O Matuto/XIII
O S. João do mesmo modo que o natal, é festa essencialmente popular e campestre. Cada uma destas duas festas, com especialidade porém a primeira leva vantagem á da paschoa, que, com ser commemorativa da resurreição do proto-martyr, de quem só nos ficaram exemplos de humildade e singeleza, assumiu formas aristocraticas, e pertence hoje mais ao palacio e á cidade do que á choupana e ao povoado.
O engenho Bujary dava em 23 de junho de 1711 testemunho desta verdade. Não havia casa de lavrador ou de morador em que das 6 para as 7 horas da tarde o prazer não tivesse desabrochado entre risos e folgança.
João da Cunha, com ser de seu natural de poucos amigos, tinha em suas terras muitos lavradores e foreiros. Alguns escolhiam para se fixar, as terras do engenho Bujary, e havia razão para esta preferencia. João da Cunha era rispido, exigente e até poder-se-ha dizer—máo. Mas tinha uma grande qualidade, que em certo modo attenuava os seus grandes defeitos. Bulir com um morador do seu engenho era o mesmo que bulir com elle proprio. Excedia os limites da defesa quando algum delles era offendido. Tomava parte pelo morador em publico, ia pessoalmente aos juizes, para que ordenassem o castigo do delinquente, gastava do seu dinheiro com o pobre e sua familia, emfim, deixava o papel de tyranno e representava ao vivo o de pai ou zeloso protector. Por esta razão particularmente, e porque das magnificas situações que se apontavam em derredor de Goyanna onde os engenhos ainda não eram numerosos, as melhores lhe pertenciam, muitos eram os seus moradores, entre os quaes alguns abastados. Ao numero dos que o eram menos pertencia Victorino.
Na hora em que se discutiam, com a gravidade que vimos, os interesses das familias goyannistas de primeira representação, Lourenço descavalgava à porta de Victorino.
Ahi se estava festejando a noite com todo o enthusiasmo e calor do estylo. As filhas do dono da casa faziam as honras aos hospedes, de que já havia um bom numero no momento em que Lourenço penetrou na salinha.
Lourenço foi entrando, e foram ellas logo oferecendo a elle espigas de milho verde quebradinhas meia hora antes no roçado proximo e assadas na fogueira que illuminava o pateo e a frente da casa.
Joaquina não apareceu sinão mais tarde. Estava na cozinha preparando a deliciosa canjica, que é o primeiro prato das mezas grandes e pequenas do norte nessa noite de tão formosas e prazenteiras tradições.
Não o afamado bolo de S. João, que só nas mezas ricas ou ao menos abastadas costuma apparecer, mas uns bolos de mandioca estavam assando no forno, e por terem sido feitos pelas duas filhas de Victorino mereciam a honra de ser visitados por ellas enquanto não ficavam no tom de apresentar-se.
Entre os hospedes apontavam-se mais de meia duzia, que eram afamados tocadores de viola e guitarra. Alguns delles temperavam já os seus instrumentos para dar principio ao samba.
No pateo, junto da fogueira, uns meninos descalços, de camisas compridas, rodeavam Saturnino, que de quando em quando, cantarolando e pulando de alegria, descarregava um clavinote, em honra do santo folgazão. A estes tiros, soltados no terreiro, respondiam outros, tambem de armas de fogo, com que habitantes dos valles e da beira dos caminhos davam noticias suas. Trocavam assim os visinhos, atravez das distancias, seus comprimentos e as demonstrações do seu innocente prazer.
Aquelle que nunca sahiu da côrte, onde os regozijos publicos se vestem de fitas, sedas, bandeiras, arcarias de sarrafos pintados, illuminações graciosas, fogos de artificio, apresentando o conjuncto vistosas cores, caprichosas fórmas, elegantes perfis, não imagina que sem este apparato deslumbrante, e unicamente com a materia prima que offerece a natureza, possam preparar-se deleitosos momentos para os espiritos mais difficeis de contentar. Não é outra porém a verdade. Illumina-se com uma fogueira o pateo da casa, no qual se vê uma laranjeira florida, uma mangueira copada, um cajueiro ramalhudo. Enche-se o pateo do riso argentino das creanças, do assobio dos moleques, dos sons da viola, das saudosissimas toadas do matuto cantador, das harmonias melancolicas da gaita tocada pelo negro do engenho. Tanto basta para que vôe o tempo com a rapidez do raio e a satisfação das gentes de campo nada tenha que invejar á que trazem aos habitantes das cidades as musicas de pancadaria, os fogos artificiaes, os esplendores agradaveis á vista com que celebram suas alegrias.
Meia hora não se tinha ainda passado depois da chegada de Lourenço á casa de Victorino, quando nadava com os demais em um mar de indescriptivel contentamento. Todos os de casa e até os de fóra, já tinham visto a sombra de suas cabeças ao acender das fogueiras, signal de que não morreriam aquelle anno. Achando-se fóra de duvida este ponto, não havia razão para que a alegria não fosse a primeira sinão a unica expressão de todos os semblantes. Por isso uns gracejavam, outros riam, outros tocavam seus instrumentos, e todos comiam e bebiam no seio da plenissima confiança que caracterizava aquellas épocas como si foram todos membros da mesma familia.
Marianninha porém, no meio do prazer immenso de que cada um tinha o seu quinhão, deixava-se tomar naturalmente de ligeira sombra de tristeza, não obstante dever ser em verdade o seu quinhão de prazer muito mais avultado do que o de qualquer dos convivas.
Não era verdadeiramente uma sombra de tristeza a que annuviava interpoladamente o seu rosto illuminado pela suave pureza da juventude. Era, sim, a asa pardacenta de receio traiçoeiro ou de duvida intima a causa do intermitente eclipse daquelles olhos negros e vivos, daquelle sorriso franco e loução, daquella voz afinada pelas harpas dos sabiás e dos curiós que cantavam ao nascer e ao pôr do sol nas ramalhudas pitombeiras do quintal.
Quando seus olhos se encontravam com os de Lourenço, a nuvem se adelgaçava e desvanecia como fumo, e o brilho da face, antes escasso, parecia agora o de uma constellação. Si o filho de Francisco dirigia a Bernardina as mesmas palavras, os mesmos gracejos que tinham feito reaccender-se no rosto de Marianninha a graça, a vida interrompida quando não eram outros mais languidos e ternos, nova interrupção vinha cortar ahi a ventura recentemente morta e logo renascida. Havia naquelle coração de mulher o ciume antes mesmo do amor; havia o receio de perder a felicidade que aliás não existia sinão no seu desejo e na promessa, que lhe fizera Francisco.
Marianninha de feito enganava-se. Toda ella era affectos por Lourenço; mas este não tinha para ella especiaes attenções.
Mas, fosse engano, illusão ou infantil confiança, esse amor phantastico, ideal, impossivez talvez enchia-lhe o coração de suavissimos fulgores, a alma de todos os perfumes e canticos do paraizo terreal, de que ella tinha uma ligeira noticia por ouvir, quando era menina, a historia do principio do mundo a uma velhota das bandas de Nossa-senhora-do-ó. Quando na manhã seguinte ella foi achar murcho o dente d'alho que enterrara na horta ao accender da fogueira, o que importava prophetico signal de que Lourenço não casaria com ella, os olhos se lhe encheram de lagrimas. Supersticiosa e credula, como é a mulher em geral e a filha do povo em particular, a pobre menina por um triz não deu comsigo em terra, tão grande foi o golpe que atravessou seu coração.
Não aconteceu já o mesmo a Bernardina. Para esta a noite de S. João foi uma grande aurora sem intervallos. Suas aspirações sendo menos altas, a sorte apressou-se em cercal-as de risonhos annuncios. Era de feito modesto o objeto dellas. Este objecto era Saturnino, o qual posto não sentisse por ella grande inclinação, antes se inclinasse mais para Marianninha, se sentia inevitavelmente arrastrado pela gentileza franca, pelos requebros feiticeiros, pelos ditos engraçados, e especialmente pelos agrados da rapariga.
Sempre que Saturnino pensava em sua condição obscura—a condição do cargueiro, do almocreve sem eira, nem beira—não podia ser indifferente aos affectos de sua prima, a qual, quando por outra coisa não fôsse, tinha o direito de aspirar, por seus bellos olhos, a um casamento mais vantajoso. Bernardina porém não encaminhava seus pensamentos para o terreno arido e escabroso das condições sociaes. Tinha amor a seu primo, e este amor apagava, no conceito della, as differenças pessoaes e nivelava a sua condição e a de seu primo. O certo é que o alho que ella plantára ao pé do de sua irmã, amanheceu com o caule de fóra e como pendoado; o nome que ouviu publicar no momento de se accender a fogueira, principiava pela lettra inicial do de Saturnino. E para coroar as suas esperanças, achou o grão de arroz que ella metteu em um dos tres pedaços em que dividira o bocado de feijão por occasião do jantar, não no que tinha escondido na soleira da porta do fundo, não no do meio, mas no da frente. Não havia pois que duvidar. S. João dizia que ella se casaria, não d'ahi a tres ou a dois annos, mas no proprio anno presente.
Seriam oito horas quando Joaquina começou a distribuir pelos hospedes, em tijellinhas de barro, a cangica saborosa.
Marianninha, esquecida do que lhe acontecera por occasião de offerecer a Lourenço a cajuada, adiantou-se para o servir, corada e tremula. Desta vez não houve formal recusa como da outra, Lourenço recebeu a tijella e esvasiou-a em poucos instantes; mas, levantando-se immediatamente, pegou do chapéo, e encaminhando-se para a porta, disse:
— Vou-me embora, minha gente. A festa está muito boa, mas vem muita chuva, e eu tenho ainda de levar minha mãi do engenho para o Cajueiro. Entrei para me recolher da neblina, e ia-me esquecendo da minha obrigação.
— Ó xentes! Disseram do lado umas rapariguinhas das vizinhanças que tinham chegado minutos antes. Já vai tão cedo?
— Que é isso Lourenço? Perguntou Victorino collocando-se em frente do rapaz, como quem queria embargar-lhe o passo. Estás gracejando, ou fallas serio?
— Fallo sério, seu Victorino. Vou-me embora.
— Ora, deixa-te disso. Hoje é noite de S. João.
— Por isso mesmo. Minha mãi está esperando por mim, e não é bonito que eu me deixe ficar aqui a divertir-me quando ella está com os olhos no caminho para me ver chegar.
— E Francisco ainda não voltou da viagem á cidade?
— Até eu sahir para a villa, elle não tinha chegado. Mas prometteu que havia de vir comer comnosco milho assado hoje de noite.
— Pois então, si tens esta certeza, para que semelhante pressa? Assim que elle chegar, virá logo até cá.
— Elle não sabe que eu estou aqui.
— A comadre lhe ha de dizer logo, e elle ha de vir. Fica, rapaz. Precisamos de ti para cantares.
— Não posso, seu Victorino.
As filhas do almocreve, comprehendendo o perigo, em que se achavam, de perder tão boa perna para a folgança, como era Lourenço, espontaneamente uniram seus pedidos ao do pai.
— Fique, Lourenço, fique, disse Bernardina.
— Deixe-se de escusas, acrescentou Marianninha timidamente.
Estas e outras instancias e intervenções determinaram afinal o rapaz a mudar de resolução, e a satisfazer aos rogos geraes.
Tratou-se então de principiar logo o samba. Esta providencia era aconselhada pelo interesse commum. Era o meio de prender os hospedes á casa. Além disso não faltava nada para começar a dança. Uma das primeiras violas do lugar—o Chico Pedro; uma das primeiras vozes—Lourenço; os melhores dansadores—Nicoláo e Roberto, estavam todos alli. Não faltava aguardente, nem milho verde, nem bolos. As raparigas mostravam-se bem dispostas, e algumas até impacientes por verem formar-se a roda. A fogueira dava estalidos festivos. O tempo promettia limpar. O concurso dos convidados engrossava cada vez mais. Enfim, em menos de um quarto de hora bateu o pinho, e rompeu o samba de gosto.
Lourenço, tendo tomado uma pouca da cana, temperou a guélla e soltou sua grande voz ao pé do violeiro, enquanto Bernardina, Mariquinha, as filhas da Bernarda, os sobrinhos do velho Cosme, o Manoel João, o Jacinto da Luzia e muitos outros cahiam na roda por sua vez, tripudiando, fazendo recortes e negaças com o corpo, atirando embigadas na fórma do immemorial estylo.
O canto de Lourenço era monotono como o dos sambistas em geral, mas a lettra variava e tinha as graças naturaes das composições do povo.
Eis algumas das quadras com que o rapaz gratificou a companhia. Muitas dellas ainda hoje em dia tem extensa voga entre os matutos de Pernambuco, aos quaes as ouvi mais de uma vez, jornadeando, entre fins de novembro e principios de dezembro, do Recife para Goyanna nos meus tempos escolares. Ellas pertencem exclusivamente ao povo, e eu aqui as dou com a exactidão com que as recebi da grande musa que as produziu.
Minha mulata, eu tenho
Vontade de te servir;
De dia falta-me o tempo,
De noite quero dormir.
Vou-me embora, vou-me embora
Para minha terra vou;
Si eu aqui não sou querido,
Lá na minha terra sou.
Quando eu me for não choreis,
Que são penas que me dais;
Deixai o chorar p'ra mim,
Que eu me vou, não venho mais.
Mangericão verde-escuro
Tem a folha miudinha;
Só em te ver eu te amo;
Que fôra si fosses minha?
Passei pela tua porta,
Puz a mão na fechadura;
Eu fallei, tu não fallaste,
Coração de pedra dura.
Meu passarinho tão manso,
Das minhas mãos escapou;
Para mais penas me dar,
Pennas nas mãos me deixou.
— Molha a guela, Lourenço, molha a guela com a patrícia—disse neste ponto ao cantador o Ignacio Macambira. — A patrícia é o vinho do pobre—acrescentou Chico—rosado.
E Victorino, despejando aguardente na chicara, que não estava quiéta um só instante em cima da banquinha do canto da sala, apresentou-a a Lourenço que della tomou um trago forte.
Mas como se sentia cansado, poucos versos cantou ainda, e concluiu pelo seguinte:
As convivencias do mundo
São amparo da pobreza;
Emquanto o pobre convive
Não se lembra da riqueza.
— Aqui está o lugar para quem quizer, minha gente, disse ele, sentando-se.
— Déste tão cedo parte de fraco?
— É emquanto tomo folego.
— Quem vem? Quem vem? perguntou o violeiro. Quem vem, venha logo, que o fôgo está esfriando.
— Vai tu, Bernardina—disse Victorino.
— Muito bem, Victorino.
— Logo, logo, Bernardina.
A rapariga foi occupar o lugar deixado por Lourenço.