O Homem/XVIII
E entanto, na verdadeira casa de Luiz, na casinha do cortiço, as coisas corriam de modo muito diverso.
Aí é que havia sincero contentamento e legítima felicidade; aproximava-se o dia do casório do rapaz e, tanto a noiva como as duas velhas, resplandeciam de júbilo. Falava-se desde pela manhã até à noite no grande assunto, e discutiam-se já os doces, o carname, o peixe frito e a vinhaça da pagodeira.
Ah! que eles teriam uma festa para se ver, ninguém o punha em dúvida. "Como não? Seriam os primeiros da família que se cassassem à capucha, como aí qualquer ovelha sem pastor! Não! que para isso, graças a Deus, ainda havia quatro vinténs no fundo da arca!" E a velha Custódia, a tia Zefa e a Rosinha saracoteavam pela estalagem, mesmo durante o serviço, a responder para a direita e para a esquerda; a falar com este, a dar trela àquele, sem sossegar um instante, a rir, a papaguear, e sempre com o casamento na boca. Agora cantavam mais durante o trabalho, mas nem por isso labutavam menos. A pequena, muito roliça e esfogueada pelo ferro de engomar, mostrava a toda amiga que a visitava o seu vestido de cambraia branca, o seu véu, a sua grinalda, o seu ramo de cravos artificiais, como as suas camisas e as suas anáguas novas em folha, algumas até com renda Estava provida de tudo; ninguém o podia negar! "Só vestidos de chita, dessa à moda, tinha cinco prontos e fazenda para outros tantos; meias — que fazia pena calçá-las, de tão lindas; e muita peça de morim para lençóis e roupa branca, e belas fronhas bordadas, e mais uma colcha de lã. — Ah! Ah! — verde e amarela, com as armas imperiais no centro, que era uma grandeza!"
A Justina dava de vez em quando uma escapula até lá e voltava entusiasmada, falando pelos cotovelos. No dia em que se esperava a tal cama prometida pelo padrinho do Luiz, ela não parou cinco minutos em casa dos amos; tão depressa a viam aí, como no cortiço.
— Já chegou? Pois ainda não veio? Oh, que demora! — Quem sabe se o homem não manda,... Ele é tão agarrado!
— Não! Há de vir! Ainda não deu meio-dia. Com poucas ela aí está!
E havia no cortiço uma grande impaciência pela chegada da cama. A cama era o grande acontecimento do dia!
— Virá.
— Não virá?
Fizeram-se apostas na estalagem. Rosinha, de instante a instante, largava o ferro e corria à porta, para dar uma vista d'olhos pela rua; de uma das vezes voltou saltando, batendo palmas e a gritar como louca:
— Aí vem ela! Aí vem ela!
E, com efeito, na esquina da rua surgiram seis negros descalços e em mangas de camisa, a cantarem em voz alta, equilibrando na cabeça uma enorme cama do tempo antigo; bastante usada, mas polida de novo. Vinha armada e trazia já o colchão, os lençóis e um par de grandes travesseiros.
Era toda de jacarandá com embutidos de madeira amarela, muito larga; tinha forma de caixão, e o espelho de cabeceira media nunca menos de dez palmos de altura. Dos quatro cantos erguiam-se colunas oitavadas, de uns três metros de comprimento, sustentando uma formidável cúpula de feitio de um chapéu do Chile, a que quadrassem as abas, forrada por dentro e por fora de cetim azul já desbotado. No alto das colunas, e sobressaindo dos ângulos do sobrecéu, aprumavam-se dois pares de respeitáveis maçanetas que pareciam quartinhas da Bahia.
Foi um sucesso em todo o quarteirão a chegada desta velha relíquia dos bons tempos: os vizinhos de Luiz assomaram à janela, atraídos pelo grosseiro canto dos africanos; o cortiço inteiro agitou-se; as lavadeiras abandonaram as tinas e os coradouros e vieram ruidosamente ao portão da estalagem, com os braços nus, saias arrepolhadas no quadril, mostrando pernas sem meias e grossos pés metidos em tamancos; a pequenada descalça acompanhava os carregadores numa grande algazarra; o homem da venda acudiu em camisa de meia, o peito muito cabeludo aparecendo; pretos e pretas, que andavam nas compras do jantar, estacionaram em frente ao cortiço com a cesta no braço; negras minas pararam para olhar, monologando em voz alta, o tabuleiro na cabeça, e na mão um banquinho de pau; algumas traziam ainda um filho escarranchado atrás, nos rins, e encueirado numa toalha, cujas pontas elas amarravam na cintura. A velha Custódia apareceu, levando enfiada nos dedos uma meia, que serzia; a tia Zefa e mais a Rosinha, essas não se puderam conter, e foram logo ao encontro dos carregadores, gritando, ralhando, afastando com berros a molecagem que não se arredava nem à mão de Deus Padre; Luiz, lá do alto da pedreira, onde estava trabalhando a essas horas, mal compreendeu pelo movimento da rua que a sua cama chegava, desgalgou o morro e precipitou-se de carreira para o cortiço, nu da cintura para cima, muito suado e coberto do pó branco da pedra.
Os carregadores chegaram por fim defronte do portão da estalagem, pararam a um só tempo, e, depois, com uma certa manobra especial, volveram para o lado da entrada, continuando sempre a cantar; seguiram enfim, e os curiosos seguiram atrás deles. O cortiço foi invadido por muita gente e então principiou a verdadeira balbúrdia. Destacavam-se os gritos do Luiz, da tia Zefa e da Rosinha.
— Olha como a viras. estupor! Queres quebrar-lhe as maçanetas?
— Força mais para a esquerda, com os diabos!
— Arriba!
— Vira!
— Abaixa!
— Olha a árvore!
Todos se metiam a ajudar, mas o demonhão da cama não entrava, nem mesmo pelos fundos da casa.
— Também não sei p"ra que um espantalho deste
tamanho!
— E o que tem você com isso. Meta-se lã com a sua vida!
— Ali dormem seis casais à larga
— Podia caber-lhe a família toda em riba!
— Arrea!
— Livra!
— Torce!
Já a gaiola de um papagaio, que havia na parede, tinha ido pelos ares, levando o louro preso na corrente, a gritar como se o estivessem matando; um pequeno, filho de uma lavadeira, berrava com um trompásio que apanhara sem saber de quem. "Era bem feito, para não ser intrometido!" O cão da casa, junto com os da vizinhança, protestava energicamente contra a invasão daquele monstro de jacarandá que tudo revolucionava. Fazia-se um catatau infernal; todos aconselhavam; todos queriam mandar; todos falavam ao mesmo tempo; mas, por melhor que gritassem: "Arrea! — Torce! — Levanta! — Agasta! — Agüenta! — Pára!" o monstro não passava do quintal e, mesmo para chegar lá, fora preciso arrancarem-se algumas estacas da cerca que separava a casa do cortiço.
Afinal, um marceneiro do bairro, quieto até aí a presenciar a função com um superior e mudo desdém, disse, torcendo o cavaignac: "que se quisessem, ele desmancharia aquela carangueijola e comprometia-se a armá-la no quarto, tal qual como a entregassem". Surgiram logo mil opiniões; umas contra e outras a favor da proposta, e só depois de calorosa discussão, em que o marceneiro não deu palavra, resolveram desarmar o monstro.
— Ora. que pena! lamentavam.
— Que lástima não entrar armada!
A cama foi levada para o meio do quintal, e o homem do cavaignac, que tinha feito vir já a sua ferramenta, meteu mãos à obra, cercado de gente por todos os lados. Rebentaram de novo, ao redor, os comentários, as chufas e os ditérios.
Luiz, ao lado da noiva, acotovela-a, sorrindo e piscando o olho para o lado dos colchões.
— Ali em cima é que eu te quero pilhar!... considerou, dando-lhe uma pontada no bojo do quadril.
Rosinha conteve o riso e resmungou, abaixando os olhos:
— Este sem vergonha!...
Não obstante, entre todos os curiosos que presenciavam a espetaculosa chegada do leito nupcial do cavoqueiro, o mais impressionado não estava ali, nem na rua, estava sim lá defronte, na casa de S. Ex., espiando por detrás das grades de uma das janelas do sobrado.
Era Magdá.
Estranho abalo punha-lhe nos sentidos aquela escandalosa exibição de cama em pleno ar livre. Vendo-a, como a viu, publicamente armada e feita, patenteando sem o menor escrúpulo o seu largo colchão para dois, com travesseiros duplos, afigurava-se-lhe ter defronte dos olhos um altar que se trazia de longe, para a ementa e religiosa cerimonia do desfloramento de uma virgem. Havia alguma coisa de pagão e bárbaro em tudo aquilo; alguma coisa que a levava a pensar na paradisíaca impudência dos seus sonhados amores; alguma coisa que a levava de rastros, puxada pelos cabelos, para a vermelha sensualidade dos seus delírios.
A cama, apesar de recolhida ao cortiço, não desapareceu para ela, que continuou a vê4a com a imaginação, já muito maior, fantasticamente grande. Depois, viu surgir, deitado de barriga para o ar sobre o colchão, a dormir, completamente nu, como nos primeiros dias da ilha, o Luiz — esse homem com quem afinal todo o seu ser se habituara, nem se com efeito houvera passado com ele as melhores noites da sua vida.
Depois, viu surgir um pequenito ao lado do cavoqueiro; reconheceu o filho, e notou, sobressaltada, que este chorava de susto. Procurou o que metia medo à criança, e descobriu então aos pés da cama, que atingira proporções colossais, três mulheres: uma muito moça, outra de meia idade e a terceira já bastante velha, e todas desesperadas por lhes não ser possível subir até onde estava Luiz. Magdá observava isto do alto, imaginando-se no interior da cúpula do leito, cujo cetim azul a pouco e pouco se estrelava, transformando-se em um céu, onde ela se mantinha suspensa como se tivesse asas.
E notou que a mais moça das três mulheres levantava aflitivamente para ela o olhar afogado em lágrimas, pedindo-lhe por amor de Deus que lhe restituísse o seu noivo.
— Ele não serve para a senhora, exclamava a mísera entre soluços; é um pobre-diabo muito à toa; muito grosseiro, só serve mesmo para uma rapariga de cortiço como eu! Restitua-me o Luiz, senhora! Não lhe tire mais sangue! não o mate, não o mate, por tudo o que V. Ex. mais estima na vida! Se lhe desagrada vê-lo comigo, juro-lhe que nunca estarei com ele; que não nos casaremos; prometo que iremos os dois cada um para seu lado; prometo o que a senhora quiser; tudo, tudo! mas, por amor de Deus, não o mate, não o mate, minha rica senhora!
Magdá riu-se, e a rapariga, vendo que as suas súplicas eram baldadas, atirou-se ao chão, estrangulada pelo pranto. Então a velhinha, ameaçando a filha do Conselheiro com o punho fechado, gritou colérica:
— Malvada, põe já p'ra cá o meu neto ou ruim praga te perseguirá para sempre! Larga o homem que não é teu! Entrega o seu a seu dono, ou que Deus Nosso Senhor te rache a madre com o mal dos lázaros!
E Luiz continuava a dormir. E Magdá sorria, de má.
A outra mulher enxugou os olhos e pegou então de falar, suplicante:
— Senhora, minha senhora, tenha dó de uma pobre mãe!... Dê cá o meu filho, dê cá o meu querido Luiz! Ah, se vosmecê soubesse o que é ser mãe, com certeza não mo negaria... Dê-mo, bem vê que o reclamo de joelhos... Se a sua questão é de beber sangue, aqui estou eu — sou forte, muito mais forte do que ele. .. repare para as minhas cores; veja como tenho as carnes rijas e socadas; comprometo-me a deixar que vosmecê me sugue até à última gota; mas, por quem é, poupe-me o rapaz, que o pobrezinho já não pode mais alimentá-la... está muito fraco, está quase com a pele nos ossos!
Magdá sorriu ainda e Luiz não acordou; o pequenito é que parecia agora muito intimidado por aqueles clamores: calara-se de medo, e, engatinhando, fora até às bordas do colchão, cuja superfície se havia por último coberto de relva As mulheres, logo que deram com ele, começaram a atirar-lhes pedras; estas, porém, não chegavam ao seu destino, porque a cama, sempre a crescer, era já um grande morro plantado de bambús. E, como os lados do leito se transformaram em declives de montanha, as três puseram-se a subir, chamando por Luiz e correndo em direção ao menino; este abriu de novo a chorar, fugindo; e Magdá, percebendo-o em risco, precipitou-se do alto e foi cair ao seu lado, tratando logo de resguardá-lo com o corpo e gritando ao mesmo tempo pelo marido.
~ Mas o lugar em que ela agora se julgava já não era um descampado relvoso; via-se dentro da sua casa fantástica na ilha ao lado do filho e do marido; perfeitamente abrigada e defendida. Lá fora roncava uma tempestade, estralejando no espaço, entre uivos de feras assustadas.
— Que barulho é este? — perguntou Magdá, abraçando-se ao esposo, muito trêmula.
— Não tenhas medo, minha flor, é a tempestade.
— E não ouviste vozes de gente, a gritar?
— Qual! Era o vento que sibilava nos bambus.
— Não, não! Eu ouvi perfeitamente! Entendi tudo o que diziam!
— Sonhavas, com certeza...
— Sim, Deus queira que tenhas razão, porque não podia ser mais horrível o que se passava...
— Que foi ?
— Sonhava, imagina tu, que ias casar com a Rosinha...
— Mas como, se eu sou casado contigo?
— E chegava a cama para o teu noivado, e depois a cama se transformava numa montanha e a tua suposta família vinha disputar-te contra mim e queria matar a pedradas o nosso filho.
— Que loucura! respondeu o esposo com um riso de homem feliz.
— Sim, foi loucura, foi um sonho que felizmente já passou, e vejo-te a meu lado, fiel e amoroso como sempre. Não é verdade que só a mim amas e ao nosso filhinho? Fala, meu querido!
— Tão verdade quanto é mentira o que sonhavas; mas dorme, sim? dorme de novo, que precisas muito de repouso.
Magdá adormeceu com a cabeça no colo do marido imaginário e acordou a valer nos braços de Justina.
— Como se sente, minh'ama?
— Perfeitamente.
E acrescentou, depois de uma pausa: — Aquece um pouco de leite para dar ao Fernandinho, ouviste?
Justina olhou muito séria para a senhora e não se achou com ânimo de dizer nada.
— Ora esta!... pensou. — De que Fernandinho falará ela?...
E saiu do quarto benzendo-se toda.
O Conselheiro, a quem a rapariga foi logo comunicar o disparate da ama, correu a ter com a filha; mas, durante as longas horas cm que conversaram, não lhe apanhou uma só palavra que levasse a desconfiar da sua razão. Magdá, ao contrário, parecia muito senhora das suas faculdades e até menos nervosa que de costume.
— Com certeza era tolice da criada.