O Matuto/XIV
A voz de Bernardina era volumosa e limpida. As mulheres invejavam á filha mais velha do foreiro este grande dote que attrahia os homens a ella e lhe dava o prestigio e o renome de uma sereia. Não sendo tão bonita, como a irmã, via entretanto em roda como de se um sem número de enthusiastas e adoradores sempre que exercitava o seu divino privilegio. Por isso, quando a rapariga se encaminhou para o lugar, que Lourenço deixára desoccupado, surdo rumor, indicio da curiosidade, se fez ouvir em todos os cantos do casebre. Seguiu-se-lhe porém logo profundo silencio.
Eis os versos que a matutinha cantou por entre applausos repetidos e phreneticos:Benzinho, quando te fôres,
Escreve-me do caminho;
Si não achares papel,
Nas azas de um passarinho.
— Assim, assim, Bernardina—disseram tres ou quatro convivas, enfeitiçados do desembaraço, já conhecido, da filha do dono da casa.
A rapariga, requebrando-se senhorilmente, proseguiu relanceando os olhos para o namorado, que a esse tempo, já tinha desamparado o terreiro e encostado a um canto o clavinote:
Da bocca faze o tinteiro,
Da lingua penna aparada,
Dos dentes lettra miuda,
Dos olhos carta fechada.
Oh, que rapariga candeia! exclamou o Ignacio Macambira, sem poder conter o enthusiasmo, acrescentado pela canna.
Bernardina proseguiu:
Mangericão verde cheira,
Elle secco cheira mais;
Mulher que se fia em homem
Anda sempre dando ais.
Eu de cá e tu de lá,
Fica um rio de permeio;
Tu de lá dás um suspiro,
Eu de cá suspiro e meio.
Meu coração é de vidro,
Feito de mil travações:
Com qualquer coisa se quebra,
Não atura ingratidões.
Longo tempo levou Bernardina a cantar, ora variando, ora repetindo as letgras ao paladar dos circumstantes.
No mais acceso do samba, quando não só se ouviam os sons das violas, mas tambem o aspero rechinar das costas da faca sobre a botija segundo praticam em ajuntamentos taes; quando os applausos se manifestavam por meio de gritos e gargalhadas estridentes; quando não se dansava só o côco e o bahiano, mas uma mistura de todas as dansas populares com o acrescimo da phantasia de cada um, escaldada pelos vapores espirituosos; quando emfim era tudo algazarra, derriços pouco decentes, demonstrações menos dignas, appareceu um novo conviva no meio da multidão. Era Francisco, o qual, depois da entrega das cartas no engenho, viera em busca do filho, pelo motivo que adiante saberemos.
Não podia o matuto chegar mais opportunamente áquele ponto. No momento exactamente em que elle se fez ver por entre a matutada que enchia a salinha, sentiu Lourenço bater-lhe no hombro pesada mão, que o obrigou a voltar-se a fim de saber quem era que lhe fazia tão estranho cumprimento. O rapaz reconheceu o Tunda-Cumbe.
Em poucas palavras poremos o leitor a par deste sujeito, que tão importante papel desempenhou na Guerra-dos-mascates. E para que o retrato venha com o cunho de severa authenticidade, preencheremos a nossa promessa trasladando aqui as proprias palavras em que um chronista pernambucano o descreveu para conhecimento da posteridade. «Este sujeito era um homem rustico e grosseiro, de idade já maior, que do reino de Portugal tinha ha annos vindo para esta terra, trazendo da sua, por divisa, uma grande cutilada no rosto, ou para que a si não desconhecesse, ou para que por ella fosse conhecido; mas diziam que por usar do officio de parteira: e para disfarçal-a de algum modo, conservava os seus bigodes, ou mustachos, em tempo que ninguem fazia caso delles. Buscando meios de poder accommodar-se fez em Goyanna assento de feitor, por seu salario em casa do sargento-mór Mathias Vidal, a fim de no serviço dirigir os negros; mas estes conspirando-se contra elle em certo dia, lhe deram uma pisa de pancadas que na ethiopica lingua chamam Tunda, e o lugar onde lhe deram chama-se Cumbe. Como se fez o caso publico, por antonomasia lhe chamavam o Tunda-Cumbe, e sendo por este nome de todos conhecido, como quem faz do sambenito gala, quiz do modo como era appellidado, appellidar-se. D'ahi se foi para a freguezia da Varzea, e nella esteve com o mesmo exercicio de feitor do Capitão Lourenço do Cunha Moreno, e depois tornou para Goyanna, e se fez almocreve de peixe, indo, com uma besta, a buscal-o pelas praias, e pelas portas dos moradores a vendel-o: nesta ordem de vida se manteve até que succedeu o levante do Recife» em que tomou a parte, que veremos.
— Então, menino cantador, disse o Tunda-Cumbe a Lourenço, com entono e arrogancia mais de quem aggredia, do qne perguntava—será certo que você está apaixonado pela Bernardina? Pois olhe, quero prevenil-o de uma coisa, para que depois não vá você chamar-se ao engano. Sabe muito bem que todas as semanas, da sexta para o sabbado, ando eu por estas bandas a vender o meu peixe.
— Sei, disse Lourenço, sem se alterar, com os olhos postos, como quem nisso tinha proposito, na funda cicatriz do Tunda-Cumbe não tão occulta pelo espesso bigode, que se não podesse deixar ver. Pois fique sabendo mais que aquilo é tainha que eu tenho contado ha de cahir, mais dia, menos dia, dentro do meu caçuá.
— Você refere-se a Bernardina?
— A ella mesma é que me estou referindo, sim, senhor.
— Pois eu tambem quero dizer-lhe uma coisa. Eu com ella nada tenho. Si canto e gracejo com a rapariga, é porque tenho amizade na casa. Nella não tenho intenção de especie nenhuma, porque, quando a gente não sente inclinação para uma mulher, por muito que ella se derrengue para a gente, não passa tudo isso de divertimento sem maldade. Mas como diz você que já conta com aquella tainha no seu caçuá, a coisa muda de figura.
— Menino—tornou o Tunda-Cumbe, você para ter comigo esta linguagem, preciso fôra primeiro que ou não estivesse no seu juizo, ou não me conhecesse devidamente. Saberá acaso com quem é que está fallando?
— Sei muito bem que estou fallando com seu Manoel Gonçalves Tunda-Cumbe.
— Pois então veja d'ora em diante como anda. Depois não vá dizendo que Santo Antonio o enganou.
— Você é que parece estar enganado comigo, retorquiu-lhe Lourenço, sentindo faiscar-lhe já os olhos. Eu ha muito tempo não faço uma das minhas, mas, em ocasião se offerecendo, não lhe hei de torcer a cara, e bem póde acontecer que, para ficar você melhor assignalado, lhe vá eu deixar no queixo direito o golpe que lhe falta para fazer parelha com o que lhe plantaram no outro queixo, quando você tinha o officio de partejar na santa terrinha.
A violencia desta represalia deixou perplexo, e como espantado por momentos o Tunda-Cumbe, pouco habituado, não obstante a tunda sabida, a ouvir cara á cara tão pezadas reprimendas.
Não conhecia elle o Lourenço sinão de o vêr uma vez por outra almocrevando, e pensou que com a simples ameaça, sendo tão conhecido por seus feitos que, em abono da verdade, davam para um in-folio, levaria logo o terror ao animo do rapaz. O seu desengano foi formal, ou como quem procurava recursos e força dentro em si mesmo, Tunda-Cumbe esteve um instante sem proferir palavra, dizendo porém mil coisas pelos olhos que não arredou de sobre a cara de Lourenço.
— Não embatuque por tão pouco, acrescentou este como em acrescentamento do pouco caso em que revelára ter o seu agressor. O que você disse está dito; não queira agora tornar atraz, que você seria mais desprezivel do que a besta em que costuma vender o seu peixe velho e moído, si recuasse depois desta avançada. Agora, de que eu sou capaz de fazer o que prometti, você a seu tempo ha de ter a prova. E para que fique logo conhecendo que eu não sou de caixas encoiradas e que aonde vou não mando, veja lá como me ponho já a derreter com a filha de seu Victorino, mesmo aqui nos seus bigodes.
Todo este dialogo, posto que faiscante e eriçado de perigos, não foi pressentido por nenhum dos circumstantes a não ser por Francisco. Este mesmo o não teria testemunhado si não fôra a circumstancia especial que diremos. Ao chegar, talvez por fugir de ser convidado a cantar, se collocára por traz de umas esteiras, que tinham sido postas de pé em um dos cantos do casebre. Foi d'ahi que tudo viu e ouviu sem ser visto, occulto pela concurrencia.
Lourenço, si bem o disse melhor fez. Logo que se lhe offereceu occasião, cahiu no meio da roda. Fez o seu sapateado, deu meia duzia de castanholas, atirou uma embigada na rapariga que lhe ficava mais perto, e foi collocar-se ao pé do violeiro, fronteiro á Bernardina que ainda estava deliciando os sambistas com suas graciosas vozes.
Quando Bernardina conheceu que Lourenço tinha ido collocar-se alli para alternar com ella as cantigas, empallideceu, mas sorriu. O desafio lhe era agradavel, posto que fosse mais forte do que ella o seu contendor. De seu natural vaidosa e leviana, nunca recusou demonstrações de apreço a Lourenço, embora tivesse o coração quasi todo occupado pela imagem de Saturnino.
Lourenço cantou este verso:
Boca de cravo da India,
Dentes de marfim dourado,
Quando meus olhos te viram,
Meu corpo fez um peccado.
Bernardina respondeu com est'outro:
Você vai p'ra sua terra,
Bem podéra me levar;
P'ra saber que eu quero ir
Não carece perguntar.
Lourenço retorquio:
Dei um nó na fita verde,
Dei-lhe a fita de presente;
Você falla, e não repara
Que estamos diante de gente.
Eis a resposta da rapariga:
Amores, quando te fores,
Antes de ir tira-me a vida,
Que eu não tenho coração
De ver a tua partida.
O desafio foi neste ponto interrompido por um rumor inesperado, identico ao que produz o arranco de onça por entre a folhagem. Não uma onça, mas o Tunda-Cumbe tinha atravessado de um salto, causa do rumor, a primeira ordem de pessoas que formavam o circulo, e achava-se ao pé de Lourenço, com a catana levantada contra o rapaz. Mas ainda bem não erguia o braço armado, quando um homem, sahido, como elle, violentamente dentre os circumstantes se interpunha entre o aggressor e o aggredido, tendo na mão fóra da bainha a faca que trazia ao cóes. O homem não era outro sinão Francisco.
Cessaram immediatamente as vozes dos cantores e instrumentos, e todas as vistas e attenções concentraram-se no ponto do conflicto.
— Que acção é esta, seu Tunda-Cumbe? perguntou Francisco a Manoel Gonçalves. O que vosmecê fizer a meu filho terá feito a mim mesmo.
— O que eu quero é que me digam o motivo deste barulho, disse Victorino apresentando-se.
— É que este menino ainda não achou quem lhe désse o ensino de que precisa, respondeu Manoel Gonçalves.
— O que eu quero saber é o motivo do barulho, repetiu Victorino.
— Você o saberá quando fôr tempo. Palavra de Manoel Gonçalves Tunda-Cumbe.
Lourenço, que até então guardára silencio, rugiu a meia voz:
— Eu si não me fôr embora d'aqui, faço as todinhas e acabo ainda com muito sol. O sangue está a ferver-me.
Entretanto o Tunda-Cumbe mettera a catana na bainha, e Francisco tinha feito o mesmo com a faca.
Victorino virou-se para este ultimo, emquanto aquelle se afastava dando a um e a outro a razão do seu procedimento; e a meia voz perguntou:
— Viu você o principio da briga, compadre? Si viu, conte-me a historia como foi.
— Para dizer a verdade, eu não sei bem a causa da contenda. Mas parece-me que a Bernardina anda no meio. Tenha paciencia, compadre, e perdôe o que lhe vou dizer. É preciso acabar com estes sambas em sua casa. Quem tem filhas, não abre as suas portas assim a Deus e ao mundo.
— Eu não convidei o Tunda-Cumbe para o meu divertimento. Se elle entrou aqui foi confiado em ser nosso freguez de peixe.
— Pois abra os olhos, que elle disse que a Bernardina é tainha que ainda ha de cahir no seu caçuá. E adeus, adeus. Vamos, Lourenço.
— Pois elle disse isto, meu compadre? Elle não conhece Victorino.
Quando Francisco chegou com o filho á porta do casebre, achou ahi da banda de fóra o Victorino, o Tunda-Cumbe e um pardo de Goyanna que tinha o officio de sapateiro. A este ultimo dizia o Tunda-Cumbe as seguintes palavras:
— Diga a seu Antonio Coelho, que fico entendido do recado, que me mandou por você e d'aqui a pouco la estarei.
O pardo, por nome Lauriano, sahiu, e o Victorino dirigiu-se nestes termos a Manoel Gonçalves:
— Seu Tunda-Cumbe, eu quero dizer-lhe os meus sentimentos. A Bernardina é solteira, mas já tem noivo. Por isso escusa andar vosmicê a fazer desordens na casa alheia por causa dela.
— Eu bem sei donde partem estas historias e por saber donde ellas partem é que as suas palavras me entram por um ouvido e me sahem pelo outro. Si a Bernardina tiver de ser minha, não ha de ser nem você nem seus parceiros que tenham forças para o impedir. Não seja tolo, Victorino.
Dizendo estas palavras, Manoel Gonçalves ganhou a besta de um salto e tomou a correr, a caminho de Goyanna.
— Que lhe disse eu, compadre? Observou Francisco, que chegára ao lado de fóra ainda a tempo de ouvir as ultimas palavras do Tunda-Cumbe. Tome suas cautelas. Aquelle malvado é traiçoeiro e está avezado a tirar moças solteiras da casa de seus paes.
— Elle poderá tirar alguma das minhas filhas; mas para fazer isso será preciso que primeiro me tenha morto e bem morto. Vou acabar já com esta festa.
Fosse, porêm, que os espiritos estavam muito exaltados para attenderem ás prudentes considerações do foreiro, fosse que Victorino não qniz desagradar áqueles que lhe honravam a casa com sua presença, o samba ferveu até o amanhecer do dia, aos estouros intermittentes do bacamarte de Saturnino, e aos gritos de—Viva S. João—soltados pelos diferentes sambistas, alguns apenas alegres, outros inteiramente entregues ao espirito vertiginoso da canna.