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O Livro de Esopo/O vaqueiro que combate por seu senhor

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LXI. [O vaqueiro que combate por seu senhor]

[Fl. 43-r.][C]omta o doutor este emxemplo e diz que hũu caualeyro, familiar d’hũu rrey, conhoçia hũu homem velho que nom auia filhos e era ja muyto velho e desapossado e era muyto rrico, ca ell ssempre fora e era ofiçiall d’el-rrey, que avia curado sseus caualeyros.

Este caualeyro lhe avia grande emveja, porque era rrico[1], e buscava cada dia maneyra em como lhe tomasse o que tijnha; e ffoy-sse a el-rrey e acusou-ho dizemdo que quanto ell tijnha, todo furtara a el-rrey, e que de furto era assy rrico, dizendo d’ell muyto mal, e que era ladram e homem de maa condiçom: e que esto lhe queria prouar em hũu campo com a espada na mãao.

El-rrey fez chamar o velho, e mandou-lhe que sse escusasse ou emtrasse em campo com ell; e sse com ell nom sse estreuesse de combater, que buscasse outrem que sse com ell combatesse em sseu nome.

O caualeyro era muy valemte em armas. E o velho rreçeaua de sse combater com elle, ca o caualeyro era muy mançebo, e elle era muy uelho e muy desapossado: e amdaua rrogando paremte[s e a]mygos[2] a que ell ja fezera muytas boas obras, e nom podia achar quem quy[se]sse[3] tomar a avemtura por ell, ca sse temiam do caualeyro. Este velho sse querelaua e dizia:

— Muytos ajudey ao tempo de sseus mesteres, assy a paremtes como amygos, e ora nom acho paremte nem amyguo! Quamdo[4] / [Fl. 43-v.] a furtuna he comtra o homem, todolos paremtes ffogem d’ell, como ora fazem de mym!

E este velho tijnha hũu sseu pastor que lhe guardaua sseu guaado. E veemdo o pastor sseu ssenhor amdar tam triste, ouue piedade d’ell, e preguntou-lhe[5] porque andaua com tanta tristura. O uelho lhe comtou todo sseu negoçio. O pastor, que ouue d’elle doo, lhe disse:

— Meu ssenhor, eu quero tomar esta avemtura em vosso nome.

O uelho lhe deu muytas graças[6].

Ho outro dia, do combate, mandou este pastor bem armado ao campo a combater-sse com este caualeyro. Quando o caualeyro vyo este vaqueyro, disse que a ell seria gram vergomça sse sse muyto amdasse combatemdo com este vaqueyro, mas que loguo o emtendya de vemçer: e compeçou tirar e dar com ssua espada gramdes golpes no vaqueyro. Ho uaqueyro cobria-sse e leixaua-o bem camssar, e algũas vezes esquyvava os guolpes do caualeyro: esto fazia ell por o leixar bem canssar. O caualeyro maginaua que sse nom podia defemder o uaqueyro, e cada uez o despreçaua mais. O caualeyro tomou hũu ssodairo, e enxugaua ho rrostro, porque ssuava. Ho vaqueyro sse achegou a ell, e deu-lhe hũu golpe no cotouelo do braço derejto[7], que o caualeyro perdeo a força do braço, e arredou-sse por de tras, e posse-sse a sseer; e o uaqueyro <o>[8] outrossy sse asseemtou no campo. Ho uaqueyro /[Fl. 44-r.] disse ao caualeyro que sse leuantasse; ho caualeyro disse que nom queria. O uaqueyro, veendo que o caualeyro nom sse queria leuantar, posse-sse outra vez a sseer no campo.

Aaqueste combate estava pressemte el-rrey com outros muytos barõoes[9] pera o ueer; e veendo-os ambos sseer, toda a gemte compeçou d’escarneçer. Ell-Rey mandou-lhes dizer que sse combatessem. Ho missigeyro disse ao uaqueyro que sse alçasse[10] e sse combatesse ou sse desse por veençudo; ho uaqueyro disse:

— Eu nom me dou por vemçido, mas eu ssom vençedor, ca eu nom quero dar no homem que ssee asseemtado; mas sse o caualeyro sse quiser aleuantar em pee, eu ssom prestes de me combater com elle.

A gemte essarneçia. Ho uaqueyro foy-sse ao caualeyro e disse muyta vilania, porque sse nom queria leuantar; ho caualeyro rrogou ao pastor que lhe perdoasse, e que sse fosse com Deus[11], ca ell sse dana por vençido.

Ho uaqueyro sse partio do canpo com gramde homrra, e com gram prazer; o uelho folgou mujto, e feze-o herdeyro de todos sseus bẽes. E nom foy mays vaqueyro.




Pom o poeta este emxemplo e diz que nhũu[12] nom deue acusar nem fazer mall a outrem ssem rrezom, porque quando comfiam vençer algũa batalha, comfiando mays no sseu poder que no poder de Deus, perde[13], porque ssoo Deus he juiz derejto[14] e defemdedor da rrazom, e poucas vezes póde o homem /[Fl. 44-v.] empeeçer aa rrazom; e muytas vezes acomteçe nas batalhas que os poucos vemçem os[15] muytos quando conbatem com rrazom. Ajnda diz que nas prosperidades nom sse conhoçem[16] os amyguos, mas conhoçem-sse nas averssidades; mas ora em este tempo nom sse acham ssenom pera leuar-lhe o sseu, e do sseu nom dar nada: e taaes eomo estes nom ssom amigos, mas ssom lobos rrabazes. E porem diz Sseneca: Illa est vera amicicia que nom querit ex rrebus amicy nisy sollam benyvolemçiam[17].[18]

Notas

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  1. O sujeito grammatical é o velho.
  2. Onde ponho colchetes o ms. está roto.
  3. No ms. lê-se por engano quysse.
  4. No pé da pagina, entre ornatos, lê-se como reclamo ou chamada «A furtuna», que é a expressão que começa a nova pagina.
  5. Em preguntou a sylaba pre- está em abreviatura, que é igual, por ex., á da primeira syllaba de preçiosa, pressemte etc.; por isso transcrevi a syllaba por pre- e não por per-.
  6. No ms. gracas.
  7. No ms. djto com til sobre j; mas noutros logares, por extenso, derejto.
  8. Está de mais o; esta lettra é a ultima da linha. O escrevente ia de certo escrever outro, mas passou a palavra toda para a linha seguinte, sem riscar o.
  9. No ms. barooes.
  10. No ms. alcasse.
  11. Neste caso e nos seguintes a palavra está abreviada (dṡ); mas, como na fab. XI vem Deus por extenso, transcrevo assim tambem aqui com u, e não com o.
  12. Leia-se nẽhũu ou nehũu.
  13. No ms. lê-se perde, no sing., porque o A. tem na mente a anterior palavra nhũu, e elle exprime a impersonalidade ora com essa palavra, ora com o verbo no plural. Não faltará til, pois a palavra não está no fim da linha, amas perto do começo (só no fim se usa geralmente til). Tudo ficaria corrente, se, em vez de comfiam ou perde, estivesse comfia ou perdem.
  14. Vid. supra, nota… a pag.…
  15. Aqui está riscada a palavra poucos, que tinha sido escrita por engano.
  16. O o de os está esborretado.
  17. Nesta sentença, antes de i e y ha c e não ç. Na palavra benyvolenciam o escriba havia posto ç, mas riscou-o. Vê-se que elle sabia que ç não era lettra latina.
  18. Tradução do latim: A verdadeira amizade é aquela que não quer dos amigos nada a não ser a bondade.