro período da moléstia. Esse desassossêgo que sobreveio agora é um terrível sintoma... Mas não desanime! não desanime!
E, para o consolar, afiançou que Magdá era o caso mais bonito de histeria observado por ele.
Á noite a enferma pediu café.
— Café?
Houve um espanto. Não lho quiseram dar; afinal, depois de grande disputa, consentiram em ceder-lhe meia chávena, muito fraco.
— Não, não, não! Ela não queria assim! queria um bulezinho cheio e de café forte.
— Mas, minha filha, lembra-te do estado melindroso em que tens os nervos! Se o café em grandes doses faz mal a qualquer um, quanto mais a ti.
Magdá chorou, arrepelou-se, arrancou cabelos. O médico, porém, voltando à noite, aconselhou que a deixassem tomar todo o café que lhe apetecesse
— Deixem-na beber à vontade! Pode ser até que isso lhe produza uma reação favorável sobre os nervos! Nada de contrariá-la!
Foi levada uma cafeteira para o quarto de Magdá. Esta assentou-se à mesinha defronte do candieiro e começou a ler, depois de tomar uma chávena de café, que se lhe conservou no estômago.
— Você, ordenou à criada, não durma, hein? Nem me deixe dormir também, compreende?
— Como, minh'alma ? Pois vosmecê não tenciona dormir tão cedo?...
— Tenciono passar a noite em claro.
— Jesus! Mas isso lhe há de fazer muito mal! Ora como não?
— Vá buscar-me aqueles jornais ilustrados e aqueles álbuns de desenho, que estão lá na sala, e ponha-me tudo aí em cima da mesa.
Justina afastou-se trejeitando esgares de lástima.
Magdá sentia-se agora menos inquieta; fazia-lhe bem o empenho com que ela queria pregar um logro ao sonho, faltar à entrevista com o moço da pedreira. Sentia gosto em enganar alguém. Era uma preocupação e por conseguinte um divertimento. Ardia de impaciência por ver passada aquela noite; afigurava-se-lhe que, depois disso, poderia dormir à vontade, tranqüilamente, sem cair nunca mais nas garras do seu maldito perseguidor.
A Justina é que daí a pouco cabeceava, sem conseguir abrir olhos. Magdá obrigou-a a tomar uma xícara de café, o que não impediu que a boa mulher uma hora depois ressonasse, ali mesmo, de pé, encostada à ombreira da porta, com os braços cruzados.
A senhora sacudiu-a, frenética.
— Eu não lhe disse, criatura, para ficar acordada?
A pobre respondeu com bocejos.
— Vamos! Ponha-se esperta! Tome outra xícara de café!
A senhora que a desculpasse; havia, porém, um 'rôr de tempo que ela não dormia direito e puxava muito pelo corpo durante o dia...
— E porque você não tem dormido direito?
— Ora! porque é necessário estar sempre meio acordada, para ver quando minh'ama precisa de alguma coisa... Como não?
— Eu então não tenho o sono tranqüilo?
— Tranqüilo? Quem lho dera! Vosmecê durante o sono tem arrepios de vez em quando; doutras parece que está ardendo em calor; que sente comichões pelo corpo: coça-se, remexe-se, abraça-se e esfrega-se nos travesseiros; geme, suspira; tão depressa dá p'ra chorar, como p'ra rir; ora se encolhe toda, ora atira com as pernas e com os braços e quer lançar-se fora da cama! Pois então? E' preciso que a gente a endireite; que lhe dê o remédio do frasco maior ou uma pouca dágua com flor de laranja... De quantas e quantas feitas eu não tenho deitado a vosmecê no meu colo, para sossegá-la?...
— E não falo quando durmo?
— Ás vezes, como não? e muito! mas não se entende patavina; fala entre dentes. Ainda ontem, foi muito boa! vosmecê, lá pela volta das duas da madrugada, deu p'ra embirrar por tal modo com a roupa, que eu tive de sacar-lhe fora a camisa.
— Pois você me despiu, mulher?
— E tornei a vestir depois, sim senhora.
— E eu não acordei! ...
— Ah! vosmecê agora tem um sono muito ferrado. Quer parecer que acorda, mas qual! está dormindo que é um gosto! abre os olhos, isso abre; passa a mão pela testa; se lhe dou a água — bebe-a; às vezes levanta-se, quer andar, eu não deixo. Uma ocasião, quando dei fé, já minh'ama se tinha safado da cama e estava a procurar não sei o que naquele canto do quarto... Por sinal que me pregou um tal 'susto, credo!
Magdá ficou a cismar com as palavras da criada, estalando sempre a língua contra o céu da boca. Uma idéia extravagante atravessava-lhe o espírito nesse momento: "E quem sabia lá se aquela mulher não lhe tinha dado sangue a beber?..."
Fitou Justina, e com tal insistência, que a rapariga perguntou:
— Sente alguma coisa, minh'ama?...
— Deixe ver o seu braço.
Justina estendeu o braço, intrigada.
Magdá examinou-o todo, minuciosamente, mas não descobriu nele a menor escoriação.
— Porque vosmecê me revista o braço? ...
— Cale-se!
E, depois de fitá-la de novo: — O que é que você me tem dado a beber durante o sono? Mas não minta!
— Ó minha senhora, eu já disse, como não? A água pura ou com açúcar e flor de laranja, ou quando não, aquele remédio de frasco maior, que o Doutor mandou dar, quando vosmecê acordasse à noite com os seus incômodos.
Magdá pediu o tal frasco para ver e, apanhando uma gota do remédio com a língua, ficou a tomar-lhe o sabor.
Qual! Não era dali que vinha o gosto de sangue!
Bateu meia noite no relógio da sala de jantar.
— Olhe, minh'ama, meia noite!
— Já sei! Vá lá abaixo buscar um pouco de presunto com pão.
— Que diz, minh'ama ? Não caia nessa! Vosmecê tem visto o mal que lhe faz a comida fora d'horas...
— Não me aborreça! Veja o que lhe disse!
Justina saiu do quarto, resmungando, e a senhora logo que se achou sozinha, teve um tremor de medo. A criada felizmente não se demorou muito.
— Cá está, minh'ama. Vosmecê quer vinho?
— Não.
~ Magdá gulosou algumas febras de presunto, bebeu mais café e atirou-se aos seus jornais ilustrados, disposta a não ceder um passo na resolução tomada.
— Porque vosmecê não se vai deitar, minh'ama? E' melhor! Agasalhe-se! Daqui a pouco está aí a friagem da madrugada! Já passa de uma hora!
A filha do Conselheiro não respondeu e ferrou a vista, com uma fixidez de teima, no desenho que tinha debaixo dos olhos.
— Vosmecê nunca se deitou tão tarde..
— Cale-se, que diabo!
— É que lhe pode fazer mal...
— Pior!
A criada calou-se, bocejou traçando com a mão uma cruz, mais sobre o nariz do que sobre a boca, e daí a nada pediu, quase de olhos fechados, que su'ama então lhe deixasse encostar a cabeça um instante. "Ela estava a cair de canceira".
Pois sim, que fosse, mas que ficasse alerta.
"Como não?" Mal porém. encostou a cabeça, dormiu logo a sono solto.
No entanto, a senhora parecia bem entretida com as suas ilustrações. Correu meia hora — e ela sempre a ver os desenhos e a ler. De repente teve uma contração nervosa, muito rápida.
— Mau!... disse, e procurou segurar melhor a atenção no que estava lendo.
Mas com pouco um calefrio empolgou-lhe os ombros e foi lhe descendo pelo dorso, até fazer vibrar-lhe o corpo inteiro
— Justina! Justina!
A criada não se abalou, e o silêncio e a solidão da noite começaram prontamente a fazer das suas. A histérica estremeceu de novo, olhando para os lados, aterrada, sem poder mais articular palavra. Um pânico apoderou-se dela, pondo-lhe estranha agitação no sangue.
Teve uma idéia — rezar.
Ergueu-se desvairada, com os cabelos em pé, e encaminhou-se para o crucifixo. Nisto ouviu distintamente uma voz dizer ao seu ouvido:
— Magdá!
Voltou-se com um gemido rouco e caiu de joelhos defronte da imagem, toda trêmula e gelada.
Tinha reconhecido a voz do seu amante fantástico. E principiou logo a ver tudo avermelhado como nos sonhos: o que era branco fazia-se cor de rosa; o que era cor de rosa tingia-se de escarlate; o amarelo tomava a cor de laranja e o azul arroxeava-se.
Ela arfava; levou a mão à testa: os dedos voltaram úmidos de suor frio; quis gritar, e não pôde. E o seu corpo escaldava em febre; e suas fontes latejavam. Contudo não tinha perdido ainda de todo a razão e mentalmente suplicava a Deus que a amparasse, que a socorresse naquele horroroso transe:
— Pois não me será dado escapar a esta maldita perseguição?... Ó meu pai misericordioso, que irá me suceder? Que irá me suceder agora?
Mas os objetos difundiam-se já e transformavam-se em torno de seus olhos, que só viam a imagem de Cristo — de braços abertos, e a crescer, a crescer, enchendo a parede.
E, naquela palpitação nervosa, Magdá sentia as palavras borbotarem no seu espírito e derramarem-se pelos seus lábios com a verbosidade e a inspiração de um poeta ébrio.
— Preciso não sonhar! Preciso arrancar aqui de dentro esta dolorosa loucura que me absorve, gota a gota, toda a substância da minha vida!
E, de joelhos, o rosto levantado, as mãos erguidas para o céu, as lágrimas a desfiarem-lhe uma a uma pelas faces, ela acrescentou depois da oração que lhe ensinara a tia Camila: — Jesus, meu amado, meu esposo, acode-me, acode-me depressa, que a fera já aí está comigo! Vem, que ela me farisca e me cerca rosnando! Vem, que lhe ouço o respirar assanhado e já sinto o seu bafo e o cheiro carnal que ela solta de si! Vem, que a maldita me acompanha por toda a parte e me cheira como o cão à cadela! Vem de pressa; não a deixes saciar no meu corpo de virgem os seus apetites lascivos! Não me deixes assim, amado do meu coração, cair tão feiamente em pecado de impureza e luxúria! Não me atires como um pedaço de carne às garras do lobo imundo! Esconde-me à tua sombra; protege-me como o fizeste com a outra Madalena, menos merecedora do que eu, que sou donzela e sempre te amei e servi com a mesma candura! Lembra-te, querido de minh'alma, de que estou enferma e fraca e só tenho força e ânimo para te amar! Vê que não me posso defender só por mim! Ajuda-me! tem pena de quem te quer e adora acima de todas as coisas! Vê como tremo e choro! Se és o pai dos humildes, vale-me agora, salva o meu pudor e não consintas que de hoje em diante a minha virgindade se haja ainda de retrair corrida e envergonhada! Vem e acompanha-me nos meus sonhos, conduze-me pela tua mão, como fazias com as crianças que encontravas perdidas no caminho; se te vir a meu lado não sonharei desatinos e sujidades que me matam de vexame e nojo contra mim própria! Vem ter comigo e exorciza de dentro de mim o demônio que habita minha carne e enche de fogo todas as veias do meu corpo! Não deixes que a luxúria esverdinhe minha alma com a baba do seu veneno! Reabilita-me, para que eu me estime e preze como dantes! Lava-me da cabeça aos pés com a luz da tua divina graça; perfuma-me com os teus aromas celestiais; sopra teu hálito sobre mim, para que não me fique vestígio de terra na pele e nos cabelos; beija minha boca, para lhe apagar o gosto de pecado que a põe amarga e suja; beija meus olhos, para que eles não enxerguem o que não devem ver; beija meus ouvidos, para que eles não escutem o que não devem ouvir; beija-me toda, para que toda eu me purifique e me faça digna do teu amor! Sacode em cima de mim o orvalho do teu manto e as gotas do teu cabelo, para que eu me acalme e abrande; traça com a tua mão pura uma cruz sobre a minha testa, para afastar por uma vez os maus pensamentos, e passeia três voltas em torno do meu corpo para que a fera nunca mais se aproxime de mim! Vem, vem! que ela aí torna e começa a uivar de novo! Acode-me, Senhor, acode-me!
Estremeceu toda num arrepio mortal, escondendo o rosto, sacudida pelos soluços. E, como em resposta às suas súplicas, não descia dos céus nenhum alívio, ela revoltou-se afinal contra Jesus: — Para que então servis? interrogou — Para que então sois Deus, se não baixais em meu socorro, quando eu tanto preciso de amparo e de defesa?! Que é feito então do extremoso amigo das mulheres e das crianças, ao qual me ensinaram a amar desde o berço? que é feito desse ente apaixonado e casto, que tinha dantes consolações para toda a desgraça, e um raio de luz para secar a mais escondida lágrima dos que padeciam? que é feito do sudário cor de lírio em que se enxugava o pranto dos desamparados? que é feito dessas bênçãos de pai, que apaziguavam a terra e confortavam o coração dos pobres? para onde se voltaram aqueles olhos misericordiosos, que dantes enchiam o mundo com o eflúvio da sua ternura? como para sempre se fecharam aquelas entranhas de piedade, aquele peito de amor, onde a mísera humanidade se refugiava, como num templo de ouro e marfim? Se não vierdes imediatamente em meu socorro, acreditarei no que dizem os contrários da vossa igreja, ou que desertastes de vez para os céus, esquecidos de todo das vossas criaturas! Se não vierdes já e já, acreditarei que estais outro e que já não sois aquele mesmo Jesus, terno, humilde, casto, bom, fiel e onipotente! acreditarei que viveis no egoísmo e na indiferença, amarrado ao trono, ébrio de orgulho e vaidade, como qualquer miserável monarca da terra!
E interrogou a imagem com um olhar em que havia súplica e ameaça. Mal soltou logo um rugido surdo, apontando para o crucifixo e balbuciando, cheia de terror: — Não! Já não sois vós quem aí está crucificado! Quem está aí agora é o outro! É ele! É o demônio!
E caiu do bruços no chão, com um grito. E logo em seguida, sem ânimo de erguer a cabeça, transida de medo, sentiu distintamente que o Cristo se agitava na parede, como forcejando para despregar-se da cruz, e que afinal descia, pisava no chão, encaminhava-se para ela e tocava-lhe de leve com a mão no ombro, aproximando a boca, para lhe falar ao ouvido. Magdá sentiu rescender o cheiro da murta.
— Levanta-te, amiga minha, formosa minha, e vem! A mangueira começou a dar as suas primeiras mangas; as flores do caju lançaram já o seu cheiro! Vem, pomba minha: nos segredos do teu quarto mostra-me a tua face; soe a tua voz dentro dos meus ouvidos, porque a tua voz é doce e a tua face graciosa!
A moça ergueu a cabeça.
Ele beijou-a, prosseguindo, com o rosto unido ao dela: — Sim, Magdá, minha irmã, minha esposa, minha amada, teus olhos de tão belos se parecem com os olhos de Maria Santíssima; são ternos, são negros, humildes o majestosos; tuas mãos brancas relembram os lírios da Virgem e os teus dedos distilam a mirra mais preciosa; as faces do teu rosto rescendem como as rosas do amor divino; os teus cabelos excedem no cheiro aos aromas excelentes do seu altar; os teus peitos são brancos como duas ovelhas gêmeas e tão rijos como os jacintos da sua coroa de rainha dos céus; a tua carne é tão macia como o cetim do seu manto e o cheiro dos teus vestidos é como o cheiro do incenso; o sorrir da tua boca é tão lindo como o dela, mas eu gosto mais do teu, por menos divino e etéreo e porque mais me enfeitiça e me abrasa de amor; o teu hálito, minha pomba, é melhor que os perfumes do país de Cedar; tua garganta é de sândalo; tua voz é um aroma; a luz dos teus olhos é um diamante líquido; teus dentes são pérolas de orvalho entre pétalas de rosa. Tu, entre as mulheres da terra, és a mais bonita, a mais sedutora e a mais amável; entre as mulheres tu és como a palmeira entre as outras árvores: não tens igual; és majestosa como os cedros do Líbano e delicada e cheirosa como os eloendros de Jerusalém
Magdá deixava-se embalar pela música sensual e mística destas palavras e o cheiro de murta. E, já sem medos nem sobressaltos, quedava-se imóvel e comovida, como se estivesse conversando em êxtasis com um Cristo só dela, um Cristo destronado e sem orgulhos de Deus, um Cristo seu amante, fraco, de carne, submisso e humano.
E a voz ainda lhe disse, entrando-lhe pelos ouvidos, pela boca, por todos os poros, com o seu aroma agreste e afrodisíaco: — Levanta-te, minha amada, e torna comigo ao nosso ninho de amor! Eu te busquei esta noite a meu lado, busquei-te e não te encontrei! Ergui-me à luz das estrelas e rodeei como um louco a ilha, e não te achei! busquei-te pelas matas, pelos vales e pelo monte, e não te descobri! Chamei-te: "Magdá! Magdá! Magdá!" e não me respondeste! Perguntei às águas do mar, às arvores do campo, aos ventos do espaço, se tinham visto aquela a quem ama minh'alma; e todos eles não souberam dar novas tuas; e eu aqui estou; eu vim buscar-te, e não tornarei sem te levar comigo! Vem! Na tua ausência fiz um leito de madeiras aromáticas e alcatifei-o todo de flores, para te receber; colhi os mais saborosos frutos para a tua chegada, e fermentei a uva mais doce para nos embriagarmos com ela!
— Sim, sim, respondeu afinal Magdá, entregando-se a ele; leva-me! Eu te acompanho de novo para onde bem quiseres! Carrega-me, querido! Preciso ir beber do teu vinho, comer dos teus frutos, amor do teu amor e reviver com o teu sangue! Leva-me! Aqui me tens! Sou tua!